Pepa no Catar: «Quem não tem jogo de cintura, aguenta duas semanas»

7 meses atrás 60

A vista sobre o azul do Golfo Pérsico é idílica. Pedro Miguel Marques da Costa Filipe, apenas Pepa, abre a janela ao zerozero e exibe o paraíso esculpido pelo Homem em Doha. A capital do Catar junta um mar manso a edificações exóticas, de abrir a boca de espanto. Modernidade oriental, sim, mas a piscar o olho ao mundo do oeste. Aos 43 anos, o treinador do Al Ahli é um homem de ideias fortes, convicções inegociáveis, mas está consciente do contexto diferente onde agora se movimenta. Fala, por isso, em «paciência e evolução», palavras confirmadas pela evidente melhoria da equipa na liga catari. 

A primeira parte da conversa com Pepa começa e acaba na experiência com o Al Ahli. Revelações, comunicação clara, reflexões mais do que pertinentes. Um mundo novo, uma cultura radicalmente diferente, novos hábitos horários, mas o mesmo fim: jogar bom futebol e ter resultados condizentes. Pepa está desde outubro no Golfo Pérsico, depois de uma experiência intensa em Belo Horizonte, com o histórico Cruzeiro. 

[NOTA: a grande entrevista será publicada em quatro partes diferentes, entre quarta e quinta-feira]

zerozero - Depois de uma passagem pelo Brasil, num campeonato e num país onde há emoção, agitação e calor, porquê o Catar e o futebol catari? 

Pepa - Bem, passar do Brasil ao Catar é como ir do oito ao 80 (risos). É uma diferença grande em tudo. Cultural, social, mesmo a capacidade de entendimento do jogo e física dos atletas é diferente. A própria organização, os árbitros, do público nem se fala. Mas há coisas positivas: a questão financeira - e não fujo dela porque este é o meu trabalho, a minha vida, e assumo isso sem nenhum problema, porque temos de perseguir objetivos e criar estabilidade familiar - e o conhecimento adquirido. Estar numa liga destas dá-nos uma bagagem enorme, temos de arranjar soluções, estratégias, forma de não nos «passarmos». Temos de ter paciência para resolver determinadas situações, às vezes tão fúteis aos nossos olhos, tão ridículas. Mas aqui essas coisas acontecem. É um contexto que nos obriga a lidar com situações em que nunca antes tinha, sequer, pensado. 

zz - Obriga-o a ser um treinador mais abrangente, mais completo?  

qNa primeira semana, só tínhamos treinos no campo de sete. Campo de sete, campo de sete e eu a implorar para irmos para o campo de 11. Chegámos ao campo de 11, tivemos autorização, e quis ver a capacidade deles em campo grande, em campo normal. Aos 15/20 minutos estava tudo morto

Pepa, treinador do Al Ahli

P - Um dos motivos que me levou a sair da formação do Benfica foi querer ir para a «selva». Querer desafios diferentes, estar numa equipa que não está 90 por cento em ataque organizado e que não sofre defensivamente. Ninguém nos fazia sofrer e andar atrás da bola. Na selva temos de ir atrás da carne para sobreviver. Aqui pode não ser, e reconheço-o, um campeonato tão competitivo como outros. Mas está a crescer, principalmente desde a chegada do Antero Henrique [diretor desportivo da Qatar Stars League]. Está a conseguir dinamizar o campeonato e a trazer treinadores e jogadores de qualidade, estão a formar árbitros, mas o crescimento e o conhecimento é bebido de outra fonte, o fruto é comido de outras árvores. No Brasil, na Arábia e em Portugal as árvores são outras. Em resumo: esta experiência vai dar-nos mais capacidade. 

zz - Esteve na Arábia Saudita em 2022. Os países e os campeonatos são muito diferentes?

P - A Arábia é aqui ao lado, mas é bem diferente. Não gosto de dizer que tive azar, mas na Arábia estive numa zona montanhosa, em Ha'il. Aquilo é... algumas estradas, montes, dois ou três Starbucks porque gostam muito de café e pouco mais. Tínhamos a sorte de ter um aeroporto local. Não fazia voos internacionais, mas permitia-nos apanhar aviões para Jidá ou Riade. Aqui não é assim, vivemos em Doha, a capital. Há qualidade de vida, é fantástico. Tem muito turismo, é muito mais ocidental. Não quero ser mal interpretado, não critico nada, apenas digo que é mais parecido com a minha vida, os meus costumes. Mas respeito muito as diferenças. Na Arábia Saudita era um pouco mais fechado. Pouco... para o muito (risos). Mas eu é que era de fora e tive de adaptar-me e respeitar. Há outras coisas que são universais e aqui noto muito: o respeito pelo próximo e, acima de tudo, pelos familiares. Nós, portugueses, temos essa cultura: os nossos pais tratam de nós em pequenos e nós tratamos deles em velhotes. Somos muito chegados à família. 

zz - O Al Ahli estava numa posição muito má no campeonato, mas os últimos resultados, já com o Pepa, são encorajadores. 

P - O que me deixa mais satisfeito é ver a evolução da equipa nos treinos. Analisar só os jogos é redutor, podemos ganhar, empatar ou perder. Mas é encorajador ver a evolução diária, a competitividade que agora existe, o querer ganhar um simples exercício de passe, uma simples velocidade de reação. Querer competir. Esta equipa não era agressiva e competitiva. Tinha os mesmos pontos do último classificado e vai ser difícil até ao fim, mas sinto a equipa mais preparada para os desafios e mais compacta taticamente. É preciso ter muita paciência. É a tal coisa do oito e 80 em relação ao Brasil. Lá, basta falar, fazer uma ou duas vezes o exercício e as coisas são assimiladas. Jogamos de três em três dias, recuperamos, vamos para o vídeo, no campo estamos só um bocadinho a explicar e no jogo eles conseguem fazer. Aqui é diferente, mas eu gosto disso. Dá-me um prazer enorme ver as coisas a evoluir. 

zz - Isso sucede nos pormenores mais básicos do jogo? 

Pepa
6 títulos oficiais

P - Sim, por exemplo é ótimo ver o meu lateral a sentir que sabe o que o ala vai ter de fazer. Ou o ponta-de-lança a adivinhar o que o médio vai executar. Ou seja, tudo isto é muito trabalho, exaustivo. E muita paciência. Reconheço que alguma frustração também. Chegar a casa e sentir que a equipa não consegue fazer e que não entende algumas coisas, às vezes um gajo dá em maluco [Pepa sorri e leva as mãos à cabeça]. Mas temos de manter esta convicção, força e paciência. Se esta entrevista fosse há dois meses, eu ainda tinha ali a pedra por partir, ainda era um calhau (risos). Agora já se partiu muita pedra, já dá para fazer outras coisinhas, trabalhar uma fase de construção a três, uma saída boa de um pontapé de baliza, algo que há dois meses era impensável. Eu só pedia que a equipa aguentasse 90 minutos em campo, porque no início treinávamos num campo de sete. 

zz - Num campo de futebol de sete? 

P - Claro (risos). E para explicar que o problema não era só em ter um campo pequeno, mas a capacidade física, o trabalho aeróbico, as movimentações que não permitem atacar a profundidade? Os jogadores só procuravam o passe curto, porque não havia espaço para o longo. As deslocações não permitiam atingir a velocidade máxima, num treino de 20 jogadores. Pequenos pormenores básicos para quem domina a parte fisiológica. Explicar isto no momento da nossa chegada foi preciso ter paciência. A equipa aos 60 minutos morria, não tinha capacidade. E tinha muitas lesões, isso estava tudo ligado. O futebol está inventado há muitos anos (risos). Quem conseguir fazer bem as coisas simples, estará sempre mais perto do sucesso. 

zz - Essas condições de trabalho foram melhoradas?

P - Melhoraram, mas ainda temos muito o que andar (risos). Mesmo em condições de pré-treino, há muita coisa para melhorar. Sem querer as condições de outros clubes, com outros orçamentos. Tenho de arranjar soluções e já resolvemos talvez 50 ou 60 por cento do que há por resolver. Há ainda outras coisas no campo logístico a melhorar, de forma a tirarmos melhor rendimento do dia a dia. 

zz - Em resumo: a vertente financeira e o desafio desportivo, que obriga a uma construção da «casa» na totalidade, foram os maiores apelos do Catar? 

P - É muito por aí. O Al Ahli é o clube mais antigo do Catar, foi fundado em 1950, mas não é o maior clube. Arrisco-me a dizer que... não parou, mas acomodou-se um pouco. Precisava desta energia nova. Nós vivemos dos resultados, mas eu tenho de ver mais do que isso. Tenho de analisar o clube, os jogadores, a formação, os jogadores locais, os nossos sub23, ter um trabalho mais macro. Ajudar o desenvolvimento do clube. Depois, enfim, há coisas que não controlo. Se fico mais ou menos tempo, se estão satisfeitos ou não, se olham só para o resultado, tenho de fazer o que a minha consciência exige: resultados, manter o clube na primeira divisão e tudo o que atrás referi. 

zz - Haverá também barreiras sócio-culturais muito grandes. 

@Al Ahli

P - O comportamento dos jogadores locais em relação ao trabalho de ginásio e ao treino de manhã... é impossível, quase impensável. Eles têm a reza quando nasce o sol, às 4h30 da madrugada, deitam-se tarde e alguns até ficam acordados até essa primeira reza e depois é que vão dormir. Não podemos impor as coisas sem perceber a cultura, não dá certo. É morrer à nascença. Não abdico das minhas ideias, mas temos de perceber onde estamos. Vamos adaptando-nos, sem dobrar a espinha. O jogo de cintura não faz mal a ninguém. Não me refiro a esquemas, nem filmes, nem hipocrisias. É adaptação. Quem não o tem, aguenta aqui duas semanas. 

zz - Mas os resultados demoram mais a aparecer, há muitos aspetos desafiantes. 

P - Sim, é o caso do pré-treino. O que é o pré-treino? É um trabalho feito de forma a evitarmos lesões. Se calhar é preciso três ou quatro meses até vermos alguma coisa. Como é que vamos convencer um grupo de trabalho que no primeiro mês não vê resultados nenhuns? A vontade deles é desistir. É só um exemplo sobre a paciência que é preciso ter para convencê-los a fazer um trabalho pré-definido pelo nosso preparador-físico e fisiologista, interligado com o departamento médico. 

zz - Nestes primeiros meses já terá sido confrontado com situações anormais. 

P - Logo na primeira semana, só tínhamos treinos no campo de sete. Campo de sete, campo de sete e eu a implorar para irmos para o campo de 11. Chegámos ao campo de 11, tivemos autorização, e quis ver a capacidade deles em campo grande, em campo normal. Aos 15/20 minutos estava tudo morto. O jogo começou a ficar partido, sinais de cansaço, e tive de parar o treino. Como é que nós íamos jogar ao fim-de-semana? A equipa estava habituada àquilo. Curto, curto, curto. E quando tínhamos de andar 30, 40 metros? Novo mundo. Um jogador deslocou o ombro, o outro partiu a clavícula. «Mas eles são feitos de quê?». São muito frágeis, por isso digo que isto demora. Preciso de resultados, preciso, mas não me vou agarrar só aos resultados. Não dá, há muito mais. 

zz - A alimentação será outro dos desafios. 

P - Temos de ir com calma. Treinar de manhã é complicado e é preciso perceber os motivos. Não é por serem malandros e quererem ir para a noite, nada disso. A alimentação é um desafio, sim. Está melhor, mas se me perguntarem se pode aparecer um Uber ou um Talabat [empresas de entrega de comida]... pode e eu já apanhei. Fui a um quarto e eles estavam lá sentados no chão, a conviver a comer com as mãos. Deu-me um flash: ou rebentava com eles por estarem a comer algo que lhes faz mal ou via as coisas pelo lado positivo. Estavam a conviver, locais e estrangeiros, com um sorriso na cara. Olhei, sorri, mandei umas piadas em jeito de aviso. Prefiro ver o copo meio cheio. Estavam juntos, ali, é preciso ter paciência e ir com calma até ter a aceitação deles. Se impusermos, eles até fazem, mas fazem contrariados. Algumas coisas são impostas, ponto, mas outras são feitas com argumentação, tempo e resistência da parte deles. Obriga-nos a ter de explicar bem e comprovar as nossas ideias. 

[A Parte II da entrevista a Pepa será publicada às 21 horas]

Portugal

Pepa

NomePedro Miguel Marques da Costa Filipe

Nascimento/Idade1980-12-14(43 anos)

Nacionalidade

Portugal

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FunçãoTreinador

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