O “risco” e o “medo” de ser do Chega. Como Ventura voltou ao discurso da perseguição ao partido em plena campanha

6 meses atrás 44

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LUSA

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O Chega, durante muito tempo, alimentava a ideia de que existia "medo" entre quem estava próximo do partido, mas foi deixando cair esse discurso. Agora, Ventura recuperou-o com toda a força.

Seja ao som de bombos ou em salas de comício, há muito que os militantes do Chega têm um grito de ordem: “Pouco importa, pouco importa, se eles falam bem ou mal, queremos o André Ventura a mandar em Portugal.” O desejo (e o lema) não é de hoje e vive desde os tempos em que André Ventura ainda era apenas um deputado único na Assembleia da República, mas é o reflexo de um sentimento que se voltou a sentir em plena campanha eleitoral: a perseguição (vitimização, na voz dos adversários) e o regresso do uso das palavras “medo” e “risco”.

Desde 2019, o percurso do Chega é sempre em crescendo e as ambições para as próximas legislativas estão embaladas por sondagens favoráveis ao partido. Mas nem por isso André Ventura deixou de ir buscar ao baú o discurso do tempo do “todos contra nós”, que chegou ao auge no dia antes do voto antecipado, com a teoria de que “está em curso uma tentativa de desvirtuar estas eleições em Portugal”.

O líder do Chega propõe “olho aberto” nas eleições perante as mais de 200 pessoas que se sentaram à mesa de um jantar-comício na Figueira da Foz: “Não nos podem enganar nestas eleições.” Argumentou que há vídeos a circular de “pessoas a dizer que vão anular os votos do Chega e condicionar os votos do Chega”.  Deu até o exemplo de um “membro do Bloco de Esquerda [que] escreveu que iria anular os votos da AD e Chega”, sem concretizar quem era a pessoa do partido coordenado por Mariana Mortágua a que se referia.

Mais do que isso, Ventura contou também que têm chegado ao partido relatos de emigrantes que não receberam boletins de votos ou que “não recebem indicações para votar” e até de “consulados”, dando como exemplo o de Joanesburgo, que “disse pelo Facebook que quem quisesse votar tinha de se inscrever até 10 de janeiro”.

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Em boa verdade, no site da Comissão Nacional de Eleições (CNE) pode confirmar-se que a data criticada por Ventura é, afinal, a que está na lei: “Se está recenseado no estrangeiro, pode exercer o seu direito de voto por via postal ou presencial. Se pretende exercer o seu direito de voto presencialmente, deve manifestar essa intenção (caso não o tenha efetuado em eleição anterior para a Assembleia da República) junto da comissão recenseadora da sua área de residência (consulado ou posto consular) antes do dia 10 de janeiro de 2024.”

E no dia seguinte à noite em que Ventura plantou a tese de que existe uma tentativa de “boicote” às eleições em prejuízo do Chega, Rui Paulo Sousa, dirigente nacional e deputado, chegou-se à frente com palavras ainda mais fortes e para dizer há “muitas pessoas que têm dado a cara pelo Chega e têm sido perseguidas por câmaras municipais, pelo Governo e pela comunicação social”.

Por outro lado, poucos dias antes do arranque da campanha, o Chega colocou a circular um vídeo nas redes sociais em que dizia que uma comitiva do partido tinha sido recebida por tiros em Famalicão. A polícia veio desmentir pouco tempo depois, justificando que os tiros eram, afinal, rateres de uma mota que seguia na caravana, mas a denúncia já estava feita e era o arranque de uma campanha que seguiria no mesmo caminho.

Independentemente dos argumentos, o receio estava instalado e permitia dar seguimento à ideia ideia de vitimização que paulatinamente vinha a ser desenhada por Ventura ao longo da campanha, agarrado principalmente a questões de atualidade e com base numa alegada diferenciação de tratamento entre o Chega e os outros partidos.

Ainda a campanha estava na primeira ação e, em plena arruada na Rua Santa Catarina, André Ventura lançava o primeiro round baseado numa investigação do jornal Público aos financiadores do Chega: “Está tudo absolutamente transparente e tudo absolutamente legal. Espero que façam o mesmo ao PS e ao PSD. Vou estar muito atento a ver se amanhã e depois temos os cheques de João Rendeiro para o PS e do Ricardo Salgado para a AD.”

E não só antecipava que não iria acontecer, como rapidamente concluía: “Sabemos que é só mais um ataque ao Chega, sem qualquer fundamento.” O tema do financiamento ainda voltou à carga durante a campanha e Ventura recordou as próprias palavras para dar conta que não tinha havido novas informações sobre donativos a outros partidos (“Por que é que será que não vi mais nada?”).

O round dois viria logo no dia seguinte quando André Ventura, a reboque da ausência no debate das rádios, fez questão de destacar uma diferença de tratamento para com um dos seus adversários pelo facto de não lhe ter sido permitido entrar à distância: “Registo só que, há umas semanas, Luís Montenegro pediu para fazer um debate na televisão, que é muito diferente do debate da rádio, para poder fazê-lo no Porto, e isso foi autorizado, a mim não foi. Agora tire as conclusões quem as quiser tirar.”

As conclusões vão sendo tiradas pelo próprio, muitas vezes fora dos soundbites usados nos discursos, mas estão sempre presentes. E foi num comício em Coimbra que Ventura recuperou aquela que durante muito tempo foi uma narrativa do Chega: as pessoas têm medo de dizer que são do partido ou que votam no partido. E juntou duas palavras para o fazer: “risco” e “sacrifício”.

“Quero agradecer aos candidatos que se disponibilizaram a dar a cara num momento tão difícil e desafiante para o país e em que às vezes ser do Chega é um risco. Agradecer-lhes o sacrifício, de coração, pelo que estão a fazer”, atirava Ventura, que foi trazendo questões como “eles andam a dizer que nós somos o perigo para a democracia”, uma “ameaça à democracia” — e sempre com a utilização do contraponto entre o nós e o eles: “A única ameaça que somos é aos privilégios que acumularam ao longo dos últimos 50 anos.”

Na Guarda, lembrou os que não contam para encher salas porque “muitos têm medo porque trabalham para a câmara ou porque os pais e filhos trabalham para a câmara ou empresas da zona”, mas foi deixando a garantia de que “o medo que há nas pessoas vai quebrar no dia 10 de março”, com esperança de que o resultado seja capaz de “acabar com a hostilização, as cercas sanitárias e aquilo que fizeram ao Chega”.

Ao longo dos dias na estrada, em que a esmagadora maioria da campanha é feita com Ventura em cima de um púlpito a falar para os seus, o presidente do Chega não perdeu oportunidades para recuperar as acusações que os outros fazem ao Chega e para acusar os partidos, da direita à esquerda, de apenas traçarem uma linha vermelha para “não perderem os tachos”. Discurso após discurso, vai-se justificando e tentando desmistificar ideias: “Falamos de subsidiodependência somos extremistas, falamos dos ciganos somos racistas, falamos de imigração somos xenófobos, dizemos que os impostos têm de diminuir somos sociais-liberais, dizemos que o sistema político está demasiado grande e somos antidemocráticos e perigosos fascistas. É assim que construímos a sociedade ao longo aos últimos 50 anos, isto é uma mordaça cultural.”

“Nas tintas” para “catalogações” e “adjetivações”, Ventura vai seguindo de intervenção em intervenção, embalado pelas palmas e gritos de ordem: “Ah e tal, o Chega, o fascismo, o racismo… eles não querem o Chega e não é por causa do racismo, do fascismos… eles são o triplo do nosso fascismo. Não querem porque não estamos por lugares e eles há 50 anos que só estão por lugares…”

Os apoiantes que tem à frente são avisados e alertados para o que ainda está por vir: “Não esperem misericórdia nos próximos dias, não esperem misericórdia nos próximos anos, vão continuar a atacar-nos com tudo o que têm, da forma mais miserável e baixa que têm.” E a narrativa que Ventura alimenta vai sendo cada vez mais forte à medida que o Chega é isolado pelos outros partidos e não obtém respostas dos adversários nem sequer aos desafios à direita.

A caravana do Chega segue pelo país, receosa de que o voto útil na Aliança Democrática prejudique o partido de André Ventura ou que “PS e PSD voltem a rir-se” se quem está descontente ficar em casa e não for votar. Até lá, o discurso de vitimização não deve ser deixado cair por Ventura, que em tempos procurou mais a normalização do Chega do que a ideia de “todos contra um”.

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