A segunda parte da conversa com Pepa debruça-se sobre a vida em Doha e passa muito pela análise à condição atual de Julian Draxler. Campeão do mundo pela Alemanha, o médio ofensivo falhou completamente na passagem pelo Benfica, mas está a viver uma segunda (terceira, quarta?) vida no Catar, treinado pelo português de 43 anos. Os elogios são mais do que sinceros.
Pode ler a primeira parte da grande entrevista AQUI: «Quem não tem jogo de cintura, aguenta duas semanas no Catar» [NOTA: a grande entrevista será publicada em quatro partes diferentes, entre quarta e quinta-feira] zz - Onde é que se encaixa um jogador como o Julian Draxler neste contexto tão peculiar do Catar? Estamos a falar de um campeão do mundo que o ano passado, no Benfica, parecia andar triste. Como é que conseguido gerir essa 'máquina' alemã? P - Lá está, se fosse há dois meses, a essa pergunta eu responderia com um ponto de interrogação. 'Olhem, não sei'. Agora, estou ansioso pela retoma da competição. O Julian está uma máquina. Para nós é uma satisfação vê-lo outra vez com alegria no treino. Posso estar na China, no Brasil, na Arábia, mas acompanho sempre o campeonato português. E por isso sabia que o Julian não tinha jogado no Benfica. Cheguei cá, assisti a um jogo, ele lesionou-se, depois esteve parado duas/três semanas. Já sabíamos do historial dele no Benfica. Depois, quando jogou, entrou e fez dois golos. Lesionou-se outra vez. Para cartão de visita... pensei que não o íamos ter durante o ano inteiro. Eu e a minha equipa técnica ficámos com aquele desafio enorme de recuperar o Julian, o craque. Estamos a falar de um capitão da seleção da Alemanha, da elite. 'Como é que vamos recuperar este gajo?'. Havia as lesões, a parte psicológica, tratamento médico... e depois, não é fácil, por muito bom que seja o contrato financeiramente, o apelo competitivo. Se um jogador faz um passe, dois passes e aquilo não tem continuidade, é frustrante. Equilibrar isto tudo na cabeça de um jogador que foi campeão do mundo não é fácil. Fomos conquistando o Julian aos poucos. zz - Apostou na empatia. qEstou muito satisfeito com o Draxler. Com a personalidade, com o homem, e é um regalo, dá-me prazer vê-lo com a bola. Quando lhe chega aos pés, a elegância, parece que tem olhos na cabeça toda. Na nuca, à frente, de lado, não perde uma bola. Pepa, treinador do Al Ahli zz - No Benfica foi muito irregular. Fez um grande golo ao Marítimo, mas depois não teve continuidade. P - Tal e qual. Aconteceram-lhe algumas coisas, acima de tudo do ponto de vista físico, que o afetaram. E com o comboio sempre em andamento. Ele acabou por perdê-lo ou, pelo menos, entrou na carruagem de trás e para chegar à frente demoraria muito tempo. Estou muito satisfeito com ele. Com a personalidade, com o homem, e é um regalo, dá-me prazer vê-lo com a bola. Quando lhe chega aos pés, a elegância, parece que tem olhos na cabeça toda. Na nuca, à frente, de lado [Pepa acompanha as palavras com movimentos], não perde uma bola. O nível é mais baixo, eu sei, mas é um sobredotado. Um talento impressionante. A forma como bate na bola, o que ele vê e que ninguém vê. Estou a dizer isto hoje e só lhe quero dar esta continuidade e felicidade. Dá-nos prazer vê-lo feliz em campo. Desejo só que continue assim já no dia 15, quando voltar o campeonato. zz - Será contra o Al-Sadd, uma das equipas mais fortes. P - É um dos candidatos ao título, é sempre a equipa mais forte aqui no Catar. Temos dois jogos muito difíceis no recomeço da liga. Esse e depois contra o Al-Gharafa, do Pedro Martins. O Al-Sadd está muito à frente dos outros, é muito forte. Tem 80 por cento da seleção do Catar e bons estrangeiros, dois deles conhecidos em Portugal. O Plata [Gonzalo, ex-Sporting] e o Uribe [Matheus, ex-FC Porto]. Não nos mete medo, pelo contrário. Dá-nos mais motivação ainda. Vai ser difícil, é desses jogos que gostamos. zz - Há pouco falávamos do Antero Henrique. Qual o papel dele, na prática? @Catarina Morais / Kapta + zz - O Catar é um país pequeno. Há tempo para se sentar à mesa com o Hélio Sousa, Leonardo Jardim e Pedro Martins, para matarem saudades de Portugal? P - Não é difícil estarmos juntos. Com o Hélio ainda não tive o prazer de estar. Ele chegou mais tarde, já com o campeonato a decorrer. O tempo não pára, falo contra mim próprio. Gosto também de me abstrair um bocado. Sempre com a equipa na cabeça, mas preciso do meu espaço, do meu cantinho. Ver uma série, desligar um pouco, olhar para o mar. Gosto de água, aqui o mar não tem o cheiro do sal e do iodo, parece um mar meio parado, mas é água. E isto dá vida, dá energia. Nesta vida com tanta responsabilidade, às vezes é necessário esse isolamento. Já estive com o Leonardo e com o Pedro, em breve estarei com o Hélio. Isto é tão pequeno que em breve estarei com o Hélio. Se não combinarmos, de certeza que nos cruzamos por aí. Tenho de corrigir essa falha. zz - O melhor marcador da liga catari é o Brahimi, de acordo com a nossa base de dados. Continua a ser importante, apesar dos 33 anos?
P - zz - Como é um dia normal do Pepa em Doha? zz - A sua família está por aí? P - A minha esposa tenta vir cá todos os meses. As minhas filhas têm de gerir com o calendário escolar. Agora vêm cá no Carnaval e na Páscoa. Sinto muito a falta das pequenas coisas, tão normais como levar as minhas meninas à escola. Em Portugal, se calhar, temos alguma preguiça e aqui não há preguiça nenhuma, só saudade. Ficamos mais sensíveis e valorizamos coisas que antes não valorizávamos. E muda-nos um pouco. Percebo agora melhor o Jorge Jesus, que durante muitos anos não quis sair de Portugal. Se o homem fica diferente, o treinador fica diferente. zz - As suas equipas, pelo menos em Portugal, sempre nos pareceram maleáveis e capazes de se adaptarem ao que o jogo pede. O Pepa continua a ser esse treinador? Na Arábia e no Brasil já não era fácil assistir aos jogos. P - Claro, com tanto trabalho aí, para quê ver os jogos da Arábia? Normal (risos). Encheu-me de orgulho a evolução no Al-Tai e no Cruzeiro a mesma coisa. As convicções são as mesmas, mas maleáveis como bem dizem. Temos de perceber os jogadores que temos à nossa frente, fazer o que é o melhor para a equipa. Não podemos morrer com as nossas ideias. Eu quero é viver com elas, partilhá-las e potenciar ao máximo os meus jogadores. Dou um exemplo concreto: Óscar Estupiñan, no Vitória. Era um avançado que a jogar no apoio tinha alguma dificuldade e eu sempre gostei de um ponta-de-lança forte nesse aspeto, como o Platiny (no Feirense) ou o Douglas Tanque (no Paços)... o Douglas não atacava tanto a profundidade e passou a atacá-la. Com o Óscar, em vez de insistirmos numa coisa em que ele era débil, e que o podia frustrar, preferimos potenciar o aspeto em que ele era realmente forte: ataque à profundidade e jogo na área. Fez connosco a melhor época da carreira [16 golos marcados]. Vivo com as ideias, não morro com elas. Percebo os meus jogadores e potencio-os da melhor forma possível. Não é só um 4x3x3, porque num 4x3x3 há dinâmicas, nuances, variáveis com e sem bola, fase de criação, fase de finalização. Há tanta coisa, tanta coisa. O futebol é muito mais do que isso. zz - O Pepa explica bem essas ideias. Com simplicidade. P - Não posso inventar um vocabulário que não tenho. Entrei na faculdade, não acabei o curso, mas sei o que penso. Se o palavreado é mais simples ou não... a faculdade era privada e não tive capacidade financeira para acabar o curso. Fundamental é que os jogadores nos percebam e, acima disso, a capacidade de colocar isso em treino. O discurso mais académico é tão válido como o de balneário, importante é ser eficaz, incisivo. Se chego ao campo e não me consigo explicar, passar das palavras às ações, isso de nada vale. Um exercício bem montado, bonito, pode dar uma grande borrada. O treinador tem de ajustá-lo, mexer no espaço, enfim, tem de ter a capacidade de perceber de que forma isso está a chegar ao grupo. Ter essa humildade. Achamos que estamos a fazer uma grande coisa, mas estamos em areias movediças e a irmos para onde o vento e a moda nos mandam. Temos de reconhecer os erros e seguir as nossas ideias. Isso é inegociável.A vista sobre o azul do Golfo Pérsico é idílica. Pedro Miguel Marques da Costa Filipe, apenas Pepa, abre a janela ao zerozero e exibe o paraíso esculpido pelo Homem em Doha. A capital do Catar junta um mar manso a edificações exóticas, de abrir a boca de espanto. Modernidade oriental, sim, mas a piscar o olho ao mundo do oeste. Aos 43 anos, o treinador do Al Ahli é um homem de ideias fortes, convicções inegociáveis, mas está consciente do contexto diferente onde agora se movimenta. Fala, por isso, em «paciência e evolução», palavras confirmadas pela evidente melhoria da equipa na liga catari.