Jorge Moreira da Silva: “Cabo Delgado está a tornar-se uma crise esquecida”

3 meses atrás 94

A onda de ataques terroristas em Cabo Delgado, no norte de Moçambique, que principiou em 2017, não cessou, apesar de, por estes dias, ser poucas vezes notícia. O drama não desapareceu. E ainda se pode agudizar.

Em entrevista à Renascença, Jorge Moreira da Silva, subsecretário das Nações Unidas (ONU) e diretor-executivo do Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS), defende que “a comunidade internacional não pode, de maneira nenhuma, desistir do apoio a Cabo Delgado”.

Moreira da Silva, que está de visita a Moçambique, acredita que a UNOPS irá continuar a trabalhar no terreno, após 2025, ano em que devem estar terminadas 134 obras no terreno. E frisa: “A um país ao qual tudo acontece, não pode ser regateada a ajuda e solidariedade.”

Desde 2022, a UNOPS lidera a execução do apoio aos mais de um milhão de deslocados de todos os distritos de Cabo Delgado, província afetada há quase sete anos por ataques terroristas.

Está em Pemba, capital da província de Cabo Delgado. Acabou de fazer uma visita ao terreno. Qual foi a realidade encontrou?

Os ataques terroristas, que se iniciaram em 2017, deram origem a fluxos internos de deslocação forçada muito significativos. Mais de um milhão de pessoas teve de sair do norte de Cabo Delgado e dirigir-se para outras partes da província. Incluindo, Pemba.

A UNOPS tem com o Banco Mundial e com o Governo [de Moçambique] uma parceria de apoio social aos deslocados, mas também para aqueles que os acolhem. Além disso, há um conjunto de 134 obras [da UNOPS] - escolas, centros de saúde, hospitais, incubadoras de empresas, centros comunitários - que permitem reforçar o acesso a bens e serviços sociais essenciais.

O que pude verificar nesta visita a Pemba é aquilo que dos números já sabíamos.

Há uma concentração muito elevada de deslocados em vários distritos da província de Cabo Delgado, mas também vulnerabilidades sociais, pobreza, com níveis que já eram superiores à média nacional mesmo antes desta crise dos ataques terroristas. A população de Cabo Delgado já está numa situação de vulnerabilidade há muito tempo.

Tive oportunidade de visitar uma escola que acabamos [a UNOPS] de construir, na comunidade de [aldeia de] Naminaue. Na mesma comunidade, construímos um centro social e um centro de saúde. Estive com a população, conversei com os deslocados.

Cerca de três mil pessoas vivem naquela comunidade, mais de 50% são deslocados, pessoas que vieram de outras partes de Cabo Delgado. Mais de 1300 crianças que estão sem escola. Portanto, foi muito reconfortante ver este nosso projeto da construção [da UNOPS] de uma escola e a construção de um centro de saúde, que permite dar resposta a esta vulnerabilidade que se vive em Cabo Delgado.

Que mensagem lhe passaram os deslocados?

Estive bastante tempo [reunido] com os comités de Paz [grupos locais que ajudam no acolhimento de deslocados, gestão de tensões e na decisão de projetos]. Tive uma longa conversa.

Foi muito importante ver a enorme alegria das crianças. Encontrei centenas de crianças na rua e vi a alegria quer das crianças quer dos pais por, finalmente, poderem ter uma escola. Estão, aliás, a uma distância muito significativa de Pemba.

Naminaue está separada de Pemba por uma estrada praticamente intransitável, fica a mais de hora e meia de viagem. É uma comunidade completamente remota. Ora, a construção da escola vai permitir, pela primeira vez, que aquelas crianças, 1300 crianças, possam ter acesso à educação que é o maior fator de mobilidade social.

O mesmo em relação à saúde. Hoje as mulheres dão à luz ainda em casa, sem condições de segurança. A construção do centro de saúde - que está pronto, que vai entrar em funções nos próximos dias - vai permitir que aquelas mulheres, muitas que encontrei hoje, possam ter um sítio seguro onde dar à luz. E também para o tratamento de outro tipo de doenças.

Esta zona de Cabo Delgado foi fustigada por surtos de cólera, felizmente já debelados. Mas há, portanto, aqui uma incidência muito significativa de doenças sem o tratamento adequado.

Verifiquei, quer da parte dos ministros com quem me encontrei em Maputo no início da semana, quer da parte do governador de Pemba, quer da parte das comunidades locais, um enorme apoio e reiterado reconhecimento do que estamos aqui a fazer. Saio, como se costuma dizer, com o coração cheio.

Os projetos que estamos a fazer estão a permitir às pessoas, em situação de conflito, que fogem dos ataques terroristas, ter um sinal de esperança - na saúde, educação, criação de empresas e emprego. É para isso que as Nações Unidas servem. É para isso que nós estamos no terreno, em especial nos sítios de maior exigência.

Os ataques, infelizmente, não terminaram, apesar de não serem notícia. Ainda em maio, em Macomia, houve um ataque terrorista, jihadista, que mais uma vez semeou o pânico e a insegurança.

Os relatos que existem destes ataques, desde 2017, são horríveis. Com pormenores absolutamente grotescos. Esta população é uma população traumatizada, que não só perdeu muita gente - mais de 5 mil pessoas morreram -, mas, além do mais, viu coisas grotescas que a traumatizou. Portanto, a comunidade internacional não pode, de maneira nenhuma, desistir do apoio a Cabo Delgado. Julgo sinceramente que este apoio vai continuar.

As iniciativas da UNOPS – que vão desde a construção de escolas ao apoio psicológico – servem para mitigar alguns dos impactos do terror. É essencial que o projeto continue no terreno?

Este é claramente um projeto que vai ter de ir além do prazo indicado. Tudo indica que teremos condições de concluir as 134 obras previstas até ao final do próximo ano, e continuar com o apoio a mais de 650 mil pessoas deslocadas.

O projeto tem uma amplitude tão grande que vai abranger cerca de 65% de todos os deslocados internos. E as obras estão a andar a um bom ritmo.

Se isto vai ficar por aqui? Eu julgo que não.

Quando estamos a falar de uma população que atinge níveis de pobreza infantil de 61%, níveis de literacia de 52%, falta de saneamento básico (24%) e só 22% tem acesso à saúde, estamos a falar de níveis básicos de acesso a serviços sociais, que não existem em Cabo Delgado.

É evidente que, apesar dos enormes esforços que foram feitos, pelo Governo, pelas autoridades das províncias, pelas Nações Unidas, pelo Banco Mundial, este é um projeto que vai ter de continuar.

Tenho a expectativa que este apoio a Cabo Delgado vá continuar além de 2025. Tenho, aliás, feito questão de em todas as ocasiões, em que se discute fragilidade, conflito, resiliência, de apelar à comunidade internacional para que mobilize para Cabo Delgado. Cabo Delgado não pode ser uma crise esquecida. Cabo Delgado está a tornar-se uma crise esquecida. Há muito, muito tempo, que não se fala de Cabo Delgado. Essa é uma das razões pelas quais eu quis obviamente com a minha equipa estar no terreno. Ter aqui uma presença. É o maior projeto em África da UNOPS.

Com a guerra na Ucrânia, a situação em Gaza, é um desafio captar a atenção da comunidade internacional.

Essa é a questão que tenho procurado levantar nos últimos meses. Apesar de também a UNOPS - agência que tem mais de 6000 pessoas, espalhada por 85 países - estar presente em Gaza e na Ucrânia, tenho de chamar a atenção para outras crises. Afeganistão, Cabo Delgado, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Iémen, Myanmar, Haiti, Mali, Niger. Estamos a falar de crises que não se estão a debelar, estão-se a agravar.

A comunidade internacional, os doadores - no fundo, todos nós, enquanto contribuintes - temos de ter noção que isto não pode ser, como se costuma dizer, um jogo de soma nula, que, quando há crises novas, reorientamos os investimentos para essas crises novas, desgraduando, em termos de prioridade, as outras crises. Não. Quando há mais fragilidade, quando há mais conflitos, quando há mais guerras, quando há mais vulnerabilidades, nós precisamos de mais apoio, de mais solidariedade, de mais cooperação. Portanto, mais do que trocar um destino por outro, trocar o apoio a um projeto por outro destino, temos de encontrar formas de aumentar a solidariedade internacional.

Digo sempre nestas conversas, e é isso que a minha experiência também na OCDE ensina, aquilo que nós não investirmos em desenvolvimento, na prevenção de crises, pagamos sempre a mais, muito mais, em crises migratórias e em ajuda humanitária. É muito importante que os cidadãos dos países ricos, onde se inclui Portugal, entendam que esta não é uma altura para hesitarmos. Esta é uma altura para apoiar mais aqueles que são mais vulneráveis. Que enfrentam, ainda por cima, consequências dramáticas da mudança climática, das alterações climáticas, sendo daqueles que menos imitem.

Moçambique é um país ao qual tudo acontece. É dos países que menos gases com efeito de estufa emitem no mundo e tem sido penalizado por ciclones, temporais, inundações, fenómenos climáticos extremos tremendos. Teve um processo de tensão e guerra interna até 2019 - só em então se assinou um acordo de paz entre a Frelimo e a Renamo. É um país que está fustigado por fenómenos de pobreza, de fragilidade, de vulnerabilidade. Tem agora desde 2017 estes ataques terroristas em Cabo Delgado.

A um país ao qual tudo acontece, não pode ser regateada a ajuda e solidariedade. Espero sinceramente que possamos estar à altura das nossas responsabilidades.
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