Jorginho, campeão do Mundo em 94: «Passei o intervalo da final a chorar no banho»

2 meses atrás 100

[O Mundial de 1994 marcou uma geração e está a celebrar os 30 anos. O torneio norte-americano teve jogos inesquecíveis, maravilhosos underdogs e colecionou novos heróis para as cadernetas de cromos e as conversas de café. O zerozero junta-se às festividades e vai publicar até quarta-feira, dia 17 de julho e da final Brasil-Itália, cinco entrevistas a protagonistas do torneio. O último convidado é Jorginho, dono da lateral direita do Brasil que saiu dos Estados Unidos do América com o troféu de campeão do Mundo na mala de viagem]

Brasil, país do futebol. A nação para a qual os deuses da modalidade que tanto apreciamos apontaram e disseram «A ginga que têm não pode ser usada só para o samba». O resultado? Pelé, Garrincha, Zico, Rivaldo, Romário, Ronaldo, Ronaldinho, Neymar e tantos outros que têm a capacidade de fazer com que uma bola pareça a extensão dos seus próprios corpos.

Perante este cenário, o sucesso é inevitável: não há nenhum país com mais conquistas nos Campeonatos do Mundo do que o Brasil. Depois das vitórias consecutivas em 1958 e 1962, a formação canarinha pôde festejar também em 1970, 1994 e 2002. À boleia de Jorginho- ou não estivesse o antigo lateral-direito habituado a fazer viagens constantes pelo seu corredor- entramos nos bastidores da conquista brasileira de há 30 anos.

Até porque, citando o antigo jogador de clubes como Flamengo, Bayer Leverkusen e Bayern München, «não há nada parecido» com o sentido de levantar o título de campeão do Mundo.

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zerozero: O que sente quando percebe que o Mundial que venceu já foi há 30 anos?

Jorginho: Que estou a ficar velho [risos]. É um sentimento muito bom que todos nós temos, é como o nascimento de um filho que vai permanecer para sempre. Sabemos que o nosso nome foi escrito na história do futebol mundial e que os adeptos se vão lembrar de nós para sempre. É muito gratificante e estou muito agradecido por ter tido a oportunidade de viver tudo isto.

zz: Num plano um pouco mais geral, como foi disputar um Campeonato do Mundo num país que, até então, não tinha qualquer expressão no panorama futebolístico internacional? 

J: Nós sabíamos que as ruas estavam cheias de pessoas, pese embora não contactássemos muito com isso porque estávamos num ambiente mais fechado. No entanto, lembro-me que, nas televisões, não passava quase nada sobre futebol. Quando há este tipo de torneios na América do Sul ou na Europa, sabemos que há um clima que toma conta do país inteiro e neste aspeto em específico isso não se verificou. No entanto, é impossível não referir que tivemos jogos com 120 mil pessoas no estádio, no caso a final. Sabíamos que o futebol não era o primeiro desporto lá, mas os americanos acabaram por ver uma festa que nunca tinham visto. 

zz: Deve ser interessante para vocês, enquanto jogadores, perceber que foi a partir desta competição que um desporto como o futebol 'entrou' de forma mais efetiva num país como os Estados Unidos da América...

J: Exatamente! Nos Estados Unidos, os outros desportos se calhar não têm interesse que o futebol seja tão divulgado como está a ser no momento. O futebol é muito democrático, só é preciso uma bola, amigos e espaço para jogar. Naquela altura abriu-se um mercado que está a voltar a ser fortemente explorado porque o próximo Mundial é lá, no México e no Canadá. Ainda assim, penso que, em 1994, os americanos ficaram 'assustados' por perceberem como é que o o futebol mexe com o coração e com a mente das pessoas.

zz: Já falámos sobre o ambiente em torno da competição, mas pergunto-lhe agora: como era o ambiente dentro da seleção brasileira?

J: Muito muito bom, havia um grande espírito de compromisso com o objetivo final, que sempre foi vencermos esse Campeonato do Mundo. Nós comparamos muito a Copa de 90, onde também estive presente, com a de 94 e há uma grande diferença. Em 1990 tivemos muitos erros, tanto dentro como fora de campo. Muitos dos atletas que estiveram na conquista de 1994, como eu, o Dunga, o Romário, o Bebeto, o Ricardo Gomes- que depois foi cortado-, tinham estado também em 1990 e a verdade é que aprendemos muito com os nossos erros. Erros de tomada de decisão, discutir premiações monetárias durante o Campeonato do Mundo... Em 1994 resolvemos tudo isso, o nosso objetivo era claramente levantar o troféu. Até porque, tal como vai acontecer em 2026, já estávamos sem vencer há 24 anos. Eu, por exemplo, era o presidente da caixinha. Sabe o que o é?

Romário focado como nunca

zz: A caixa das multas, certo?

J: Exatamente! Eu era o primeiro a chegar ao autocarro e, logo depois de mim, vinha sempre o Romário. Ele estava muito focado, queria vencer, ser o artilheiro da competição e ser o melhor do mundo. Foi criado uma cartilha com tudo definido antes da competição começar. Por exemplo, ficou logo definido que a premiação seria igual para todos, desde o roupeiro até ao chefe da delegação. Foram 40 membros da delegação e todos receberam o mesmo valor. Se a divisão fosse feita com o objetivo de beneficiar os jogadores, penso que iríamos receber cerca de 120 mil dólares cada um; assim recebemos 80 mil. Isso foi muito positivo porque estávamos todos a remar para o mesmo lado, estava toda a gente feliz e o ambiente era bom. 

Posso dizer também que houve um jogador que fez uma diferença enorme na nossa comitiva, o Ricardo Rocha. Ele é muito divertido e alegre, pelo que deixou sempre o espírito da equipa lá em cima. Ele até se lesionou no primeiro jogo, mas foi extremamente importante nesta questão da construção do grupo. Lembro-me de ter levado uma câmara para os Estados Unidos da América, sendo que, na altura, não era muito comum um jogador filmar. Tenho cerca de seis horas de filmagens e em quatro o Ricardo Rocha é a figura principal [risos]. Havia muito seriedade na procura do objetivo, mas, ao mesmo tempo, a típica alegria brasileira estava muito presente. Íamos e vínhamos para/dos jogos sempre com samba presente. 

@Arquivo Pessoal

zz: Gostávamos de o convidar a fazer uma viagem pela competição, jogo a jogo. Assim sendo, o que lhe vem à cabeça quando lhe falo do Brasil-Rússia, partida com que se estrearam no Mundial?

J: Era um jogo extremamente importante, sabemos que começar uma competição destas com uma vitória dá um 'gás' muito grande no sentido de se conseguir a qualificação para os oitavos-de-final. Conhecíamos bem a seleção russa, tinham uma base muito forte de 1988, altura em que os defrontámos nos Jogos Olímpicos. Na altura até nos ganharam, pelo que entrámos em campo com o pensamento de que não poderíamos perder de novo. Foi um jogo difícil porque eles tinham uma defesa muito forte, mas felizmente conseguimos vencer e dar um início positivo à nossa caminhada.

zz: Seguiu-se depois uma vitória mais confortável frente aos Camarões com uma assistência sua...

 J: Exatamente, ainda que eles nos tenham causado alguns problemas através de cruzamentos, tal como se viria a verificar também com a Suécia. As seleções africanas são sempre uma incógnita, nunca sabemos de que forma se pode apresentar- o Brasil já perdeu uns Jogos Olímpicos com a Nigéria. A seleção camaronesa tinha um futebol alegre e sabíamos que não podíamos dar-lhes espaço para crescerem no jogo. Fizemos uma partida consistente e estivemos muito bem do ponto de vista defensivo, num cenário que nos deu a qualificação.

zz: Seguiu-se a Suécia...

J: Exatamente. Eles saíram na frente do marcador, mas nós tínhamos mesmo o objetivo de ir para a fase seguinte sem conhecer o sabor da derrota e conseguimos o empate. 

zz: Nos oitavos-de-final defrontaram os Estados Unidos da América. Como foi experienciar a sensação de terem um país inteiro contra vocês?

J: Ainda para mais num dia tão especial para eles, isto tendo em conta que o jogo foi disputado no Dia da Independência, 4 de julho. Eles tinham uma seleção bastante forte e foi um daqueles jogos que nos deixou verdadeiramente preocupados. Depois daquele jogo tivemos a certeza que seríamos campeões. No final da primeira parte perdemos o Leonardo, que foi expulso, mas no intervalo conseguimos manter-nos calmos. Falámos e percebemos que não queríamos que acontecesse como em 1990, quando massacrámos a Argentina e acabámos por ser eliminados. Sabíamos que as coisas estavam difíceis, mas fizemos uma segunda parte muito consistente e marcámos numa jogada maravilhosa do Romário e do Bebeto, uma dupla fantástica, num contra-ataque. 

qBrasil-Holanda?Foi o melhor jogo, de forma disparada, desse Campeonato do Mundo. Foi uma final antecipada

zz: Segue-se depois o jogo com a Holanda, uma das grandes partidas da história dos Campeonatos do Mundo...

J: É verdade. Estávamos a ganhar 2-0 e parecia que podíamos ir para o 3-0 ou para o 4-0, mas, de repente, eles conseguem fazer um golo e ganhar moral. Entretanto, na sequência de um canto, empataram. No entanto, felizmente, as coisas aconteceram a nosso favor. O Branco cavou uma falta, que hoje em dia, com o VAR, provavelmente não seria assinalada- ainda que o jogador holandês tenha tocado nele- e conseguiu fazer o 3-2. Fizemos uma primeira parte muito boa, muito consistente e com um jogo apoiado e rápido. Acredito que foi o melhor jogo, mas de forma disparada, desse Campeonato do Mundo. Foi uma final antecipada, até porque a final foi um jogo muito mais tático.

zz: Nas meias-finais voltam a encontrar a Suécia e faz, provavelmente, a assistência mais importante da sua carreira...

J: Foi um martírio, massacrámos o jogo todos, batemos na Suécia de todas as formas. No entanto, o golo não chegava nem por nada. Tive a oportunidade de ver o jogo depois e lembro-me de o Galvão Bueno, o maior narrador que temos aqui no Brasil, estar a dizer "Caramba, Jorginho, por cima não dá. Os suecos estão no terceiro andar e nós no primeiro, são mesmo muito altos". A verdade é que eu tentei de várias formas, mas, felizmente, perto do fim consegui fazer um cruzamento perfeito para o Romário. 

zz: Quando diz "perfeito" é mesmo a expressão certa: a bola parece que foi colocada com a mão...

J: Foi mesmo. Até àquele momento, eu não tinha tido a oportunidade de cruzar olhando mesmo para a área. Nessa jogada, o Bebeto fez-me o passe e depois foi logo para a área, sendo que o Raí também abriu espaço ao entrar no primeiro poste. Aliás, essa entrada do Raí foi fundamental, o Romário percebeu e acabou por ir para ao segundo poste, onde fez o golo. O Raí até tinha perdido a vaga para o Mazinho nesse torneio, mas esta entrada dele em campo foi determinante para que chegássemos a este golo tão importante. O Romário, mesmo sendo o nosso Baixinho, conseguia subir muito alto e fez um excelente golo.

Trauma de Baggio na primeira fila

zz: Na final, acreditamos nós, viveu duas sensações antagónicas: por um lado saiu lesionado aos 21 minutos; por outro, sagrou-se campeão do Mundo. Como foi ter de gerir tudo isto?

J: Foram momentos completamente antagónicos, fui do choro à explosão de alegria. Quando me lesionei e percebi que tinha de sair, senti aquela tristeza que sentimos quando perdemos uma pessoa querida, invadiu-me um sentimento de que não havia nada a fazer. No entanto, consegui controlar-me e tive a capacidade de pensar 'Preciso de ser forte, abraçar o Cafu e dizer-lhe coisas importantes'. Esse foi o meu pensamento e, quando cheguei à linha lateral, só lhe disse "Parceiro, você está a jogar muito. Vai lá e arrebenta, eu confio muito em você". Ele fez uma grande partida, por pouco não conseguimos definir o jogo com um cruzamento dele para o Romário, que chutou para fora.

No intervalo, eu aproveitei para ir tomar banho e lembro-me que só chorava. Passei o intervalo a chorar no banho. No entanto, consegui recompor-me e fui apoiar a equipa no que faltava jogar. Nos penáltis tudo pode acontecer, sendo que eles falharam o primeiro e depois o Márcio Santos também falhou. Entretanto fomos marcando- Dunga, Romário e Branco-, o Taffarel defendeu o penálti do Massaro e depois surgiu o penálti do Baggio [remae muito por cima]. É claro que houve uma explosão de alegria muito grande, mas, ao mesmo tempo, veio uma grande tristeza ao meu coração por causa do Baggio. Um jogador daqueles a falhar um penálti num momento tão importante... 

zz: Mas conseguiu ter esse pensamento e essa compaixão para com o Baggio no meio dos festejos?

J: De forma impressionante, sim. É claro que os jogadores brasileiros se foram abraçando, mas eu estava sempre a ver se encontrava o Baggio para tentar cumprimentá-lo e dar-lhe alguma força. Só o consegui fazer mais tarde, mas a verdade é que não há palavras que consigam consolar quem quer que seja num momento destes. É quase como uma morte. Aliás, quando se comemorou os 25 anos do Tetra, fizemos um jogo aqui no Brasil e convidámos o pessoal de Itália. A maioria veio, mas o Baggio não. Ele só nos disse "Como é que posso comemorar o dia mais triste da minha vida futebolística?". E nós compreendemos isso na perfeição.

zz: Conseguimos adivinhar a resposta a esta pergunta, mas este é o momento mais alto que um jogador pode viver?

J: Sim, não há nada parecido. É certo que nunca venci uma Libertadores, uma Champions ou um Mundial de Clubes, mas não há parecido. Vencer um Campeonato da Europa deve ser incrível, mas num Campeonato do Mundo está tudo englobado. Você é campeão do universo. É o ponto mais alta da carreira de qualquer jogador e eu estou muito grato por ter vivido isso.

zz: Olhando para a atualidade, como analisa a participação do Brasil nesta Copa América?

J: É claro que ninguém esperava uma eliminação do Brasil nos quartos-de-final, ainda que tenha sido nos penáltis. Neste momento, o futebol brasileiro passa por um problema de identidade a começar pela liderança da Confederação Brasileira de Futebol. Tivemos um presidente que foi acusado de assédio sexual, numa situação que, entretanto, já foi declarada como mentira na justiça. No entanto, ele foi destituído do cargo, pelo que agora temos um outro presidente que assumiu essa posição. Ou seja, neste momento esta é mais uma situação política.

Tenho o maior respeito pelo Jorge Jesus e pelo Abel Ferreira, que fizeram/fazem um grande trabalho aqui, mas a seleção brasileira nunca teve um treinador estrangeiro e é pentacampeã. Eu discordo da ideia de contratarmos um treinador estrangeiro, mas nunca poderíamos ter um treinador do nível do Fernando Diniz como interino, essa foi a pior decisão. Foi dito a todo o povo brasileiro que já havia um pré-contrato assinado com o Ancellotti e acabámos por ver que era mentira. Isso tem influência no trabalho do Dorival Júnior, que precisa de tempo para trabalhar.

zz: Até porque daqui a pouco há o Mundial de 2026...

J: Sem dúvida. É importante os jogadores de hoje perceberem que não fazem parte da minha geração. Ou seja, as coisas más que eles fazem têm repercussão a nível mundial, pelo que eles precisam de ser mais profissionais ainda- coisa que não estão a ser. Por exemplo, olhemos para o caso do Neymar. Hoje em dia não há jogador com o Neymar na seleção. O Vinícius é muito bom, o Rodrygo é muito bom, o Raphinha é muito bom, mas o Neymar é diferenciado. O Neymar é craque, todos os outros são muito bons jogadores.

Ele precisa de entender que tudo o que faz dentro de campo tem influência dentro de campo e que ele, estando a chegar ao fim da carreira, precisa de ser campeão do Mundo. Agora é o momento de ser ele protagonista fora de campo, ele tem de ser um líder positivo como o Dunga foi em 1994. Se ele quiser vencer um Campeonato do Mundo, nestes dois anos ele vai ter de ser esse 'cara'. Se for um profissional fora de campo como é dentro de campo, ele pode ganhar a Bola de Ouro, até porque merece. Se ele fizer isso, o Brasil tem grandes possibilidades de ser campeão do Mundo em 2026. 

A equipa brasileira na final do Mundial 94 @Getty /

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