Os «bons compinchas» e a «loucura» na Tunísia: «Eram tantos adeptos nos treinos que nem conseguia falar»

2 meses atrás 64

 Sobre o tiro de partida para 2024/25, Marco Leite abriu o livro de histórias de quase década e meia ao lado de Jorge Costa, numa ligação concluída no final da última época. Com a primeira aventura como «homem do leme» na UD Oliveirense a conhecer os primeiros dias, o antigo treinador-adjunto do «Bicho» recordou o recente sucesso com a subida pelo AVS, o desafio no Académico de Viseu e várias jornadas memoráveis vividas além-fronteiras. 

PARTE I: «Tínhamos de tirar o velhote Nenê do treino»

Zerozero - Puxando a fita atrás, como é que tudo começou para o Marco no mundo do treino?

Marco Leite - Foi um início atribulado. Comecei a fazer um estágio no FC Porto, creio que em 1998. Na altura estudava na faculdade e fiz um estágio na equipa técnica do Freitas, o central do FC Porto. Aquilo não correu lá muito bem e fui adotado, digamos assim, pelo Jaime Magalhães na equipa técnica dos iniciados. Por ali fiquei, tinha tido uns problemas com o falecido Mendes, que era nosso um dos diretores... Na altura, usava cabelo comprido e brinco e tive ali um problema com ele e com o Freitas, Então o Jaime, adotou-me em boa hora e comecei a trabalhar ali. Depois fui para o ali fora. Comecei no futebol profissional com o Manuel Correia, no GD Chaves. Desde aí, nunca mais parei.

ZZ - No Chaves, certo?

ML - Certo. Fui sempre progredindo, estive com o Filipe Moreira nos Dragões Sandinenses. E depois muitos anos com o Ulisses Morais. A partir daí comecei a trabalhar a parte da condição física da equipa, mas também já a aplicar outras valências. Quando integrei a equipa técnica do Jorge [Costa] na época em que estava na Académica (2009/10), com o Ulisses, partimos para a Roménia e, desde aí até hoje. Creio que em 2010.

Marco e Jorge Costa na memorável passagem pelo AEL Limassol @Arquivo Pessoal

ZZ - Conheceu o Jorge Costa e, logo a seguir, seguiram para a Roménia. Como é que foi sair da Académica e partir para um clube da dimensão do Cluj. O que mais o impressionou no futebol romeno?

ML - Houve um crescendo com o Jorge e uma afirmação enquanto treinador-adjunto. O Jorge sempre deu muita liberdade no trabalho e, com a amizade que tínhamos, as coisas proporcionaram-se. Na Roménia, impressionou-me várias coisas. O clube era realmente grande, fantástico. Adorei o país. O primeiro dia foi um choque, porque havia coisas que já não se viram em Portugal há muito tempo... Aquelas cabelagens da eletricidade a passar por cima, coisas que provavelmente se via em Portugal aqui há uns anos valentes atrás.

Já estive lá bastante depois disso e o país evoluiu muito. Continuo a gostar imenso do país. É um país bom, lindíssimo, com uma cultura engraçada, boa gastronomia e um campeonato interessante. Às vezes nem sempre os clubes são muito honestos por via dos problemas financeiros. No início da carreira em Portugal também tive salário atrás e não é por isso que não estou cá outra vez. Não foi um problema. Gostei tanto da experiência na Roménia, que voltámos.

ZZ - Ainda no Cluj, encarreiram em primeiro lugar, mas, à 25ª jornada, são despedidos depois de uma derrota pesada.

ML - Saímos em primeiro, a cinco pontos do segundo, a quatro ou cinco jogos do fim, creio eu. Foi uma derrota pesada, jogaram praticamente todos os romenos da equipa. Na altura, os portugueses estavam castigados, outros lesionados e perdemos o jogo por 5-0 [contra o Rapid Bucareste]. Fomos despedidos. Depois havia quem contasse que fomos despedidos porque tínhamos um prémio muito grande que eles não queriam pagar e que se fôssemos despedidos quatro jogos antes, esse prémio já não contava. Pronto, mitos urbanos...

q Vivi com o Jorge 14 anos praticamente no estrangeiro. Juntos sempre. Todas as vivências que partilhámos juntos: tristezas, derrotas, as vitórias, mágoas, problemas da vida que toda a gente tem, as dificuldades. Foram períodos fantásticos

Marco Leite

ZZ - O despedimento foi precipitado?

ML - Tivemos uma época super tranquila, tínhamos uma belíssima equipa, um grupo fantástico. Jogadores como o Cadu, o Beto, o Godemèche, o De Zerbi foi nosso jogador lá! Tínhamos o Nuno Diogo, o Rui Pedro... Malta porreiríssima, bons homens, bons jogadores... o Camora também, que lá ficou, ainda lá está, malta que não me esqueço deles. Peço desculpa se me estou a esquecer de algum... o Sougou, fantástico. Fizemos um belíssimo campeonato, portanto, estava à espera que fôssemos campeões, como foram.

ZZ - Esse momento de aperto ajudou a fortalecer uma relação já boa com Jorge Costa?

ML - Sim, fortaleceu muito. Vivi com o Jorge 14 anos praticamente no estrangeiro. Juntos sempre. Todas as vivências que partilhámos juntos: tristezas, derrotas, as vitórias, mágoas, problemas da vida que toda a gente tem, as dificuldades. Foram períodos fantásticos, gostei muito.

ZZ - Tanto é que decidiram permanecer por lá, numa curta aventura no Gaz Metan.

ML - Quando saímos do Cluj, o Jorge não continuou, não quis trabalhar logo a seguir e quem ficou no Gaz Metan fui eu. Fui proposto por um dirigente do Cluj. Precisavam de um adjunto e eu fui com a ressalva que se o Jorge trabalhasse eu sairia e continuaria com ele. E assim foi: o Jorge foi para o Chipre, chamou-me e eu fui.

ZZ - Numa altura em que vários jogadores portugueses lá jogavam há alguns anos. Como foi a experiência?

ML - Fomos para o o AEL Limassol e tivemos outra experiência fantástica com inúmeros jogadores. O Orlando Sá, o [Marco] Airosa, o Carlitos. Tivemos uma série de malta que também nos ajudou imenso. Com o Orlando, ainda hoje tenho uma grande amizade e um grande carinho por ele. Foi realmente uma pessoa e um jogador que me marcou. É uma joia de rapaz. Quando chegámos, o Orlando estava, um bocado encostado pelo treinador de então e nós, basicamente, não digo ressuscitar, porque o Orlando não precisaria disso, mas ajudámos bastante.

O Orlando vivia muito connosco. Vivia em Limassol e nós, quando fomos para o Anorthosis, ficámos em Larnaca e ele ia ter connosco depois dos treinos jantar connosco. Foram tempos muito porreiros. Fizemos um campeonato maravilhoso e fomos à final da Taça do Chipre e jogamos Liga Europa [no AEL Limassol]. Foi outro grande trabalho que o Jorge e nós fizemos.

ZZ - Imagino que tenha sido inesquecível a campanha europeia.

ML - Jogámos com o Marseille, com o [Borussia] Monchengladbach e Fenerbahce. Fizemos uma belíssima campanha. Ganhámos ao Marseille 3-0 e perdemos só por 1-0 com as outras equipas que eram efetivamente muito melhores que nós. Então em termos de orçamento, então nem se fala.

Após passagens por Roménia e Chipre, seguiram-se aventuras em França e Índia @Arquivo Pessoal

ZZ - Num país pequeno, uma ilha, o que tem a dizer do futebol cipriota?

ML - O futebol cipriota surpreendeu-me. O campeonato não o achei mau, às vezes um bocado desorganizado, mas com boas equipas. O APOEL tinha equipas que se batiam muito bem na Europa. APOEL e Omonia eram equipas com algum poderio financeiro e belíssimos jogadores. Já o país era muito bom... até era um crime haver futebol profissional, um país onde pensávamos estar sempre de férias. Bom tempo, praia o ano inteiro, turistas por todo lado, aquilo era complicado de trabalhar. [risos]

Mesmo assim, conseguimos ir à final da Taça do Chipre que infelizmente perdemos no prolongamento. Falhámos um penálti aos 89' pelo Vouho, que na altura tinha sido nosso jogador na Académica. Ele falha um penalti no último minuto do jogo e vamos para o prolongamento. Perdemos com um remate que bateu nas costas do Paulo Sérgio e perdemos o jogo assim.

ZZ - E chega a hora de rumar ao Anorthosis. 

ML - Um belíssimo clube, com uma estrutura e uma cultura diferentes. O clube é de Famagusta, que tinha sido ocupada pela Turquia. Aquela malta dali da zona vivia intensamente o clube e sentia muito a falta da zona de Famagusta, que ainda hoje está ocupada e fechada aos cipriotas. Faz um bocado de confusão, porque aquilo é a melhor praia que o Chipre tem em frente a uma cidade que está completamente deserta. É uma cidade fantasma em cima da praia e da areia. É uma coisa absolutamente incrível, mas que ninguém pode entrar. Está vedada por arame farpado e muros.

ZZ - Onde jogavam?

ML - O clube tinha migrado dessa zona e tinha-se sediado em Larnaca.

ZZ - E a nível de adeptos?

ML - Tinha muitos! Eram adeptos fervorosos. Era basicamente como a malta do Porto e de Lisboa, sem ferir qualquer tipo de suscetibilidade, mas era um bocado assim. Um bairrismo muito forte, viviam intensamente a cidade, não era só o clube, mas também com uma ligação muito forte à região.

ZZ - Depois desse oásis no Chipre, dá-se o regresso a Portugal para salvar o Paços de Ferreira, que na época anterior tinha vivido a melhor temporada da história. Como foi regressar naquele contexto?

ML - Foi proposto ao Jorge fazermos 10 jogos e acabámos de conseguir safar o Paços num play-off curiosamente contra o Aves. Safa o Paços e passado uns anos largos sobe o Aves [ndr AVS].

ZZ - Missão concluída, dá-se nova saída, desta vez para o futebol africano, mas para um contexto diferente como a da seleção do Gabão. 

ML - Quando saímos do Paços, estávamos convencidos que íamos ficar... A melhor coisa que nos aconteceu foi não ficar. O convite não surgiu porque, entretanto, o Paulo Fonseca ficou disponível e eles optaram por ficar com o Paulo Fonseca e bem. Fomos para a seleção do Gabão e foram quase três anos fantásticos numa seleção recheada de grandes jogadores e onde fizemos mais uma vez história. 

Sfaxien foi o único clube africano que Marco Leite e Jorge Costa representaram @Arquivo Pessoal

ZZ - Qual foi o sucesso?

ML - Nunca se tinham apurado em primeiro para o CAN. Foram duas vezes apurados em primeiro com seleções complicadas como a Burquina Faso, Angola, no segundo ano a Costa do Marfim e por aí fora. Na fase final do torneio, as coisas não correram tão bem, mas trabalhar em África, primeiro estranha-se, depois entranha-se. Estávamos satisfeitíssimos lá e viemos embora meramente por um capricho. Tínhamos renovado de boca,  não tínhamos assinado, mas eles cumpriram com tudo. Acabámos por vir embora de uma forma, na minha opinião, estúpida, mas enfim, é o que é. Temos que respeitar as decisões de quem manda.

ZZ - Gostaram tanto de África que regressaram lá, neste caso, para o futebol de clubes e para o Sfaxien.

ML - Sim. Na altura em que fomos para o Sfaxien, o clube era fantástico. É um Sporting lá da zona, um clube mesmo muito bom, só que tem um problema: é muito desorganizado. No primeiro ano, apanhámos uma direção que era fantástica. O clube estava muito melhor organizado que da segunda vez que lá fomos. Era uma loucura. Tínhamos tantos adeptos no treino a ver-nos, quase nem se conseguia falar com o barulho.

Na segunda passagem foi horrível. A direção era muito fraca e tivemos de vir embora. Já não aguentávamos mais as pessoas. O campeonato é um campeonato muito mal organizado, com péssimas condições em alguns estádios. Três ou quatro bons clubes, o resto é muito mau. Eu não gostei... O país é porreiro, vivemos bem, fomos bem tratados, mas [o clube] é desorganizado, com atraso nos pagamentos. Difícil, difícil.

qTivemos dois ou três jogos que, por momentos, podia ter-nos deixado na liga. Estivemos a ganhar e no último minuto empataram. Foi o suficiente para não manter o Tours

ZZ - Mas a ter em conta no que toca à qualidade dos jogadores?

ML - Os jogadores, sim. Tivemos jogadores com muita qualidade. Existem na Tunísia jogadores com muita qualidade. Agora, o campeonato é que deixa muito a desejar.

ZZ - Retorno à Europa, momentaneamente para o Arouca e vão até França, ao Tours. Mesmo numa segunda divisão, nota-se o facto de França ser um país dos Big-5?

ML - A segunda liga francesa é muito boa, tem muita qualidade. É bem organizada. Adorei viver em França. Fomos para lá a convite do empresário, João Araújo. Todos ficámos entusiasmados com o convite e decidimos aceitar. O Tours tinha cinco pontos a meio do campeonato. Portanto, estava praticamente descido e mesmo assim fizemos, creio que 25 pontos [18 pontos] na segunda volta, com a mesma equipa, sem reforços... e tivemos que mandar muita gente embora.

Tivemos dois ou três jogos que, por momentos, podia ter-nos deixado na liga. Estivemos a ganhar e no último minuto empataram. Foi o suficiente para não manter o clube. As coisas ficaram bem feitas e surgiu um convite para ficar em França, mas, com um convite melhor em termos financeiros, o Jorge apostou nisso e lá fomos nós para a Índia.

ZZ - Mumbai City, uma decisão bem exótica.

ML - Muito forte, muito complicada no início. É um país duro porque tens 22 milhões de habitantes numa cidade como Mumbai. Não era fácil viver lá. O centro é muito bonito, é uma cultura muito, muito interessante. O segundo ano foi muito melhor em termos de estabilidade emocional. Estávamos adaptados. Mas é um país difícil. Para irmos ao centro perde-se sempre muito tempo, o trânsito é um caos. Para fazer quatro ou cinco quilómetros, perdemos quase duas horas.

ZZ - E a nível futebolístico, muito distante da cultura europeia e sul-americana?

ML - Em termos futebolísticos está muito estrangeirado. Há muito estrangeiro a jogar no futebol indiano. As equipas têm muitos com qualidade, o campeonato tem qualidade e é muito bem organizado, mas é diferente de facto... À beira da Tunísia aquilo é uma maravilha. 

ZZ - Tinha jogadores como Paulo Machado e reencontrou Sougou no Mumbai City. Jogadores que certamente nivelavam o futebol por cima.

ML - Muito, muito. O Paulo Machado, o Sougou, o Rafael Bastos: esses três faziam muita diferença. O Sougou vinha quase de um ano sem jogar e contratámo-lo e nessa época. Acho que faz 16 golos, ou 14 golos, algo nesses moldes.

ZZ - O Rafael também tinha estado no Cluj.

ML - Por isso é que o fomos buscar. Tinha imensa qualidade. Era um jogadorzaço. Craque. Eram três bons compinchas. Três bons malandros que qualquer treinador gosta de ter numa equipa. À imagem daqueles que nós tivemos este ano no Aves.

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