Keir Starmer quer ser o adulto na sala. Quem é o novo primeiro-ministro do Reino Unido?

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05 jul, 2024 - 06:34 • António Fernandes, correspondente no Reino Unido

Foi o primeiro da família a ir para a universidade e destacou-se como advogado de direitos humanos. Agora, o trabalhista Sir Keir Starmer impôs uma pesada derrota aos conservadores. Mais do que mudar políticas rapidamente, quer mudar a imagem de Downing Street, quer que o Governo passe a ser sinónimo de competência.

Em 2019, o Partido Trabalhista sofreu uma derrota histórica, o pior resultado em mais de 80 anos. Foi nesse contexto, e a meio de uma pandemia, que Keir Starmer assumiu a liderança dos trabalhistas. Agora, ganhou as eleições com uma maioria histórica, pondo fim a 14 anos de conservadores, sem nunca ter sido adorado pela esquerda.

Há uma ideia errada de que Keir Starmer, que nasceu em Londres, é mais um político da elite e das classes altas britânicas. O seu ar polido, de advogado engravatado, não chama as massas. Talvez por isso use as entrevistas e discursos para nos relembrar que vem da classe trabalhadora.

O pai, com quem tinha uma relação difícil, trabalhava numa oficina. A mãe era enfermeira. A sua infância ficou marcada pela doença rara da mãe, e pelos largos períodos que passava com ela no hospital.

Foi o primeiro da família a ir para a universidade, no caso em Leeds, no norte de Inglaterra. Só aí se terá apercebido que não conhecia nenhum advogado ou sabia sequer o que um advogado faz.

Starmer diz que em jovem era adepto da esquerda radical, editando uma revista mesa linha chamada “Alternativas Socialistas”.

Já como jovem advogado estaria tão concentrado a trabalhar que não deu por um ladrão entrar em casa e sair com a televisão. Destacou-se como advogado de direitos humanos, tanto no Reino Unido como no estrangeiro. Defendeu condenados à morte nas Caraíbas, opôs-se a grandes petrolíferas e até ao McDonalds, num caso em que representou dois ativistas ambientais que distribuíram panfletos contra a cadeia de fast food.

Em 2008, mudou o rumo da carreira, assumindo o cargo de procurador-geral. Aí ficou cinco anos, ficando conhecido pela rapidez com que foram processados os casos dos jovens envolvidos nos grandes tumultos de Londres em 2011.

Em 2014, recebeu o título de Sir como reconhecimento do trabalho que deixou feito. No ano seguinte, aos 52 anos, entrou finalmente na política, tornando-se deputado pelo Partido Trabalhista.

Pouco depois foi investido “ministro sombra” para a Administração Interna. Demitiu-se da função em protesto contra o líder do partido, Jeremy Corbyn, mas voltou a trabalhar com ele para ser o “ministro sombra” para o Brexit.

Foi nessa função que o seu passado enquanto advogado se tornou claro, usando uma precisão cirúrgica para desmontar o caos do Governo, para tornar evidentes as suas falhas. O seu perfil subiu dentro do partido e junto do público.

Quando Corbyn se demitiu depois das eleições de 2019, em que os trabalhistas tiveram o pior resultado em mais de 80 anos, Starmer tornou-se o favorito para o suceder apenas cinco anos depois de se ter tornado deputado. Starmer, que herda o nome de Keir Hardie, o primeiro líder trabalhista, ganhou as eleições do partido e assumiu a liderança em abril de 2020 com a pandemia de covid-19 a começar.

Os críticos defendem que a sua subida nas sondagens se deve mais ao caos instalado do outro lado da bancada, com escândalos de festas ilegais durante a pandemia e três primeiros-ministros, incluindo Liz Truss, cujo mandato aguentou menos do que uma alface. Agastado com a falta de detalhe e factos no Parlamento, fez de advogado da acusação e, ponto a ponto, ajudou a destruir um partido kamikaze.

Mais do que mudar políticas rapidamente, quer mudar a imagem de Downing Street, quer que o Governo passe a ser sinónimo de competência.

Adepto da equipa de futebol do Arsenal, Starmer não é fã do folclore que caracteriza o Parlamento britânico e gosta de seguir as regras de tal forma que um colega de Governo o apelidou de “Sr.Regras”.

A oposição conservadora, onde reinam os excêntricos (incluindo Boris Johnson, que chegou a primeiro-ministro) acusa-o de ser chato.

Helena Kennedy, amiga do novo primeiro-ministro britânico, defende na biografia de Starmer, escrita por Tom Baldwin, que “estar numa família onde alguém tem problemas sérios sentes que não te podes queixar, emocionar…faz-te menos expressivo”.

Keir Starmer não tem problemas com isso. Está pronto para ser o adulto na sala.

O que esperar do novo Governo?

Quando se candidatou a líder dos trabalhistas, Starmer apresentou um programa vincadamente de esquerda. Nacionalizar as águas e a eletricidade. Acabar com as propinas. Lentamente, enquanto se preparava para governar ciente da queda nas sondagens dos conservadores, Starmer foi deixando essas ideias cair e foi criticado por isso. O líder trabalhista defende-se, dizendo que não era possível ganhar a confiança dos eleitores prometendo gastar dinheiro que não há.

Quando ativistas ambientais o apuparam pouco antes da campanha, Starmer respondeu-lhes: “desistimos de ser um partido de protesto há cinco anos. Agora queremos ser um partido de poder”. Meses antes, tinha abdicado de um plano para aumentar o gasto com a transição para uma economia verde até 28 mil milhões de libras por ano. A agenda verde não era prioritária com parte do eleitorado que Starmer queria conquistar.

Esse pragmatismo fê-lo afastar o antigo líder do partido, Jeremy Corbyn, depois de um caso de anti-semitismo. Starmer limpou a casa, trouxe o partido mais ao centro. Fez com que os trabalhistas deixassem de ser um monstro de esquerda que assustava os eleitores da direita cansados dos conservadores, explica à Renascença Jonathan Parker, professor de Política na Universidade de Glasgow.

“Os trabalhistas chegaram-se muito ao centro, de tal forma que eles e os conservadores propunham programas muito semelhantes ao eleitorado. Os conservadores tentaram dizer que era um socialista radical e que era uma ameaça, mas ninguém acreditou porque basta olhares para Keir Starmer para ver que é a pessoa mais centrista que já conheces-te alguma vez”, sublinha Jonathan Parker.

Para já, Starmer não promete mudanças imediatas. Sabe que o momento do país é demasiado difícil para isso. “Quero trazer de volta a esperança”, repetiu várias vezes na campanha.

Starmer desiste do regresso à UE

Um profundo defensor da permanência na União Europeia, apoiou em tempos a ideia de um segundo referendo, mas agora recusa essa possibilidade, assim como recusa voltar a integrar o mercado único. Diz ser vital pôr uma economia estagnada a mexer e acredita que construir mais casas é uma solução rápida. Quer recrutar mais polícias para combater o aumento do crime violento.

 "Estes cinco anos foram piores do que o que se esperava"

Quer recrutar mais staff para o Serviço Nacional de Saúde (NHS), onde as listas de espera triplicam durante os 14 anos de conservadores. Este é um ponto muito pessoal para Starmer, que diz ter sido inspirado pelo apoio que o NHS deu à mãe.

O programa eleitoral assume a necessidade de controlar a imigração, mas corta com o polémico “Plano Ruanda” que estava em conflito com a Convenção dos Refugiados.

Acima de tudo, quer mudar a conduta no Parlamento e no Governo, quer que as pessoas possam confiar num Governo competente.

Com uma maioria robusta, terá margem e espaço para decidir que caminho tomar. Essa vantagem pode trazer algum veneno escondido, diz Jonathan Parker: “parece contra-intuitivo, mas quando há um Governo de coligação, em quase tudo tem de haver um acordo entre partidos que faz com que tenham de seguir um programa eleitoral ao longo do mandato, e é menos provável que a liderança mude por exemplo. O que tivemos nos últimos anos do Partido Conservador em maioria foi muitas discussões internas, trocas de líderes frequentes, mudança de políticas súbitas a meio do mandato e ninguém pode fazer nada em relação a isso”.

Até agora, Starmer conseguiu liderar o seu partido para os trazer de novo ao poder com medidas pouco populares internamente. Chegado ao poder, conseguirá controlar os deputados e mudar o rumo do país?

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