Mario Benedetti. A Borra da Infância Perdida

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Editado pela Cavalo de Ferro com tradução de Isabel Pettermann, o romance A Borra do Café convida-nos a abrir com chave de ouro as portas de Montevideu.

São quarenta e oito curtos capítulos. Curtos e simples, porque este é na verdade um livro simples, que de acordo com o próprio autor deve ser lido como “um caderno de navegação”. Um “caderno de navegação, mas dos sentidos, e destinado a incluir também as eventuais reflexões provocadas por essas sensações e tacteamentos no vestíbulo da intimidade.” Da intimidade e da vida doméstica.

Claúdio é um rapaz que muito cedo ao perder a mãe, se vai sentir injustamente expulso do terreiro luminoso e acolhedor da sua própria infância. Acontece que pouco depois dessa trágica perda, ele vai conhecer uma rapariga por quem se irá sentir absurdamente atraído. Uma rapariga de nome Rita, que do nada, sobe por uma figueira e lhe entra pelo quarto adentro. Mas da mesma maneira que aparece, vai desaparecer sem deixar rasto, até voltar uns tempos mais tarde. Esta rapariga da figueira, como ele, também vai crescer e tornar-se uma mulher. Mais do que uma mulher. Talvez uma sombra, um enigma, uma premonição, um mistério. Nunca perceberemos ao certo se esta Rita chegou mesmo ou não a existir, mas Benedetti parece querer esboçar esta personagem quase como uma maldição. Porque só a maldição ou o sonho têm o poder de fazer ecoar da borra da memória, as vozes que um dia já ferveram no passado.

Só “Aquele que parte leva a sua memória, o seu modo de ser rio, de ser ar, de ser adeus e nunca.” Esta frase da mexicana Rosário Castellanos vai dar o mote ao décimo terceiro capítulo. O capítulo que narra a morte da mãe de Cláudio.

A família está constantemente a mudar de casa, mesmo depois do segundo casamento do pai. O leitor a certa altura perde a conta à quantidade de moradas por onde Claúdio vai passando, mas apercebe-se de que todas são nos mesmos bairros centrais. Nicarágua, Cufré, Constituición e Goes, Porongos e Pedernal.

Estas mudanças podem parecer cansativas e pouco convencionais até, mas o leitor vai-se divertindo entre baús por abrir, objectos perdidos, fotografias desbotadas, porque de alguma maneira também esses pertences alheios lhe vão trazer recordações de um mundo familiar e apetecível, mesmo que para sempre irrecuperável.

São recordações que obedecendo a uma inocência e a uma ternura naufragada, ao mesmo tempo emanam uma nostalgia que tanto pode parecer delicada e melancólica, como de repente bruscamente carnal e violenta. Esta alternância apenas acontece nos momentos em que surge Rita. Ou na altura em que Cláudio pensa ou sonha com ela. Rita é a única personagem em que Benedetti parece querer despejar toda a borra da sua ilusão. A primeira epígrafe que Benedetti resgata para este livro é do escritor argentino Julio Cortázar: “Para onde vão o nevoeiro, a borra do café, os almanaques de outros tempos?”

Pois bem, a borra destas memórias acaba por ir ao encontro das do leitor. São memórias que se oferecem às suas. Que o fazem duvidar se está a olhar para dentro das recordações de alguém, ou a mergulhar a pique dentro das suas. Que têm o poder de o fazer recordar a maneira como se despediu da sua meninice e da sua juventude. É impossível ler este livro sem nos voltarmos a sentir livres como em miúdos. Sem descongelarmos algum tédio, alguma frustração, algum cardume de lágrimas ou de risadas. Sem desejarmos recuperar a Montevideu de Benedetti. Uma Montevideu que nos recebe de braços abertos com os seus cheiros, os seus fantasmas, os seus despertares, as suas despedidas, os seus vagabundos.

Dandy é um desses vagabundos assustadores e bêbados. É um sem abrigo que deambula todos os dias pelo parque de Caturro, até aparecer estranha e misteriosamente morto. O seu assassinato marcará profundamente Cláudio e o seu grupo de amigos. Ninguém percebe porque é que a sua morte tão trágica não figura na capa dos jornais.

Este Dandy, assim como o cego Mateo são os personagens de maior relevância da história. Mateo Recarte é um jovem culto, estudioso e inteligente. Pedia frequentemente a Cláudio que lhe contasse em pormenor episódios triviais das suas brincadeiras na escola, ou detalhes das suas aventuras. Coisas banais. Cláudio não entendia. Não percebia o que é que a sua vida corriqueira poderia ter de tão especial para despertar a atenção de Mateo. Ele é que por não ver, e não parar de imaginar era diferente e especial. Para Claúdio, Mateo era uma pessoa vibrante exatamente por isso. Porque como não via nada, precisava de imaginar tudo. Quando Claúdio muda pela milésima vez de casa, e desta vez, para longe dos bairros habituais, o pai leva-o para perto de uma Penitenciária. Nesse momento o cego diz-lhe: “Não olhes muito para lá. Esses muros fechados e proibidos costumam ter um certo poder de atracção. Para compensar, em Punta Carretas tens o farol. É melhor dedicares-te a ele, e depois, um dia, dir-me-ás o que ele ilumina e como. Nós, os cegos, como não vemos os muros (mal lhes tocamos), descobrimos, ou se calhar inventamos, uma outra dimensão da liberdade, temos mais tempo para pensar nela do que as pessoas que veem. As nossas memórias são neutras. Por exemplo agora, depois do que me disseste sobre o teu novo bairro, não tenho vontade de imaginar os muros da prisão, mas gostava de ver (e já não é só imaginar) a luz intermitente do farol.”

Através da cegueira de Mateo, Benedetti vai conduzindo o leitor para um patamar visual extremamente táctil, tornando-se quase automático abrirmos as gavetas das suas cómodas, contarmos os degraus das suas escadas ou rodar o trinco das suas fechaduras. Benedetti sabe na perfeição como rodar o trinco da fechadura dos seus leitores, e num registo diarístico e fragmentário leva-nos a acompanhar Cláudio ao longo dos anos, até passar de rapazito a homem. Até descobrir o erotismo e a sexualidade. A certa altura da narrativa, damo-nos conta que o diário vai sendo escrito a duas mãos. Pelas mãos de Cláudio e do pai, que em Fragmentos dos Rascunhos do Velho, escreve “Este país está a desfazer-se e, antes que seja tarde, será necessário refazê-lo a tiro.”

Nestes fragmentos, que são uma espécie de folhas soltas perdidas, podemos desconfiar que o velho pai é um possível alter ego de um Cláudio mais maduro com força para vincar uma tomada de consciência política mais crítica.

Este romance, a par de Andaimes (1996), talvez possa ser considerado o registo em prosa mais autobiográfico de Benedetti. O brasileiro Rafael Gurgei considera que Benedetti faz de Andaimes “um jogo de reelaboração afetiva de um país.” Também em A Borra Do Café nos damos conta dessa mesma leitura delicada e sentimental da Pátria. Aliás, Saramago também considerava: “São muitas as razões que nos levam à leitura de Benedetti. Talvez a principal seja essa, precisamente: que o poeta se tenha convertido na voz do seu próprio povo.”

Pode aqui não estar tão explicitamente vincada uma retórica de cariz mais político, mas o saudosismo, a exaltação do país e do povo uruguaio como legado histórico e social, bem como a sátira religiosa, estão igualmente patentes. Benedetti não perde a oportunidade de anedotizar a Igreja sempre que pode. Mas é com graça, naturalidade e maestria que o faz. “Deus deixou-nos sozinhos. Deus também gosta que pequemos, desde que o façamos com alegria. Assim pode perdoar-nos alegremente.” Ou “Deus só fala inglês com os protestantes.”

No seu conto Autobiografia (1989), Benedetti escreveu que qualquer vida poderia ser o que fosse, desde que o autor lhe conseguisse imprimir sabor.

“O editor milanês tinha-lhe dito que por agora não lhe trouxesse mais romances. Uma saborosa autobiografia, isso sim. Convence-te rapaz, começou o boom das autobiografias. Esse será o género maior do século XXI. Aproveita já. Não percas tempo. Dante Falconi prometeu-lhe que iria tentar escrever uma, embora lhe tivesse assegurado que a sua vida não era interessante, nem aventureira, nem escandalosa. Toda a vida pode ser interessante ou aventureira ou escandalosa, disse-lhe o editor milanês com um sorriso prometedor, desde que o autor lhe imprima sabor quando a escreva.”

Esta vida de Cláudio, tal como a de Dante Falconi, também não é afinal tão interessante ou aventureira ou escandalosa, mas está repleta de sabor. De sabor e humanidade.

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