Projetos de arte participativa reclamam mais "terceiros espaços" para desenvolvimento local

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Por "terceiros espaços" entendem lugares além da casa e do trabalho que promovam comunidades e, com elas, o desenvolvimento local.

Apesar de não serem novos, os projetos foram hoje apresentados numa sessão pública, na Fundação Calouste Gulbenkian, como "projetos inspiradores" e "lições de vida", numa conferência intitulada "Modelos de escuta e participação na cultura", que abriu a mostra anual de arte participativa "Isto é Partis & Art for Change".

O espaço Largo Residências, em Lisboa, o festival Bons Sons, em Tomar, e o Trinity Community Arts, em Bristol, Reino Unido, cujos modelos de governança criam espaço para a participação direta dos cidadãos, são de âmbito diferente, mas têm em comum o facto de se focarem no desenvolvimento local e serem projetos de resistência.

Da conversa entre os responsáveis destas iniciativas comunitárias, resultaram algumas inquietações, nomeadamente a fraca aposta em Portugal nos chamados "terceiros lugares" ou "terceiros espaços", um conceito "já comum noutros países", que consiste num local onde as pessoas socializem e passem tempo, fora de casa (primeiro lugar) e do trabalho (segundo lugar).

A cooperativa cultural e de responsabilidade social Largo Residências é um pouco isso, mas a diretora artística, Marta Silva, lamenta a falta de espaços em Lisboa "onde as pessoas possam simplesmente entrar e estar" sem ter de "beber um copo de vinho e pagar uma fortuna por ele", como lamenta que, simultaneamente, existam tantos edifícios devolutos, que poderiam ter essa utilização, e que ficam desocupados durante anos a fio.

Marta Silva descartou, em resposta a uma pergunta do público, o modelo de trabalho assente em voluntariado, afirmando que "a grande prioridade foi ir criando postos de trabalho, e seguindo o princípio de que todo o trabalho deve ser remunerado".

A comunidade pela qual é responsável é um espaço intergeracional e multicultural, com a participação de grupos de ativistas pelas questões climáticas e de género, por cidadãos em várias condições de vulnerabilidade social, como sem abrigo e refugiados, e com trabalho permanente ligado a mais de 40 projetos socioculturais, individuais e coletivos, abrangendo um total de 190 pessoas.

Já o Bons Sons conta com o trabalho de cerca de 700 pessoas, 400 das quais em regime de voluntariado do festival, disse o diretor artístico, Miguel Atalaia, destacando que a associação tinha, na sua génese, a intenção de criar uma festa de aldeia e, de repente, conseguiu mobilizar a aldeia.

"Agora, consegue angariar 35 mil pessoas durante quatro dias. Este ano vai para a sua 12.ª edição e a aldeia também cresce com isso. Competimos com outros festivais de verão, mas o que é mesmo diferenciador é esta ideia de comunidade".

A Trinity Community Arts é uma associação responsável por um centro comunitário de artes, local e independente, de música ao vivo, em Bristol, no Reino Unido.

Emma Harvey, diretora da Trinity Community Arts, destacou que trabalha com "comunidades que são únicas" e que este tipo de projeto tem ainda a vantagem de ajudar a manter edifícios públicos.

"Estamos numa Igreja, que hoje já não é uma Igreja, mas no ano passado começámos uma campanha e conseguimos fundos para investir na reparação de um edifício vitoriano, a Jacob`s Wells Baths, onde se vai instalar o centro de artes para a comunidade", afirmou.

Para a responsável, quando se pensa em espaços para as comunidades, tem de se ter a visão de "empoderar as comunidades".

Tanto a Trinity Community Arts como a Largo Residências são "casas para várias entidades" e ambas as responsáveis falam da necessidade de reclamar espaços e de criar os chamados "terceiros espaços".

Os responsáveis pelos projetos foram unânimes em considerar o medo e a dificuldade que confessam ter sentido no início, com Emma Harvey a afirmar que o projeto que dirige começou apenas com o "acreditar no valor da arte".

Marta Silva também admite a "falta de noção" sentida no princípio, revelando que o que levou o projeto para a frente "não foi a certeza do resultado ou dos indicadores, mas alguma loucura e interesse pelo bem comum".

"Em 12 anos, só me lembro de três anos de estabilidade. O capitalismo tem ainda um peso muito forte e não dá espaço à economia social. A forma como as cidades são geridas e pensadas não são para defender estes terceiros espaços. Falta ainda desenvolvimento das cidades com foco no bem comum e não nos números", defendeu, lamentando que não haja praticamente programas que apoiem a criação destes espaços.

Também Miguel Atalaia, que desde o início precisou de lutar contra as ideias preconcebidas sobre o conceito de aldeia e festa de aldeia, reconhece que aprendeu no percurso - em que "as coisas foram acontecendo com a vontade e o acreditar" -, e que começou com a certeza de que "a taxa de erro era gigante".

"Mas essa é uma taxa de erro assumida. Estamos fartos do ensino formal, que nos ensina a ter medo das coisas, ainda antes de as experimentarmos, portanto, este foi um processo de aprendizagem inverso, mas mais capacitante".

A iniciativa Partis & Art for Change tem a duração de três dias, de entrada gratuita, durante os quais são apresentados espetáculos e realizados debates para refletir sobre os desafios do trabalho artístico com diferentes comunidades, culturas e contextos.

Após a conferência inaugural, pelas 19:00, segue-se o concerto "Home Ensemble", programado para as 19:00, que junta um grupo de músicos de diferentes origens, como o Afeganistão - onde a música é proibida pelo atual regime -, Cabo Verde, Ucrânia e Portugal. O projeto foi desenvolvido no âmbito das Residências Refúgio da Largo Residências.

No sábado, será apresentada a nova criação da Companhia Maior, "Agora Nascíamos Outra Vez", no grande auditório da Gulbenkian, uma coreografia de Aldara Bizarro que conta com textos de Patrícia Portela e música de Noiserv.

O espetáculo surge no contexto do projeto Causa Maior, que desenvolveu "reflexões e estratégias para sustentar o envelhecimento criativo e desconstruir o idadismo e a exclusão das pessoas Maiores, junto das comunidades locais, da academia, dos profissionais das artes, de instituições e agentes de política cultural".

Ainda no mesmo dia, será lançada a página `online` "Bowing Doc", uma plataforma que conta a história do projeto artístico com a população migrante do concelho de Odemira, que tem como linguagens principais a dança, a música, o vídeo e as artes plásticas, seguindo-se a sessão dupla "Cocina Aural" e "En Mi Piel", que apresenta duas curtas-metragens realizadas no âmbito da iniciativa Art for Change.

O programa para o último dia, domingo, inclui a exibição do documentário sobre o projeto "A Alegoria da Caverna", que deixa como legado para a comunidade surda um glossário inédito de Língua Gestual Portuguesa (LGP).

A Partis & Art for Change é uma iniciativa conjunta da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação "la Caixa" e foi lançada em 2020 com o objetivo de fomentar e difundir o papel cívico da arte e da cultura participativas enquanto impulsionadoras de mudança e de transformação social.

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