Intérpretes. “Vivemos e, por vezes, rimos e choramos com os participantes”

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Neste momento há 250 intérpretes funcionários do PE e cerca de 2500 freelancers que trabalham regularmente para a instituição. Quais os requisitos que têm de cumprir? Qual a parte mais gratificante e difícil na atividade?

O Parlamento Europeu (PE) é uma instituição onde a diversidade e o multilinguismo estão presentes a todos os níveis (são 24 as línguas em que se trabalha). E, seja no debate político ou nas negociações, é imperativo que todos se entendam: “Os eurodeputados têm o direito de intervir nas várias reuniões na língua oficial que desejarem e os cidadãos têm o direito a seguir os procedimentos parlamentares em plena transparência”, afirma a intérprete Sofia Castanheira. Recorde-se que os intérpretes portugueses trabalham em primeira linha para os deputados do PE. No entanto, as sessões que acompanham podem ser seguidas por qualquer pessoa pela internet. Por isso, o seu papel é traduzir, de imediato, o que está a ser dito. “O nosso trabalho consiste em interpretar simultaneamente todas as intervenções numa reunião. Somos a ponte entre as diferentes realidades linguísticas e culturais”, explica. 

Há quem não entenda a diferença entre um tradutor e um intérprete. Segundo a também intérprete Alda Cordeiro, ao contrário do tradutor, o intérprete distancia-se das palavras. “Muitas vezes, é preciso um compasso de espera porque o verbo vem no fim ou porque a ideia tem de estar clara para nós antes de nos lançarmos numa nova frase”, refere. “Trabalhamos em simultâneo com essas margens. Das línguas mais próximas da nossa, permitimo-nos encurtar essa margem mas sempre atentos aos falsos amigos e evitando ‘colarmo-nos’ às palavras do orador que, embora existindo na nossa língua, poderão não ser as mais adequadas em determinado contexto”, acrescenta.

Amantes de línguas

No caso de Sofia Castanheira, esta interpreta a partir de inglês, francês, espanhol, italiano e polaco para português. Sempre gostou de línguas. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante francês e inglês. “Queria trabalhar num ambiente multicultural e a interpretação surgiu como a via mais interessante para o fazer”, conta a intérprete. Depois da licenciatura, fez um curso de pós-graduação em interpretação de conferência em Portugal. “Passei um teste de acreditação para começar a trabalhar como intérprete freelance, tornei-me agente temporária no Parlamento Europeu e , mais tarde, passei um concurso para ser intérprete funcionária”, lembra. Tal como Sofia, Alda Cordeiro licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas. Depois disso, foi para a Alemanha fazer uma pós-graduação em didática do alemão. “Aí, dei aulas de português a alemães e de alemão a estrangeiros. Seguiu-se um período de tradução no Luxemburgo. Em seguida, fui explorar a interpretação, com formação em Genebra e estágio em Bruxelas e aqui fiquei. Depois de 8 anos como intérprete independente, decidi passar num concurso e tornei-me funcionária no PE”, revela a também intérprete. 

Perfil do intérprete 

Os grandes requisitos para esta profissão são, por isso, os conhecimentos linguísticos. “Um intérprete tem que dominar na perfeição a sua língua materna e ter um conhecimento muito aprofundado das suas línguas de trabalho”, frisa Sofia Castanheira. O seu trabalho “não é apenas a transposição de frases de uma língua para a outra” e “há conceitos e referências culturais que ultrapassam a dimensão linguística”. A interpretação é feita por “unidade de sentido”. “Se tentássemos interpretar palavra a palavra, o resultado final soaria extremamente artificial, desarticulado”, garante. “Por exemplo, lembro-me de uma eurodeputada espanhola ter dito que, por aquele andar, ia comer os polvorones à mesa das negociações do orçamento. É preciso saber que se trata de um dos doces típicos de Natal em Espanha e dizer algo como: ‘As negociações estão tão complicadas que corremos o risco de passar o almoço de Natal na mesa das negociações’”, detalha. Mas isso também não é suficiente: “Um intérprete tem que ser um bom comunicador, tem que se interessar por tudo o que se passa no mundo, sobretudo nos países das suas línguas”, continua. Além disso, tem também que saber “gerir bem o stress, a necessidade de reação rápida, a dificuldade técnica de muitas reuniões e a concentração exigida”. 

O site do PE traça o perfil do intérprete. Este deve ter “uma compreensão da língua passiva”, ou seja, deve “ter uma perfeita compreensão das línguas a partir das quais trabalha e restituir qualquer tipo de discurso em circunstâncias muito variadas”; deve ter o “domínio da língua ativa”, para “poder expressar todos os seus matizes”; ter uma “vasta cultura geral e abertura de espírito”, atualizando constantemente os seus conhecimentos para poderem trabalhar sobre temas muito diversificados e deve ter ainda uma grande “capacidade de adaptação”, já que os intérpretes são confrontados com situações muito variadas, “devendo ser capazes de interpretar qualquer tipo de discurso, seja qual for o tema, o contexto, a identidade dos participantes e o local onde é pronunciado”.

O dia-a-dia 

Segundo Sofia Castanheira, neste momento, há 250 intérpretes funcionários do PE e cerca de 2500 freelancers, que trabalham regularmente para a instituição. Já Alda Cordeiro revela que recentemente se perderam muitos. “Os que começaram aquando da adesão de Portugal à CEE estão todos reformados. Temos um défice que é colmatado com a contratação de colegas freelancer, numa relação de 8 funcionários para 50 AICs (intérpretes de conferência auxiliares)”, admite. 

O dia de um intérprete começa ainda antes de sairmos de casa para o trabalho. “É essencial ouvir as notícias de manhã e estarmos a par do que se passa no mundo”, sublinha Sofia Castanheira. “Tudo pode ser referido numa reunião, até os resultados dos jogos do Europeu que se aproxima”, alerta. Ao chegar à cabina, os intérpretes dão uma última vista de olhos à documentação da reunião, “que já terá sido preparada na véspera”. “Depois vem o trabalho de interpretação propriamente dito, transpor o que é dito nas diferentes línguas para português”, continua, acrescentando que se pode ter diferentes reuniões no mesmo dia, sobre temas totalmente diferentes, por vezes altamente técnicos. “A concentração e rapidez exigidas deixam-nos muito cansados, mas chegamos ao fim do dia com a sensação gratificante de termos sido um veículo de comunicação importante nos trabalhos parlamentares”, garante. Interrogada sobre a remuneração, a intérprete explica que não há um montante fixo. “A remuneração dos intérpretes segue uma tabela pré-determinada e varia em função da sua experiência e progressão na carreira”, conta.

Na perspetiva da cabina portuguesa, de acordo com Alda Cordeiro, as línguas mais difíceis são todas as do leste, bem como as bálticas e nórdicas. “Temos três colegas com polaco, dois com romeno e dois com sueco. Todas as outras temos de fazer em relay . O serviço de programação da nossa DG prevê sempre dois colegas por equipa que asseguram esse desdobrar das línguas da reunião, pelo que a cobertura do leque linguístico está garantida”, afirma.

Gerir emoções 

Sobre os maiores desafios da atividade, Sofia Castanheira admite que as emoções são, certamente, difíceis de transmitir. “Temos que acertar no registo e no tom, para reproduzir exatamente a intenção do orador”. Além disso, as emoções mexem com os intérpretes. “Somos seres humanos. Lembro-me de uma reunião em que estávamos a interpretar uma senhora que contava a sua experiência num campo de concentração na Segunda Guerra Mundial. Falava do dia em que foi libertada e como tentou superar esse trauma terrível . Posso garantir que todos os intérpretes tinham a voz embargada”, descreve. Para Alda Cordeiro, os piores momentos são quando o orador “lê a grande velocidade um texto técnico – que não recebemos antecipadamente – ou quando não articula, fala longe do microfone ou simplesmente não tem um discurso coerente”.

O que mais a atrai na interpretação é o “estar presente”, ainda que atrás do vidro, em debates, votações e momentos históricos a vários níveis. “Vivemos e, por vezes, rimos e choramos com os participantes”, admite. “Recordo um momento alto da minha carreira: um discurso de Helmut Kohl proferido num congresso do PPE em Toulouse. Era um 9 de novembro, o dia da memória na Alemanha, e o chanceler citou toda uma série de efemérides, com muita emoção e até tremor na voz. Não foi nada fácil mas deu-me tanto gosto que guardo ainda essa lembrança”, lembra. Por outro lado, Sofia Castanheira gosta do facto de “todos os dias serem diferentes e a monotonia nunca estar presente”. Num dia, trabalha na Comissão da Agricultura e tem que preparar um debate sobre as doenças da batata. No dia seguinte, pode estar na Comissão dos Assuntos Económicos a falar de regulamentos financeiros. “E, quando trabalho em reuniões de alto nível, apraz-me muito pensar que fiz o meu bocadinho para que haja uma verdadeira comunicação entre povos e países”, remata a intérprete.

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