O fogo roubou-lhes teto e trabalho. Albergaria ainda está a acordar do pesadelo

4 horas atrás 22

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 Catarina Santos/RRChamas destruíram traseiras da casa de Albertina de Jesus Duarte, em Vila Nova de Fusos. Foto: Catarina Santos/RR

Um jarro florido e um amontoado de canecas brancas sobressaem no meio das cinzas. Junto ao que costumava ser uma entrada, uma panela ainda repousa em cima do fogão queimado.

Lurdes Almeida avança entre o entulho negro, na freguesia de Valmaior, Albergaria-a-Velha. “Parecia um explosivo. Comecei a gritar pela minha cunhada, que andava aqui a apagar. Eu disse: ‘Ó Fernanda, olha a tua cozinha’. Quando foram, só teve tempo de tirar a garrafa do gás para não ser pior. Não tem explicação.”

A casa onde vivia a cunhada de 66 anos, um irmão de 69 anos e um neto de 19 anos ficou completamente destruída. Os três habitantes estão agora realojados com familiares, numa freguesia a 12 quilómetros.

“Era uma casa de família, nós estávamos aqui todos juntos”, conta Lurdes, de 68 anos, cuja casa fica mesmo ali a dois passos. Na noite de segunda-feira, tinha ido com o marido e o filho acudir outras casas na vizinhança. “Quando nós nos demos conta, já estávamos rodeados de fogo. A gente já saiu... Olhe, por tino.”


 Catarina Santos/RRLurdes tentou avisar a cunhada de que a cozinha estava a arder. "Já só teve tempo de tirar a garrafa do gás para não ser pior.” Foto: Catarina Santos/RR
 Catarina Santos/RRA casa onde vivia o irmão de Lurdes, a cunhada e um neto ficou inabitável. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RROs três habitantes estão temporariamente alojados em casa de familiares, a 12 km. Foto: Catarina Santos/RR

 Catarina Santos/RRDa cozinha não restou quase nada, mas uma panela continuava imóvel em cima do fogão queimado. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RR“Um trator também ardeu, ferramentas que estão aí... um compressor, essas coisas todas. Ardeu tudo”, conta Lurdes Almeida. Foto: Catarina Santos/RR

Regressaram e já havia chamas perto de sua casa. “Foi aquele espaço de pegar numa mangueirita e jorrar água para o curral das galinhas, que estava a arder o chão. Apaguei aquilo e vim botar ali, porque vinham carvões a arder e a cair em cima do telhado”, recorda, ainda sem conseguir digerir o susto.

“De caminho também ardeu ali o jardim-escola, os balancés das crianças brincarem, era chão, era relvados a arder, era tudo”, conta Lurdes, enquanto repete, uma e outra vez, que “não há explicação”.

"Nunca me lembro de nada assim. Nunca. Foi uma coisa que não dá... não dá para explicar nada. Dá tristeza. As pessoas ficam com aquela imagem triste... Não tem explicação”.

Os serviços da junta de freguesia já estiveram no local e a cunhada de Lurdes foi recebida por uma assistente social na Câmara Municipal de Albergaria-a-Velha. O autarca António Loureiro tem passado os últimos dias nestes contactos e contabiliza, até ao momento, 41 famílias desalojadas. A maioria está temporariamente em casa de familiares ou amigos.

Há ainda a registar, pelo menos, sete empresas e uma associação social danificadas. Uma idosa de 80 anos e o filho de 50 estão hospitalizados com queimaduras. Dez casas devolutas, também atingidas pelas chamas, terão de ser rapidamente intervencionadas pela câmara por motivos de segurança pública.


 Catarina Santos/RRPoste de eletricidade pendurado numa árvore, ainda a arder. Foto: Catarina Santos/RR

Esta quinta-feira, o ministro Adjunto e da Coesão Territorial afirmava, na SIC Notícias, que esperava “no início de outubro” estar em condições de “definir a natureza dos apoios” a dar a famílias e empresas afetadas pelos incêndios. "Nesta fase há um guião para que as câmaras municipais façam a descrição e a quantificação dos prejuízos", afirmou Manuel Castro Almeida.

Uma fábrica e quatro cavalos consumidos pelas chamas. “Não apareceu ninguém”

As estradas que ligam as seis freguesias de Albergaria-a-Velha fazem-se num ziguezaguear entre postes de eletricidade tombados, árvores carbonizadas e pedaços de madeira ainda a fumegar.

Em grande parte das povoações, há várias casas emolduradas por um tapete negro que chega mesmo ao limite das paredes, deixando adivinhar o desespero que o fogo causou nos habitantes. Pontualmente, há uma ou outra casa completamente consumida pelo fogo, como a da família de Lurdes.

Na freguesia de Branca, junto a Ribeira de Frades, Luís Capela passa pela Renascença a alta velocidade, com a carrinha a levantar pó entre as cinzas. Foi cortar uma passagem no caminho para impedir que as éguas fugissem. Os animais estão sobressaltados há três dias.


 Catarina Santos/RRLuís Capela dirige-se às boxes destruídas pelas chamas, onde morreram quatro cavalos. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RRAs éguas sobreviveram todas e os proprietários estão a tentar que se recomponham do susto. Foto: Catarina Santos/RR

Atrás de uma habitação branca de dois andares, há uma quinta com vários animais, entre os quais estavam 30 cavalos. “Quatro não conseguimos salvar. Ficaram mesmo no meio das chamas”, conta o homem de 31 anos.

Ainda há fumo a sair do chão da propriedade, que fica na freguesia de Branca, frente a Ribeira de Fráguas, Albergaria-a-Velha. Da estrutura onde se alinhava uma dezena de garanhões restam apenas algumas traves. Foram os cavalos que deram o primeiro alerta.

"Eles deram logo sinal, até fiquei muito admirada. Porque [o fogo] estava longe, eu consegui ver. Não ouvi barulho, mas eles sentiram”, conta Lara Capela, irmã de Luís. Tem 14 anos e não sabe explicar o que viveu na noite de segunda para terça-feira. “Foi mesmo o pior dia da minha vida.”

O pai tinha uma fábrica de casas de madeira ali ao lado. Ardeu completamente. Mas enquanto estava a tentar defendê-la, as chamas aproximaram-se da habitação, no cimo da colina, onde estava Lara e a madrasta.

"Em casa ficámos sem luz, sem água, fiquei sem bateria no telemóvel, não sabia do meu pai... Não tinha forma de contacto nenhum. Quando tive bateria, tentei ligar várias vezes para o 112... nada. Não apareceu ninguém.”


 Catarina Santos/RRMáquinas consumidas pelas chamas, abaixo da casa da família Capela. Foto: Catarina Santos/RR
 Catarina Santos/RRLara Capela tem 14 anos e ficou sem forma de contactar o pai na noite em que a casa quase ardia. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RREnquanto a propriedade ardia, Luís Capela ficou três horas preso no IC2, sem saber notícias da família. Foto: Catarina Santos/RR

Um camião-grua está carbonizado logo à entrada. O mesmo destino teve uma escavadora e várias outras máquinas. Só não foi pior porque o patriarca da família — Luís Capela, como o filho — investiu no seu próprio carro de bombeiros há uns anos e tinha esse recurso na propriedade.

Mas o cenário piora quando se olha para o fundo da encosta. Da fábrica, que emprega 14 pessoas, restam apenas as paredes.

“Tudo aquilo que é necessário à nossa arte desapareceu”, lamenta Luís Capela, que não conseguiu acudir a família.

“Isto estava a ocorrer e eu estava a 230 quilómetros daqui. Estava em Alenquer. Apercebi-me pelos meios de comunicação de que o fogo estava em Ribeira de Fráguas, consultei a direção do vento e percebi que tinha de arrancar para aqui o mais depressa possível.”

Acelerou, mas apenas para ficar parado no IC2. “Estive três horas na incerteza do que é que se passava aqui em baixo, se eram danos materiais ou se eram vidas da minha família.”


 Catarina Santos/RRUm dos camiões-grua que se incendiaram na propriedade de Luís Capela. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RREsta quinta-feira ainda saía fumo dos restos do que ardeu. Foto: Catarina Santos/RR

 Catarina Santos/RRFábrica de casas de madeira Luís Capela Construções, destruída pelos incêndios. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RRO fogo chegou àquela zona confluindo de duas direções: Palmaz e Sever do Vouga. Foto: Catarina Santos/RR

Não conseguia contactá-los “de maneira nenhuma”, conta. “Foi muito desesperante."

Quando chegou, já não havia nada a fazer pela fábrica. Ainda não conseguiram começar a contabilizar os prejuízos, mas “estamos a falar de muitas centenas de milhar, sem dúvida nenhuma”, garante Luís, enquanto o pai se atarefa de um lado para o outro numa carrinha, sem tempo a perder.

“Dentro daquela fábrica [arderam] dois camiões-grua, à nossa frente outro, ponte rolante, três casas prontas a entregar, máquinas de carpintaria, estufa de pintura, serralharia...”, vai enumerando o filho.

Ainda não foram contactados por nenhuma entidade para averiguar acessos a apoios e não sabem o que o seguro vai cobrir. Para já, a prioridade é "tentar reestabelecer energia e água, para conseguirmos trabalhar e não deixar morrer mais animais”, adianta.

"Logo de seguida vamos apurar com as seguradoras, junto do município e de quem de direito”, assegura Luís, antes de descer a rampa para ver como corre o arranjo do portão que dá acesso a um alojamento turístico da propriedade. A estrutura, que conta com várias pequenas casas, não sofreu danos.


 Catarina Santos/RRUm carro explodiu e as chamas atingiram as traseiras da casa de Albertina de Jesus Duarte, em Vila Nova de Fusos. Foto: Catarina Santos/RR

Seguimos novamente para sul, em direção ao centro do município, e desviamos para a aldeia de Vila Nova de Fusos. Um carro carbonizado distingue-se entre casas que, aparentemente, não apresentam danos.

— Está a fotografar o quê?, pergunta-nos uma mulher idosa do cimo de uma varanda.

— Este carro aqui ao lado. Sabe de quem é?

— É de um homem que mora lá para cima. Devia era ver como estão as traseiras da minha casa, afirma, com a voz a começar a embargar.

Com claras dificuldades de movimento, Albertina de Jesus Duarte pede que aguardemos enquanto desce as escadas. Quando abre o portão do rés-do-chão, avista-se ao fundo o que a fachada intacta não deixava adivinhar.

Um espaço coberto pelas chapas de zinco que sobreviveram abriga objetos parcialmente queimados. Há instrumentos de trabalho e um veículo agrícola, um galinheiro, vários pipos e bidões, antigos currais.

Albertina estava sozinha em casa. O marido está internado há duas semanas e ainda não arranjou coragem para lhe contar o que aconteceu.


 Catarina Santos/RRAlbertina tem 84 anos, tem dificuldades de mobilidade e estava sozinha em casa. Foto: Catarina Santos/RR
 Catarina Santos/RR“Vim à volta e já estava dentro daquele curral, o lume”, conta a mulher, que esgotou a água do depósito e ficou impotente perante as chamas. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RRO espaço que ardeu alberga instrumentos de trabalho e um veículo agrícola, um galinheiro, vários pipos e bidões, antigos currais. Foto: Catarina Santos/RR

“Eu saí à varanda e vejo já lume naquelas terras. Dei dois gritos e fui para baixo. O carro... pfff!” A mulher faz o gesto de uma explosão, referindo-se ao veículo que encontrámos à chegada, estacionado no terreno vizinho. As chamas saltaram para as traseiras da moradia rapidamente. “Vim à volta e já estava dentro daquele curral, o lume.”

Apoiada em duas muletas — sofre de Parkinson e foi operada à anca —, ainda conseguiu pegar numa mangueira, mas quando a água do depósito se esgotou, ficou sem alternativas. Sem luz não tinha como ir buscar água ao poço.

O fogo começava já a subir pela casa. Estourou os vidros das janelas dos quartos e consumiu as persianas, no andar de cima. Um grupo de bombeiros de Vagos chegou mesmo na hora limite, ainda a tempo de arrancar as cortinas e impedir que as chamas entrassem no resto da casa.

Três dias depois, Albertina continua sem luz nem água e tem medo de ligar o gás, porque não sabe se os tubos ficaram danificados. “Tenho ido dormir a casa de uma sobrinha, lá ao fundo”, por receio de “ficar a fazer asneiras” durante a noite, sozinha no meio da escuridão. Mas daí a poucas horas já teria um motivo de alegria


 Catarina Santos/RRO fogo destruiu parte da cobertura de zinco e começava já a subir pela casa. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RRAlbertina tem o marido internado há duas semanas e ainda não lhe contou o que aconteceu em casa. Foto: Catarina Santos/RR

 Catarina Santos/RRChamas destruíram os vidros das janelas dos quartos e consumiram as persianas, no andar de cima. Foto: Catarina Santos/RR Catarina Santos/RRBombeiros chegaram mesmo na hora limite, ainda a tempo de arrancar as cortinas e impedir que as chamas entrassem no resto da casa. Foto: Catarina Santos/RR

A filha, que é professora em Santiago do Cacém, no Alentejo, tinha ligado a avisar que já estava por perto. Tinha só parado no hospital, para visitar o pai, que tem diabetes e anemia da medula. Está ao lado dele e passa o telemóvel para que fale com Albertina.

— Está tudo bem? Eu amanhã falo contigo, está bem?, diz Albertina.

— Tem coragem, recomenda o marido.

— Ai, tenho tido muita coragem. Eu sofri tanto...

Albertina afasta o telemóvel, porque a voz começa novamente a embargar. Reaproxima o aparelho e acelera as despedidas. Não quer que ele desconfie do que se passou em casa.

— Pronto, amor... Até amanhã, está bem?


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