Passe verde e o inferno na linha

9 horas atrás 20

Quem anda de comboio diariamente conhece bem a frase difundida sobre as almas exaustas junto à linha: “pedimos desculpa pelos incómodos causados”. Ela condensa a imagem de um Estado ineficiente, frio e desumanizado.

Por muito positivas que possam ser as mensagens institucionais e as intenções de aquisição de novo material circulante para reforço da actual capacidade ferroviária nacional, as percepções dos passageiros devem valer de alguma coisa (mesmo reconhecendo que as percepções possam variar de pessoa para pessoa). E valem seguramente mais do que as percepções de alguns deputados que parecem legislar desligados da realidade no terreno.

Um utente regular do transporte ferroviário em Portugal enfrenta todos os dias a imprevisibilidade dos horários, a falta de informação em longos momentos de espera (dentro e fora dos comboios), a supressão de serviços, a força massiva dos sindicatos com as suas greves prolongadas, a crescente escassez de lugares, a rápida degradação dos espaços comuns e a falta de espaço para circulação dentro das carruagens, sobretudo devido ao intenso fluxo de turistas que carregam bagagens muito volumosas.

Em primeiro lugar, existe um desajuste entre a oferta e a procura. Em segundo, é notório que o próprio Estado tem fraco brio em preservar uma ferrovia que atenda respeitosamente, em pontualidade e comodidade, às necessidades dos seus cidadãos, à altura de um país dito civilizado.

Face a este estado de aparente inércia e ineficiência, é necessário que se realize um ajuste do lado da capacidade de oferta, esperando que o fluxo de pessoas não se torne incomportável. Parece fácil de entender, se estivermos habituados a pensar nesta lógica. Porém, os portugueses não foram habituados a pensar na lógica dos preços como sinais de mercado e são facilmente enredados por propostas impossíveis de concretizar ou altamente ineficientes e lesivas no longo prazo.

Apesar de serem muitos fortes na gastronomia, muitos portugueses continuam a acreditar que é possível fazer omeletes sem ovos. Se um determinado bem é muito caro, não compreendem que é caro por ser raro e precioso, mas esperam que o governo baixe o seu preço por decreto. Se um governo prometer almoços grátis para sempre, poucos desconfiam de onde vem o dinheiro, se essa prática é sustentável, ou até qual a verdadeira intenção de um governo que oferece almoços.

Foi neste espaço de iliteracia e de laxismo socialista que Montenegro encontrou espaço para presentear o país com um truque eleitoralista muito imprudente, o designado “passe ferroviário verde”. Este passe oferece a possibilidade de circular nos comboios Intercidades durante 30 dias consecutivos pela módica quantia de 20€ (ou durante 60 dias por 40€, ou 90 dias por 60€), com possibilidade de reserva antecipada no máximo de 24h. Para quem conhece os preços em vigor de uma viagem única, o caos é auto-explicativo. É fácil de prever toda a enchente de passageiros que trocarão os sobrelotados comboios regionais pelo adicional conforto do Intercidades.

Se Montenegro ou Pedro Nuno Santos sugerissem a atribuição de um “cheque espacial” a cada português para ir à Lua, ninguém acharia estranho ou desadequado, especialmente se a medida fosse financiada por fundos europeus. Seria decerto uma medida consensual no momento da votação, em nome da mobilidade, da igualdade, da sustentabilidade, e de todas as palavras de ordem que mais convenham no discurso político.

No fim da festa, quando o eleitoralismo e a imprudência financeira levam à degradação de certos serviços e bens, lançam-se as culpas aos privados ou à conjuntura internacional e ninguém se lembrará de como tudo começou. Só se lembrarão que um determinado governo fez tudo por tudo para pôr as pessoas a andar de transportes públicos (nunca mencionando os portugueses que tiveram de tirar o carro da garagem para escapar ao inferno ferroviário porque, lá está, a política vive de percepções e slogans).

Note-se que é decisivo apostar na coesão territorial e na mobilidade das pessoas para reduzir a pressão nas áreas urbanas litorais. Mas esta medida deve justificar inquietação e dúvidas pelo momento e pelas circunstâncias em que entra agora em vigor. Poderia ser uma medida meritória num contexto de renovação e de expansão da capacidade. Porém, na situação em que estamos, o passe verde ferroviário tem o potencial de entupir completamente o serviço e de condenar os utentes a toda uma nova série de “incómodos causados”, pelos quais os altifalantes das estações pedirão desculpa num tom de cínica inimputabilidade.

O problema é que os governos de matriz socialista gostam muito de dar passos maiores do que a perna para aliciar o eleitorado e para se exibirem internacionalmente como cumpridores exemplares das metas políticas da moda. E o último grito da moda, como sabemos, é a sustentabilidade ambiental, pelo que existem palavrinhas mágicas e versáteis, como “verde”, “sustentável”, “descarbonização” a que é preciso redobrar as atenções, já que, como a tradicional palavrinha “social”, são habilmente encaixadas em todo o lado para dar miolo a relatórios e powerpoints e enfeitar discursos, quando não passam de um embrulho barato para fazer aprovar embustes à pressa e sem discussão.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

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