Pepa: «O Draxler está uma máquina, fomos conquistando-o aos poucos»

7 meses atrás 59

A vista sobre o azul do Golfo Pérsico é idílica. Pedro Miguel Marques da Costa Filipe, apenas Pepa, abre a janela ao zerozero e exibe o paraíso esculpido pelo Homem em Doha. A capital do Catar junta um mar manso a edificações exóticas, de abrir a boca de espanto. Modernidade oriental, sim, mas a piscar o olho ao mundo do oeste. Aos 43 anos, o treinador do Al Ahli é um homem de ideias fortes, convicções inegociáveis, mas está consciente do contexto diferente onde agora se movimenta. Fala, por isso, em «paciência e evolução», palavras confirmadas pela evidente melhoria da equipa na liga catari. 

A segunda parte da conversa com Pepa debruça-se sobre a vida em Doha e passa muito pela análise à condição atual de Julian Draxler. Campeão do mundo pela Alemanha, o médio ofensivo falhou completamente na passagem pelo Benfica, mas está a viver uma segunda (terceira, quarta?) vida no Catar, treinado pelo português de 43 anos. Os elogios são mais do que sinceros.

Pode ler a primeira parte da grande entrevista AQUI: «Quem não tem jogo de cintura, aguenta duas semanas no Catar» 

[NOTA: a grande entrevista será publicada em quatro partes diferentes, entre quarta e quinta-feira]

zz - Onde é que se encaixa um jogador como o Julian Draxler neste contexto tão peculiar do Catar? Estamos a falar de um campeão do mundo que o ano passado, no Benfica, parecia andar triste. Como é que conseguido gerir essa 'máquina' alemã? 

P - Lá está, se fosse há dois meses, a essa pergunta eu responderia com um ponto de interrogação. 'Olhem, não sei'. Agora, estou ansioso pela retoma da competição. O Julian está uma máquina. Para nós é uma satisfação vê-lo outra vez com alegria no treino. Posso estar na China, no Brasil, na Arábia, mas acompanho sempre o campeonato português. E por isso sabia que o Julian não tinha jogado no Benfica. Cheguei cá, assisti a um jogo, ele lesionou-se, depois esteve parado duas/três semanas. Já sabíamos do historial dele no Benfica.

Depois, quando jogou, entrou e fez dois golos. Lesionou-se outra vez. Para cartão de visita... pensei que não o íamos ter durante o ano inteiro. Eu e a minha equipa técnica ficámos com aquele desafio enorme de recuperar o Julian, o craque. Estamos a falar de um capitão da seleção da Alemanha, da elite. 'Como é que vamos recuperar este gajo?'. Havia as lesões, a parte psicológica, tratamento médico... e depois, não é fácil, por muito bom que seja o contrato financeiramente, o apelo competitivo. Se um jogador faz um passe, dois passes e aquilo não tem continuidade, é frustrante. Equilibrar isto tudo na cabeça de um jogador que foi campeão do mundo não é fácil. Fomos conquistando o Julian aos poucos. 

zz - Apostou na empatia. 

qEstou muito satisfeito com o Draxler. Com a personalidade, com o homem, e é um regalo, dá-me prazer vê-lo com a bola. Quando lhe chega aos pés, a elegância, parece que tem olhos na cabeça toda. Na nuca, à frente, de lado, não perde uma bola.

Pepa, treinador do Al Ahli

P - Ele percebeu que estava a ser ajudado. Não para o curto prazo. 'Tens de ir lá para dentro porque és a estrela da equipa, foste uma aposta do país'. Não foi nada por aí. Foi tudo com calma, tudo com naturalidade. Bato na mesa, espero que o Draxler não tenha mais lesões até ao final da época. De há um mês para cá, um mês e meio, está a treinar praticamente sem parar. Quando ele treinava uma semana, jogava e lesionava-se. Vejo-o a fazer coisas de génio. 'Ah, o nível é mais baixo e tal...'. Mas há coisas que são mesmo de um nível de topo, topo, topo. É dos poucos que treinei na minha carreira com uma capacidade a este nível. 

zz - No Benfica foi muito irregular. Fez um grande golo ao Marítimo, mas depois não teve continuidade.

P - Tal e qual. Aconteceram-lhe algumas coisas, acima de tudo do ponto de vista físico, que o afetaram. E com o comboio sempre em andamento. Ele acabou por perdê-lo ou, pelo menos, entrou na carruagem de trás e para chegar à frente demoraria muito tempo. Estou muito satisfeito com ele. Com a personalidade, com o homem, e é um regalo, dá-me prazer vê-lo com a bola. Quando lhe chega aos pés, a elegância, parece que tem olhos na cabeça toda. Na nuca, à frente, de lado [Pepa acompanha as palavras com movimentos], não perde uma bola. O nível é mais baixo, eu sei, mas é um sobredotado. Um talento impressionante. A forma como bate na bola, o que ele vê e que ninguém vê. Estou a dizer isto hoje e só lhe quero dar esta continuidade e felicidade. Dá-nos prazer vê-lo feliz em campo. Desejo só que continue assim já no dia 15, quando voltar o campeonato. 

zz - Será contra o Al-Sadd, uma das equipas mais fortes. 

P - É um dos candidatos ao título, é sempre a equipa mais forte aqui no Catar. Temos dois jogos muito difíceis no recomeço da liga. Esse e depois contra o Al-Gharafa, do Pedro Martins. O Al-Sadd está muito à frente dos outros, é muito forte. Tem 80 por cento da seleção do Catar e bons estrangeiros, dois deles conhecidos em Portugal. O Plata [Gonzalo, ex-Sporting] e o Uribe [Matheus, ex-FC Porto]. Não nos mete medo, pelo contrário. Dá-nos mais motivação ainda. Vai ser difícil, é desses jogos que gostamos. 

zz - Há pouco falávamos do Antero Henrique. Qual o papel dele, na prática?

@Catarina Morais / Kapta +

P - Tem uma ligação próxima com os clubes, com os jogadores contratados no estrangeiro. Não temos uma relação próxima, mas pelo que me apercebo é quase um Pedro Proença [presidente da Liga] aqui do sítio. Com outras valências e outros objetivos, talvez com outras responsabilidades. É o responsável máximo pela filtragem de jogadores e qualidade na liga.  

zz - O Catar é um país pequeno. Há tempo para se sentar à mesa com o Hélio Sousa, Leonardo Jardim e Pedro Martins, para matarem saudades de Portugal? 

P - Não é difícil estarmos juntos. Com o Hélio ainda não tive o prazer de estar. Ele chegou mais tarde, já com o campeonato a decorrer. O tempo não pára, falo contra mim próprio. Gosto também de me abstrair um bocado. Sempre com a equipa na cabeça, mas preciso do meu espaço, do meu cantinho. Ver uma série, desligar um pouco, olhar para o mar. Gosto de água, aqui o mar não tem o cheiro do sal e do iodo, parece um mar meio parado, mas é água. E isto dá vida, dá energia. Nesta vida com tanta responsabilidade, às vezes é necessário esse isolamento. Já estive com o Leonardo e com o Pedro, em breve estarei com o Hélio. Isto é tão pequeno que em breve estarei com o Hélio. Se não combinarmos, de certeza que nos cruzamos por aí. Tenho de corrigir essa falha. 

zz - O melhor marcador da liga catari é o Brahimi, de acordo com a nossa base de dados. Continua a ser importante, apesar dos 33 anos? 

P -

Continua, continua. Muito, muito, muito. Quando eu era miúdo, a minha base de dados era o FM [Football Manager, famoso vídeojogo], agora é o zerozero (risos). No Brasil é O Gol, que também pertence à vossa empresa. É uma ferramenta obrigatória. Dito isto, o Brahimi estava no Porto e falava-se do Barcelona. está tudo dito. Não veio para cá acabar a carreira. Joga muito. Está como nós o conhecíamos no FC Porto, mas aqui faz ainda mais a diferença, porque os oponentes não são tão difíceis como em Portugal. A liga vai melhorar, mas alguém com a qualidade do Brahimi, fortíssimo no um para um, resolve muita coisa. Não gosto de dizer que é o melhor do campeonato, mas um dos melhores.  

zz - Como é um dia normal do Pepa em Doha? 

Pepa
2023/2024

12 Jogos
7 Vitórias
0 Empates
5 Derrotas

31 Golos
24 Golos sofridos

ver mais �

P - Quando não temos ginásio de manhã, não vou ao clube. Acordo cedo, não tão cedo como em Portugal. Em Portugal acordava por volta das 6h30/7h00, aqui consigo acordar às 8h30/9h e se quiser ficar um bocado na ronha até às 10h00, é possível (risos). Depois entro na rotina: vou um bocadinho ao ginásio três vezes por semana, faz-me muito bem. O clima é bom, apanho meia-horinha de sol e depois como qualquer coisa - e é mesmo qualquer coisa, não sei cozinhar (risos). Os restaurantes aqui são muito caros, não dá para ir a toda a hora. Dar, dá, mas é mais económico encomendar comida. E depois sigo para o clube, ao início da tarde. Analisar o treino anterior, preparar o próximo, ver os jogadores, ver se houve algum agravamento das queixas de alguns atletas, marcar o campo, falar com os diretores e avançar para o treino. Às 20h30 consigo estar em casa a jantar. Em Portugal são menos três horas, ainda consigo ver notícias do nosso país. Tento esperar pelos telejornais das 20h00, quando aqui já são 23h00. Tento estar atualizado com o que se passa no nosso país. 

zz - A sua família está por aí?

P - A minha esposa tenta vir cá todos os meses. As minhas filhas têm de gerir com o calendário escolar. Agora vêm cá no Carnaval e na Páscoa. Sinto muito a falta das pequenas coisas, tão normais como levar as minhas meninas à escola. Em Portugal, se calhar, temos alguma preguiça e aqui não há preguiça nenhuma, só saudade. Ficamos mais sensíveis e valorizamos coisas que antes não valorizávamos. E muda-nos um pouco. Percebo agora melhor o Jorge Jesus, que durante muitos anos não quis sair de Portugal. Se o homem fica diferente, o treinador fica diferente. 

zz - As suas equipas, pelo menos em Portugal, sempre nos pareceram maleáveis e capazes de se adaptarem ao que o jogo pede. O Pepa continua a ser esse treinador? Na Arábia e no Brasil já não era fácil assistir aos jogos. 

P - Claro, com tanto trabalho aí, para quê ver os jogos da Arábia? Normal (risos). Encheu-me de orgulho a evolução no Al-Tai e no Cruzeiro a mesma coisa. As convicções são as mesmas, mas maleáveis como bem dizem. Temos de perceber os jogadores que temos à nossa frente, fazer o que é o melhor para a equipa. Não podemos morrer com as nossas ideias. Eu quero é viver com elas, partilhá-las e potenciar ao máximo os meus jogadores. Dou um exemplo concreto: Óscar Estupiñan, no Vitória.

Era um avançado que a jogar no apoio tinha alguma dificuldade e eu sempre gostei de um ponta-de-lança forte nesse aspeto, como o Platiny (no Feirense) ou o Douglas Tanque (no Paços)... o Douglas não atacava tanto a profundidade e passou a atacá-la. Com o Óscar, em vez de insistirmos numa coisa em que ele era débil, e que o podia frustrar, preferimos potenciar o aspeto em que ele era realmente forte: ataque à profundidade e jogo na área. Fez connosco a melhor época da carreira [16 golos marcados]. Vivo com as ideias, não morro com elas. Percebo os meus jogadores e potencio-os da melhor forma possível. Não é só um 4x3x3, porque num 4x3x3 há dinâmicas, nuances, variáveis com e sem bola, fase de criação, fase de finalização. Há tanta coisa, tanta coisa. O futebol é muito mais do que isso. 

zz - O Pepa explica bem essas ideias. Com simplicidade.

P - Não posso inventar um vocabulário que não tenho. Entrei na faculdade, não acabei o curso, mas sei o que penso. Se o palavreado é mais simples ou não... a faculdade era privada e não tive capacidade financeira para acabar o curso. Fundamental é que os jogadores nos percebam e, acima disso, a capacidade de colocar isso em treino. O discurso mais académico é tão válido como o de balneário, importante é ser eficaz, incisivo. Se chego ao campo e não me consigo explicar, passar das palavras às ações, isso de nada vale.

Um exercício bem montado, bonito, pode dar uma grande borrada. O treinador tem de ajustá-lo, mexer no espaço, enfim, tem de ter a capacidade de perceber de que forma isso está a chegar ao grupo. Ter essa humildade. Achamos que estamos a fazer uma grande coisa, mas estamos em areias movediças e a irmos para onde o vento e a moda nos mandam. Temos de reconhecer os erros e seguir as nossas ideias. Isso é inegociável.

Alemanha

Julian Draxler

NomeJulian Draxler

Nascimento/Idade1993-09-20(30 anos)

Nacionalidade

Alemanha

Alemanha

PosiçãoMédio (Médio Ofensivo)

Ler artigo completo