"O maior desafio da amamentação é a falta de apoio especializado"

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A especialista em amamentação Andrea Guerreiro, conhecida por 'Mãe Loba' nas redes sociais, lançou no início do mês do outubro o livro 'Quero Amamentar com Confiança e Conforto - Aprender o essencial e superar os desafios', com o objetivo de ajudar não só as mulheres como as famílias a lidar com esta que pode ser uma das maiores 'lutas' da maternidade.

Ao Notícias ao Minuto, a doula reconhece que um dos maiores mitos associados à amamentação, com que muitas mulheres ainda lidam, é a (falsa) questão do 'leite fraco'. Porém, considera que o maior desafio deste processo é mesmo "a falta de apoio especializado nos hospitais e centros de saúde".

É devido a esta inexistência, à informação contraditória, a um "aconselhamento desadequado" e à falta de apoio que muitas mulheres em Portugal não chegam a conseguir amamentar os seus filhos e "apenas cerca de um quarto amamenta até aos 6 meses" dos bebés.

Questionam-se se é normal que amamentar doa e até quando se deve amamentar

Como é que o seu livro pode ajudar as recém-mamãs e as famílias de hoje em dia a lidar com este tema?

O livro, para além de conter muita informação atualizada apresentada de forma simples oferece, acima de tudo, a oportunidade de o leitor desconstruir as suas crenças em relação à amamentação e a muitos outros temas da parentalidade. É um ótimo livro para quem quer amamentar, para quem vai apoiar (familiares e profissionais de saúde) e para quem não teve boas experiências de amamentação e gostaria de entender o que aconteceu e, até, preparar-se para uma outra experiência.

Quais são as principais dúvidas sobre a amamentação que as mães e as famílias têm?

As famílias têm muitas dúvidas sobre se o leite humano tem qualidade e existe em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades dos bebés. Questionam-se se é normal que amamentar doa e até quando se deve amamentar. Têm muitas dúvidas sobre a 'rotina' de amamentação: de quanto em quanto tempo mama o bebé e qual a duração da mamada. Querem saber o que comprar, como se devem preparar, quem as pode apoiar.

Podem encontrar as respostas a todas estas dúvidas no livro, mas de nada vale responder a todas essas perguntas se não formos mais fundo e compreendermos como chegámos, enquanto sociedade, a um estado de tamanho desconhecimento em relação à amamentação e porque é que tanta da informação que acreditamos ser verdadeira não é rigorosa e nos é prejudicial.

Ainda durante o internamento, as famílias são confrontadas com muitas opiniões diferentes sobre o mesmo assunto, o que é extremamente confuso e as faz sentirem-se inseguras

E os maiores desafios?

Os maiores desafios são a falta de apoio especializado em amamentação nos hospitais (públicos ou privados) e nos centros de saúde. Ainda durante o internamento, as famílias são confrontadas com muitas opiniões diferentes sobre o mesmo assunto, o que é extremamente confuso e as faz sentirem-se inseguras. A primeira semana de pós-parto pode ser extremamente desafiante, atendendo à necessidade de recuperação física e emocional da mulher, privação de sono na sequência do parto e internamento hospitalar, adaptação a uma família em transformação, alterações de rotinas e a subida do leite. É muito intenso e as famílias devem estar bem acompanhadas para começarem com o pé direito.

Numa sociedade em que as mamas são sexo e o corpo das mulheres é objetificado, há muita dificuldade em entender, respeitar e dar visibilidade à amamentação

Ainda há muito tabu em volta deste tema?

Há um tremendo tabu. E esse é um dos tópicos abordados no livro. As pessoas têm até dificuldade em dizer as palavras 'mamas' ou 'mamada' porque estes termos, que designam um órgão do corpo humano e a refeição do bebé amamentado, foram completamente descaracterizados. Numa sociedade em que as mamas são sexo e o corpo das mulheres é objetificado, há muita dificuldade em entender, respeitar e dar visibilidade à amamentação.

E mitos? Muitas mulheres continuam a ouvir 'que têm leite fraco', que é 'normal doer'. De acordo com a sua experiência, quais os que afetam mais as mulheres durante a amamentação?

No livro há um capítulo exclusivamente dedicado a mitos. Os mitos referidos, do leite fraco e de que é suposto doer, são os mais comuns. Mas também há mitos mais subtis que prejudicam as mulheres. O mito de que filhas têm experiências semelhantes às das suas familiares estando, por isso, condenadas, à partida, a uma má experiência de amamentação. O mito de que a amamentação, a existir, deve ser sempre "prazerosa", quando a verdade é que a amamentação (como a maternidade em geral) é ambivalente. O mito de que os profissionais de saúde estão capacitados para ajudar as famílias no que respeita à amamentação (muito poucos estão, se bem que essa realidade está a mudar a cada dia).

As intervenções a que as mulheres e os bebés são sujeitos no parto e no pós-parto inquinam a amamentação desde as primeiras horas

Ainda há muitas mulheres com a intenção de amamentar que acabam por ter uma experiência pouco positiva e desistir do processo?

A esmagadora maioria das mulheres que se prepara para o nascimento do primeiro filho quer dar uma oportunidade à amamentação. Mas a falta de informação, de apoio especializado, de apoio emocional, de apoio logístico (com as tarefas domésticas e o cuidado aos filhos mais velhos), tornam a amamentação muito difícil. Não porque ela seja, de facto, difícil, mas porque as circunstâncias não são facilitadoras. Acresce que as intervenções a que as mulheres e os bebés são sujeitos no parto e no pós-parto inquinam a amamentação desde as primeiras horas.

Apenas cerca de um quarto das mulheres em Portugal amamenta até aos 6 meses dos seus filhos. Há pessoas que acreditam ter sido bem-aconselhadas e não o foram

E depois há o outro lado da moeda, mulheres que se sentem mal porque não conseguem amamentar os seus filhos, apesar de já terem tentado 'de tudo'. O que tem a dizer a estas mães?

Primeiro que tudo, que se sintam vistas e acolhidas. Enquanto profissional da área, não acompanho apenas histórias de sucesso. A Ciência da Lactação ainda está a desenvolver-se e infelizmente não temos resposta para tudo. Há pessoas que apesar de devidamente acompanhadas por uma equipa multidisciplinar não conseguem atingir uma amamentação com conforto.

O que gostaria que se tornasse cada vez mais claro (e daí ter escrito um livro) é que estes casos deveriam ser residuais e lamentavelmente são a maioria. Porque, segundo mostram os estudos, apenas cerca de um quarto das mulheres em Portugal amamenta até aos 6 meses dos seus filhos. Há pessoas que acreditam ter sido bem-aconselhadas e não o foram. Como IBCLC (Consultora de Lactação Certificada pelo IBLCE) recebo, não raras vezes, pessoas que me chegam após terem recibo aconselhamento desadequado por outros profissionais. E quando finalmente chegam a mim ou a outro colega com o mesmo grau de especialização em amamentação, nem sempre é possível reverter a situação a 100%. Nesses casos, ajustamos as expetativas da família: amamentar não tem de ser tudo ou nada. A amamentação pode continuar mesmo quando não se consegue amamentar em exclusivo, por exemplo.

Ainda há muitas mulheres que não sentem apoio nos hospitais (sejam públicos ou privados) para iniciar esta fase da amamentação. De que forma é que isto afeta a segurança das mulheres nesta fase e o que é necessário mudar nas unidades hospitalares neste âmbito?

Há muitas coisas que podiam ser feitas para melhorar o estado atual da assistência. Ter profissionais nos puerpérios exclusivamente dedicados ao apoio à amamentação é urgente. Outro aspeto a melhorar é garantir a pernoita de um acompanhante nos hospitais públicos. Como é que uma mulher a recuperar de um parto, com dor e em privação de sono, consegue tomar conta de si e de um bebé sozinha, em hospitais cujas equipas, de tão reduzidas que estão, não conseguem prestar a devida assistência? É extremamente necessário atualizar os currículos académicos dos cursos de Enfermagem e Medicina, nos quais se aprende perto de zero sobre amamentação. Em Portugal temos apenas uma pós-graduação em Aleitamento Materno, na Faculdade de Enfermagem da Universidade Católica. É muito pouco.

Que tipo de comentários, atitudes (ou falta delas) chegam até si que aconteceram em hospitais e prejudicaram mães e bebés neste processo?

Há pessoas que saem dos hospitais e centros de saúde completamente desacreditadas da sua capacidade de cuidar de um bebé e de o amamentar. Muitas vezes, porque a única solução apresentada para todas as inseguranças dos cuidadores ou para os desafios que surgem nos primeiros dias de vida de um bebé é o leite artificial. Porque chora, porque perdeu peso, porque não se deixa pousar no berço, porque não tem eliminações em número suficiente, porque, porque, porque.

Sei que os profissionais que trabalham nos hospitais e centros de saúde gostariam de fazer diferente e estão esgotados e sem ferramentas, mas temos mesmo de fazer melhor pelas famílias. Perceber o que está a falhar na amamentação ou se não está a falhar nada e a expetativa do profissional é que está desajustada! Os toques sucessivos no corpo da mulher, como apertar as mamas para ver se têm leite, ou comentários sobre características das mamas ou da personalidade da mãe e do bebé também prejudicam a experiência. Amorosidade e presença no cuidado, é disso que as famílias precisam.

"Para cada família, um caminho". Como pode cada família descobrir então o seu?

Sugiro começarem por obter alguma informação na gravidez sobre amamentação, pós-parto e comportamento/desenvolvimento dos bebés amamentados. O meu livro pode dar uma ajuda! O caminho de descobrir que tipo de pai/mãe se quer ser começa na gravidez. Devem olhar para as suas concretas circunstâncias de vida e de saúde e antecipar possíveis dificuldades. E surgindo desafios, é importante obter ajuda profissional verdadeiramente qualificada e não deixar a situação agravar-se.

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