PALAVRAS À SORTE | Compreender o tema Cristiano

2 meses atrás 63

«Palavras à Sorte» é a rubrica diária dos jornalistas do zerozero durante o Euro 2024. Todos os dias, na Alemanha ou na redação, escrevemos um apontamento pessoal sobre a competição e todas as sensações que ela nos suscita.

As minhas últimas linhas na Alemanha são relativas a um tema que extravasa não só o Europeu que ainda decorre, como também quaisquer fronteiras mediáticas. O tema já há algum tempo se fala por cá - portanto, mentira a teoria de que não se discute - e chegou agora a várias outras pátrias que se apropriaram do assunto para também o discutirem. Cristiano Ronaldo e a sua continuidade ou não na seleção.

Desde logo, qual espelho da sociedade, a tendência é a de extremar. Neste caso, do endeusamento da maior figura do futebol português até à intolerância em vê-lo com a camisola nacional. Considero-me um moderado, mas, acima de tudo, procuro ser ponderado e compreensivo. Consigo encontrar, em argumentos que não abraçam o extremo, visões válidas nos dois lados. Tentarei dar a minha, que não espero que seja aprovada, mas que conto que seja respeitada - um adjetivo a rarear, por estes dias.

Fui defensor - quem me ouve regularmente no podcast Ataque Rápido poderá confirmar - de que o fim de ciclo de Cristiano Ronaldo deveria ter acontecido no final do Mundial. Fernando Santos fez o mais complexo (numa altura de aparente maior instabilidade emocional do capitão do que agora) e ambos incompatibilizaram-se. Saiu o Engenheiro e, de saída do futebol europeu e com uma má imagem na despedida do Catar (sozinho pelo túnel, enquanto a equipa parabenizava Marrocos e aplaudia o apoio dos adeptos), o cheiro a despedida sentia-se por todo o lado. Martínez, que aparenta ser um agregador e alguém que privilegia o bem-estar individual dos jogadores em busca do bem comum coletivo, optou por resgatá-lo.

A partir daí, teria de ser até ao fim - salvo alguma lesão. Ou seja, até ao Euro, ainda para mais com o rendimento estatístico (sublinho, estatístico) de alguém capaz de marcar 50 golos por ano em tão avançada idade. 

Ora, há algo que sobra depois deste Europeu: a probabilidade agora para que surja um fantasma chamado Cristiano (enquanto jogar) é manifestamente menor. O que não seria se o capitão não fosse incluído na convocatória. Ou mesmo se fosse suplente. Ronaldo deixou de ser um fantasma para a equipa - se tivesse saído em 2022, os números conseguidos na Arábia iriam sempre pairar sobre a seleção. Ao primeiro jogo sem golos, quão criticado seria Roberto Martinez por ter prescindido da maior figura da história do futebol português e uma das maiores do jogo?

E, como podem ler, nada tem a ver com gratidão. A gratidão está nas homenagens em vida, nos atos de reconhecimento, nos prémios e galardões, mas não nas presenças em onzes. Eusébio, Futre e Figo não precisaram disso. Nem o quereriam. Cristiano Ronaldo também não precisa.

Esteve pela história, pela importância, pela influência e também pelo mérito. Reconheço-o indubitavelmente. A seleção precisava de Cristiano e o Europeu também. Só que precisava de outro Cristiano e de outro Martinez.

Também não é novidade que me insurgi contra a sua utilização contra a Geórgia, numa decisão desnecessariamente arriscada, pela exposição do jogador a um problema crescente que se via em toda a sua linguagem corporal, a falta de golo para os recordes que o perseguem (não, não é assim), mas sobretudo pela gestão da equipa, recuperando uma sensação que parecia estar a desaparecer relativamente a um tratamento privilegiado, mesmo que em detrimento do bem-estar coletivo. No que deu? No deprimente espetáculo dado por Cristiano contra a Eslovénia, em que a tal obsessão pessoal lhe toldou o espírito coletivo que aparentava querer abraçar. A palmada de Oblak foi um autêntico despertar para Cristiano (restabelecer-se-ia contra a França, é verdade), atónito com o choque de realidade, tão visível nas incessantes lágrimas e num lote final de 15 minutos em que se absorveu no desalento pessoal e ignorou a necessidade coletiva. Tinha a braçadeira…

E aqui chegamos a um ponto crucial na minha reflexão. Um ponto que não tem fontes de jornalista, só perceção. A braçadeira. Cristiano foi tornado líder demasiado cedo, ainda no tempo de Scolari. No auge da sua pujança, conseguiu que todos os da sua geração o seguissem, num formato de religião em jeito de seleção. Foi ele quem fez com que, não interessava o grupo, treinador ou adversário, o português passasse a não ter medo de acreditar. «Sim, mas Portugal tem Cristiano… e outros»

A vida do capitão foi esta por mais de uma década. Pepe seguiu-o sempre. Miguel Veloso, Postiga, Patrício, Moutinho ou Bruno Alves também, enquanto puderam. Só que agora a geração já é outra. De repente, Cristiano tem ao lado Pepe, Patrício (terceiro guarda-redes, o que me parece uma bela forma de lidar com alguém que foi tão importante, pese embora ter sido suplente da Roma nos últimos meses)… mais nenhum dos seus. Vê, depois, uma geração diferente, que o idolatrou na televisão e que cresceu sob o barómetro dos «novos Ronaldos», mas que já tem comportamentos totalmente diferentes como futebolistas. 

Não tem a ver com ser mais ou menos talentosa. É diferente. E, porque também lido com a liderança de uma equipa, não creio que a forma de liderança egocêntrica de Cristiano (porque a isso também foi habituado pelos da sua geração) possa ter frutos. Hoje em dia, um líder que esbraceje, proteste, reclame constantemente e não apresente o outro lado da moeda, muito dificilmente tem sucesso. Veja-se como atua Ruben Dias, o mais provável líder de futuro, que bebe da liderança corporativista e motivacional de Pepe. O outro lado da moeda é o apoio imediato na adversidade, o incentivo no mau passe ou na opção de rematar em vez de passar, o elogio público que Diogo Costa merecia depois da Eslovénia. 

Cristiano Ronaldo nunca foi genuinamente esse líder, pese embora alguns momentos esporádicos com um toque - aos meus olhos - artificial. Talvez por isso, também nunca senti nos colegas da nova geração uma devoção que não fosse, também ela, artificial. 

Este é, a meu ver, o maior sinal de que o fim chegou. Os indicadores não indiciam que se vá adaptar. 

Caso assim não aconteça, o que é provável, visto que não há mensagens de despedida, aqui estarei na missão de tentar compreender a razão para tal. Porque a haverá, disso não tenho qualquer dúvida.

P.S.: Neste artigo, optei por não valorizar o assunto Cristiano Ronaldo como marca. Talvez até fosse o exercício mais fácil e talvez se encontraria aí a melhor explicação. Provavelmente, é a maior marca portuguesa, mas merece ser analisado como futebolista, que nas camisolas vendidas não faz sentido julgá-lo. Sempre conseguiu gerir as duas vertentes demasiado bem (e tantos são os exemplos opostos) para que lhe seja apontado o que quer que seja. Muito menos entro na vertente familiar.

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