O Algarve é "o El Dorado para pessoas em situação de sem abrigo"

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"Maria", 60 anos, foi do Baixo Alentejo para o Algarve em 1986. Como muitos outros alentejanos, ia à procura de emprego, que escasseava onde vivia. O Algarve, na altura a passar pelo primeiro grande boom turístico, pareceu-lhe uma escolha óbvia.

Passados quase 40 anos, Maria, como pediu à Renascença para ser chamada, "para não ser identificada pela família", está a viver num quarto do Centro de Alojamento de Emergência Social (CAES) de Faro. Foi aí colocada depois de passar meses a dormir na rua.

A história de Maria "é longa", avisa, antes de a começar a contar. Ao longo de mais de uma hora narra, com detalhe, o caminho que a colocou em situação de sem abrigo.

Quando chegou ao Algarve, encontrou emprego na restauração. Depois fez limpezas. Passou roupa a ferro. "Fiz tudo o que podia", resume.

Pelo meio casou e teve dois filhos, um menino e uma menina. Mas o marido "era mais para a garrafa", admite. Separa-se e acaba a criar as crianças sozinha. O que conseguiu com sucesso, pois foi sempre arranjando trabalho.

Mas, depois, há cerca de 10 anos, surgiu-lhe um problema de saúde. Entrou em baixa médica. Quando o prazo acabou, passou para o subsídio de desemprego. E, terminado este, começou a receber o Fundo Social de Desemprego. "300 euros, que tinham de chegar para pagar a renda da casa e tudo o resto", diz. Perante as dificuldades, deixou de pagar a renda, "até porque a casa não tinha condições, até chovia lá dentro", explica.

O caso passa para a justiça e o tribunal ordena-lhe que saia da habitação. Vai então viver com uma familiar do ex-marido. Mas as duas mulheres não se entendiam. A solução seguinte foi rumar a Inglaterra, onde o filho estava emigrado. Aí, é com a nora que surgem os atritos. E decide voltar ao Algarve.

Estamos já em 2024. Aterra em Faro. "Cheguei com 50 libras no bolso e não arranjei onde dormir. Fui à polícia mas disseram-me que ali não podia ficar", recorda. Nessa noite, deambulou pelas ruas da capital algarvia. Estava sem abrigo.

A partir daqui, a memória falha-lhe. Lembra-se de acordar no hospital. E de lá sair, novamente para as ruas. Dormiu em bancos de jardim, comeu no refeitório social da Santa Casa da Misericórdia. Conta que, em algumas noites, foi alvo de assédio. E, pelo meio, levaram-lhe a mala onde guardava os poucos pertences. Finalmente, decidiu rumar a Espanha.

É aí que o CAES a encontra, ao fim de um mês a viver nas ruas de Ayamonte. O caso de Maria estava sinalizado e, quando surgiu uma vaga, foram à procura dela, para lhe dar alojamento. É nas instalações do centro, à entrada de Faro, que está a morar, desde setembro passado.

"Nós temos 140 camas em toda a região e estamos sempre com a lotação completa. Em lista de espera para alojamento temos entre 70 a 80 pessoas, se calhar mais", calcula Elsa Morais Cardoso, vice-presidente do CAES, à Renascença. "Desde a pandemia que nunca sentimos um decréscimo. No período pré-pandemia tinhamos 14 camas. Agora são 140 e não conseguimos dar resposta a todos os pedidos que temos", lamenta.

Os números do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) confirmam uma realidade económica difícil no Algarve. É a região de Portugal continental com maior percentagem da população em risco de pobreza e exclusão social. Em 2023, quase um quarto dos residentes (22,6%) estava nessa situação, revelam os dados do INE. E este é um problema que afeta pessoas de todas as idade.

"Se quisermos traçar um perfil de quem está em situação de sem abrigo, não conseguimos", continua a vice-presidente do CAES. "Há homens de meia idade, há mulheres grávidas ou com filhos pequenos, há jovens que cortaram os laços com a família, há os migrantes. E cada pessoa é uma situação", descreve.

"Estamos todos a um minuto de ficar em situação de sem abrigo, já não existe o clássico. Posso ser eu, amanhã. Uma pessoa pode ter uma vida estruturada economicamente, laboralmente, familiarmente e, no mês a seguir, ter a vida desfeita por uma questão de saúde, por exemplo", alerta. "Já ninguém tem redes de suporte familiar, de apoio. Chegam-nos pessoas sem qualquer retaguarda familiar", refere.

Elsa reconhece que o preço da habitação, no Algarve, é um dos principais problemas (um quarto pode custar 400 euros ou mais por mês). A que se junta o trabalho precário, muitas vezes sazonal (apenas no verão, quando o turismo, o principal motor económico da região, oferece mais empregos) e mal remunerado.

"As pessoas podem ter emprego e, mesmo assim, o dinheiro não chega para conseguirem pagar um local onde viver", garante. "Não conseguem chegar lá com o ordenasdo mínimo nacional. Às vezes, nem com dois ordenados mínimos".

Ainda assim, a região é o destino escolhido para muitos dos portugueses que se encontram em situação de sem abrigo, um fenómeno que a vice-presidente do CAES explica: "Somos o 'El Dorado' para as pessoas em situação de sem abrigo. Existe um fenómeno em que as pessoas que ficam sem abrigo no Porto ou em Aveiro, por exemplo, vêm para o Algarve, por razões climáticas - aqui a noite passa-se melhor - mas também pela empregabilidade, há a ideia de que no Algarve é fácil arranjar emprego".

Perante tudo isto, Elsa apela a que quem esteja em risco de ficar em situação de sem abrigo contacte as entidades oficiais. "Existem respostas sociais e funcionam", garante.

No caso do CAES, o objetivo é responder a situações de emergência e, em princípio, o alojamento devia apenas ser temporário. Mas há quem vá ficando, enquanto os técnicos do centro procuram encontrar soluções para reintegrar as pessoas na vida ativa.

"A exclusão social é uma expiral da qual é muito difícil sair", frisa Elsa Morais Cardoso, "além do nosso trabalho, é preciso que a pessoa esteja motivada para fazer este caminho". O CAES, que funciona com o apoio financeiro do Estado e em cordenação com os serviços sociais públicos, apresenta uma taxa de sucesso (pessoas reintegradas na sociedade) de cerca de 30%. "E é muito boa", assegura.

E voltemos a Maria. Entre a reforma por invalidez e o que tem direito por viuvez (porque o ex-marido entretanto morreu e o divórcio nunca foi oficializado) recebe pouco mais de 500 euros por mês. "Eu quero arranjar um quarto, que é quase impossível. Se pedem 400 € por um quarto, como é que eu vou fazer? E ainda pedem fiança de dois meses".

Quer também arranjar trabalho "a passar a ferro em casa de alguém, duas ou três vezes por semana". E assume a resignação: "Estas são as minhas perspetivas. Não tenho mais perspetivas. Com a idade que tenho já, não me importo com mais nada. É o que vier para a frente, é o que eu abraço."

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