Protestos na convenção sublinham um risco para Kamala Harris: a guerra em Gaza

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Eleições EUA 2024

19 ago, 2024 - 23:01 • João Pedro Quesado

Michigan é o estado com mais população de origem árabe nos Estados Unidos da América, e foi um dos estados mais renhidos nas eleições de 2016 e 2020. Kamala Harris é desafiada a mudar de políticas num tema que está muito em baixo nas prioridades do eleitorado norte-americano.

A poucas horas do início oficial da Convenção Nacional Democrata, milhares de manifestantes pró-Palestina protestaram esta segunda-feira em Chicago contra a posição do Partido Democrata sobre a guerra na Faixa de Gaza e o apoio dos Estados Unidos da América (EUA) a Israel. O tema fez sombra à recandidatura de Joe Biden durante as primárias do Partido Democrata e é um dilema para Kamala Harris.

Num parque perto do United Center - casa dos famosos Chicago Bulls, onde jogou Michael Jordan -, a manifestação “Marcha sobre o DNC” reuniu cerca de 200 grupos, com pessoas das comunidades árabes e palestinianas do Illinois e outros estados vizinhos, segundo a “Reuters”.

Roman Fritz, delegado democrata de 19 anos eleito pelo estado do Wisconsin, disse estar preocupado com a possibilidade de os Serviços Secretos confiscarem o seu “keffiyeh” à entrada do evento. O “keffiyeh” é o tradicional lenço usado pelos homens na região do Levante no Médio Oriente, e está associado à causa palestiniana.

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O jovem delegado disse à Reuters que, apesar de participar na marcha, não tinha planos para perturbar a Convenção Nacional Democrata.

Dezenas de delegados muçulmanos e aliados, que são contra o apoio norte-americano à ofensiva de Israel na Faixa de Gaza, procuram mudanças no programa eleitoral do Partido Democrata. Um dos pedidos é por um embargo ao envio de armas a Israel - o programa divulgado esta segunda-feira realça o apoio da administração Biden a Israel, assim como as negociações para alcançar um cessar-fogo, e não prevê nenhuma mudança de rumo.

Roman Fritz, que usa uma t-shirt em que se lê “delegado cessar-fogo", afirmou que apoia Kamala Harris para derrotar Donald Trump, mas que não vai votar na vice-presidente dos EUA devido ao apoio da atual Casa Branca a Israel.

“Em boa consciência, não posso votar nela com a falta de uma política concreta sobre um embargo de envio de armas a Israel e um cessar-fogo real”, sublinhou.

Poucos votos que podem fazer a diferença

O caso do jovem delegado democrata é representativo de uma parte do eleitorado que pode decidir não votar na eleição presidencial de 2024 devido à posição do Partido Democrata sobre a situação na Faixa de Gaza. Numa eleição que se mostra renhida de novo, depois da desistência de Joe Biden, a probabilidade de algumas dezenas de milhares de votos fazerem a diferença num número reduzido de estados, como em 2016 e 2020, é grande.

O Michigan, parte do importante “Cinturão da Ferrugem” que ajudou Donald Trump a chegar à Casa Branca em 2016, é o estado com maior percentagem de população de origem árabe em todos os EUA – 225 mil pessoas, segundo o Census de 2020, representando 2,2% da população do estado.

O número parece reduzido numa população de pouco mais de 10 milhões de pessoas, mas os resultados das últimas duas eleições presidenciais contam outra história. Em 2020, Joe Biden venceu o estado com 154 mil votos de vantagem sobre Donald Trump, que tinha vencido em 2016 por pouco menos de 11 mil votos.

Noutros estados decisivos, a população de origem árabe é mais reduzida. Na Pensilvânia, são 85 mil habitantes (0,7%), no Arizona e Nevada são 0,6% da população, e na Carolina do Norte são 0,4%.

O apoio à causa palestiniana tem aumentado, principalmente entre os norte-americanos mais jovens e os democratas. Uma sondagem de março estimava que o apoio à Palestina nos dois grupos estava nos 45% e 43%, respetivamente.

Ao mesmo tempo, há uma maioria da população de reprova a ação militar de Israel na Faixa de Gaza, segundo uma sondagem da Gallup realizada em junho. 48% da população está contra a estratégia seguida por Israel, com 42% a favor – em novembro, um mês depois do início do atual conflito, a percentagem de aprovação era de 50%, uma mudança trazida pelos números de mortes e imagens dos ataques israelitas em Gaza, e por casos como o dos sete trabalhadores da organização não-governamental World Central Kitchen mortos num ataque de Israel.

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A contrastar com estes números está a importância dada pela maioria dos eleitores ao tema. Tal como em muitas outras sondagens, o mais recente inquérito publicado pelo “The New York Times” mostra que apenas 1% dos eleitores coloca a situação da Palestina e Israel como o tema mais importante nesta eleição - mais relevante que temas como os empréstimos aos estudantes para a universidade, o crime e a educação, mas muito menos do que a economia, a inflação, o aborto e a imigração.

Um contra-argumento para a importância destes votos é o de que, quando uma eleição é decidida por poucas dezenas de milhares de votos, não há uma única razão para explicar a diferença, e praticamente todas as razões são explicações plausíveis para o resultado. Essa é uma marca da eleição de 2016, em que as explicações para a derrota de Hillary Clinton vão desde não ter feito campanha suficiente em estados como Michigan, Wisconsin e Pensilvânia a ter-se focado demasiado em ser a primeira mulher eleita Presidente.

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Não querendo assumir o risco de tomar qualquer estado como garantido – uma lição aprendida a custo na derrota de Hillary Clinton em 2016 – a campanha de Kamala Harris tem adotado outra postura.

Da última vez que Harris esteve em campanha no estado do Michigan, a própria vice-presidente dos EUA esteve reunida com membros do Movimento Nacional de Descomprometidos, um grupo que elegeu 30 delegados à convenção democrata em oito estados diferentes. Segundo a “ABC News”, disseram à candidata que ela pode perder o seu apoio se não gostarem da resposta às suas exigências.

“Os eleitores no Michigan querem votar em si, mas precisamos de ver alguma mudança de política, ou algum compromisso com mudança de política sobre as bombas que são enviadas para Netanyahu”, disse Waleed Shahid, um estratega democrata.

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O mesmo democrata concede ter “medo” de uma vitória de Donald Trump e J.D. Vance, entendendo o plano do candidato republicano para a região como “acelerar a violência contra os palestinianos em Gaza e na Cisjordânia”.

Contra este esforço de grupos pró-Palestina está o de grupos pró-Israel. Um, o Comité Americano de Assuntos Públicos de Israel (AIPAC), já conseguiu derrotar vários candidatos democratas pró-Palestina em eleições primárias para a Câmara dos Representantes este ano, doando grandes quantidades de fundos aos opositores.

Além do programa eleitoral do Partido Democrata não demonstrar nenhuma concessão às exigências dos grupos pró-Palestina, Kamala Harris tem corrido para o centro do espectro político em vários temas desde que se tornou a candidata a Presidente, abandonando opiniões anteriores.

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Ao mesmo tempo, Harris não se tem definido no tema da Faixa de Gaza, Palestina e Israel. Apesar de defender repetidamente um cessar-fogo, o conselheiro de segurança nacional da vice-presidente disse que Harris não apoia um embargo no envio de armas para Israel. Quando Benjamin Netanyahu foi à capital dos EUA em julho, Kamala não assistiu ao discurso ao Congresso, mas reuniu em privado com o primeiro-ministro de Israel.

Em público, apenas tem rebatido os protestos que surgem nos seus comícios. Fê-lo no Arizona e, num momento mais mediático, também no Michigan, no mesmo local onde reuniu com ativistas pró-Palestina.

A recuperação de apoio operada por Kamala Harris nas sondagens dá à democrata mais caminhos para a Casa Branca, podendo ganhar sem os votos eleitorais do Michigan. Mas a campanha tem mostrado que não está a descontar nenhum dos sete estados decisivos.

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