REPORTAGEM | 1604 kms separam, mas não matam uma paixão: «Sinto-me portista a dobrar»

1 mes atrás 70

Santa Clara x FC Porto. Para muitos, apenas mais um jogo para o campeonato. Para outros, ainda que em menor número, uma ocasião única: por entrelinhas quiméricas, quis o destino que o clube que palpita o coração de milhares de adeptos se aproximasse dos mais deslocados e fosse ao Arquipélago a que muitos chamam casa. Adeptos deslocados. Sim, esses mesmo, aqueles que, apesar de forçados a viver longe do amor de uma vida, são donos de uma paixão desmedida, à prova de quilómetros, distâncias e oceanos.

Pelos Açores, o zerozero encontrou uma pérola, uma enciclopédia azul e branca. Hernâni Rocha, nome querido na Fonte do Bastardo, respeitado na Praia da Vitória e conhecido pela ilha Terceira. Barbeiro de profissão, substitui a lâmina e o pincel pelo papel e a caneta. Escreve e canta, seja no grupo coral, n'Os Reises, ou nos bailinhos da ilha, que animam, diferenciam e imortalizam o carnaval terceirense. Um homem do povo, um homem do FC Porto.

Para saber mais detalhes sobre esta relação à distância, o zerozero foi ao encontro de Hernâni. Simpático, disponível e bem-disposto, recebeu-nos em casa. Casa? Talvez a palavra certa seja museu.

As paredes respiram FC Porto e seguram histórias imortais, de heróis de infância e muitos títulos. Com alegrias e tristezas, suportam, relembram e dão vida a um clube centenário, dos maiores da Europa.

Fotografias, emblemas, dragões... Até a televisão dava Porto (Canal). «Queria que as fotografias fossem ainda maiores, para ter estas paredes todas forradas», confessou-nos. Ainda antes da entrevista, pedimos a Hernâni, com centenas de retratos na parede, para nos falar um pouco sobre os que mais lhe marcaram. Pode ver o resultado no vídeo aqui em baixo.

(Para ter a fotografia de todas as equipas do FC Porto, falta exclusivamente a da época 41/42. Por isso, Hernâni deixou a nota, caso algum leitor do zerozero tenha a tal fotografia e consiga ajudar a completar a coleção)

Memórias de um dragão de berço

zerozero: Sr. Hernâni, esta coleção aqui ao nosso redor é tremenda, mas gostávamos de saber como tudo começou. Qual foi a primeira ligação com o FC Porto?

Hernâni Rocha: A primeira vez que me lembro de ouvir o nome FC Porto foi a 16 de dezembro de 1973, no dia da morte do Pavão. Tinha sete anos. O meu pai estava a ouvir o relato do jogo num quartinho que tínhamos. Ele veio para fora com lágrimas nos olhos, virou-se para mim e para o meu irmão Júlio - estávamos a brincar - e disse-nos: "Acabou de morrer um jogador do FC Porto". Se calhar, antes, já tinha ouvido o nome do clube nos relatos, mas foi isso que me marcou.

zz: É impossível ficar indiferente a um acontecimento desses...

Pavão faleceu no relvado das Antas, a representar o FC Porto

HR: Nunca mais me esqueço. 16 de dezembro de 1973. 13 minutos da 13ª jornada, um jogo que ganhámos por 2-0, contra o Vitória FC. "O Pavão morreu, morreu um jogador do FC Porto", disse ele. Foi quando tudo começou, com 7 anos. A partir daí, as histórias são em catadupa.

zz: E, entre as primeiras memórias, também há-de ter de jogos que ficaram para a história do clube, acreditamos nós.

HR: Claro. Em 77/78, contra o Manchester United. Ganhámos por 4-0 nas Antas e perdemos lá, por 5-2, com dois golos do Seninho, para a Taça das Taças. O jogo com o Milan, que ganhámos por 0-1 com um golo do Duda: não havia televisão, então estávamos a ouvir o relato com o meu pai. O rádio estava na cabeceira da cama e já era de noite; o Duda marcou e foi uma alegria naquela casa! São as primeiras memórias, em pequenos e já a viver tanto o FC Porto.

zz: Incrível. É sócio?

HR: Tornei-me sócio do FC Porto antes de casar. Por isso, já sou há 33/34 anos. Tenho a revista Dragões toda, desde a número 1 até à mais recente.

zz: Com este problema da distância, já foi ao estádio ver o FC Porto muitas vezes?

HR: Já vi várias. A primeira foi em 1991, no ano em que casei. Fui lá fora e o meu irmão João Paulo, que estava lá a estudar, disse: "Olha, arranjei-te um bilhete. Vamos ver o FC Porto". Vi o FC Porto x Feirense para a Taça de Portugal, no antigo Estádio das Antas. Ganhámos (2-0) e o João Pinto marcou um golão que eu nunca mais me esqueço. Daí para a frente, já vi vários [jogos]. Entre eles, dois contra o Benfica; ganhámos ambos por 2-0. É sempre bom ganhar ao Benfica (risos).

João Pinto, um jogador que marcou o FC Porto e, por consequência, Hernâni Rocha

zz: Ao todo, sabe dizer quantos foram?

HR: Talvez tenha visto 14 ou 15 jogos do FC Porto ao vivo. Além disso, já fui ao Museu do FC Porto dez vezes. Quando vou lá fora, vou sempre ao Museu. Não consigo deixar de ver aquilo, é de uma beleza extraordinária.

zz: Deduzo que uma das vezes que tenha visto o FC Porto ao vivo tenha sido no Angrense x FC Porto, cá na ilha para a Taça de Portugal, em 2015. Como foi esse dia?

HR: Foi um dia espetacular. Tenho um amigo do Pico que veio de propósito ver esse jogo comigo. Saímos de Angra - ganhar por 2-0 contra o Angrense, com todo o respeito, era algo banal e jogámos com uma equipa secundária, mas FC Porto é FC Porto - e, depois do jogo, fomos para a zona dos Brancos da Praia da Vitória com parte da claque do FC Porto. A festa foi até de manhã. E eu já tinha a minha idade (risos).

zz: Imaginamos! Já agora, essa foi a última vez que viu o FC Porto ao vivo?

HR: Não. Foi na final da Taça de Portugal, a que ganhámos ao SC Braga por (2-0). Espetacular. É claro que gostamos que o nosso clube ganhe, mas a alegria de estar lá, naquele ambiente envolvente, sem haver problemas, é o mais espetacular de tudo. Gostei bastante. O Estádio Nacional é um lugar emblemático e é uma experiência a repetir. 

zz: Foi o jogo mais marcante que viu no estádio?

HR: Não. O mais marcante foi o primeiro FC Porto x Benfica que vi. Estava a chover muito. O Artur, um brasileiro que veio do Boavista, marcou dois golos. Esse jogo, por ser o meu primeir clássico e por toda a emoção, para mim, ficou marcado para o resto da vida.

zz: E à distância?

HR: Foi o do Kelvin. Estava com um grupo de amigos - uns do FC Porto e outros não - a jantar em Leiria. O restaurante estava cheio. Quando o Kelvin marcou, levantei-me e tive o azar de bater com o joelho na mesa, que estava cheia de cervejas vazias - parte delas bebidas por mim (risos). Algumas partiram-se, fui limpar e os empregados começaram: "Não se preocupe. Deixe estar. Está tudo bem". Depois, fui para a rua. Não conseguia ver o resto do jogo, com os nervos.

Uma imagem que deixa qualquer portista com um sorriso no rosto @Catarina Morais

zz: ...

HR: Comigo, veio outro rapaz. Não o conhecia, mas pedi um cigarro. Ele disse-me: "Não devia dar um cigarro ao senhor; você festejou o golo do FC Porto". Respondi: "Ah, mas és do Benfica?". Ele tinha vindo do Norte e ia para Fátima, porque o jogo foi perto da altura da Peregrinação. Disse-lhe: "Pronto, só dás se quiseres". Depois, falámos, que eu também sou cristão, e demos um abraço forte. Eu estava a dar o abraço e só estava à espera do meu irmão vir do restaurante para me dizer que o jogo tinha acabado! Entretanto, ele lá apareceu. Nunca mais vi o tal rapaz, mas foi um episódio que me marcou.

zz: Histórias fantásticas...

HR: Sem dúvida.

Portista à distância? Amor em dobro

zz: Sobre a distância, há parte de si que se sente menos portista que os restantes adeptos por estar tão longe do estádio e da equipa?

HR: Não, pelo contrário. Sinto-me portista a dobrar. Não consigo estar sempre lá, mas, quando vou, tento ir sempre ao Dragão. O meu irmão vive na Póvoa do Varzim e já sabe que temos de tirar um dia só para ir lá. 

zz: Perde algumas coisas, mas aproveita ao máximo quando está por lá.

HR: É isso. Por exemplo, eu antes tocava na filarmónica e não ia almoçar com eles. Sabia que o FC Porto ia jogar às 15h, vinha para casa, fazia um churrasquinho, metia o rádio a dar e acompanhava o jogo. Perdia umas coisas para acompanhar o FC Porto, mas não me arrependia. A questão de ser à distância acho que é essa mesmo: o amor é a dobrar. Eles [adeptos] estão lá [no Porto] e chateiam-se: "Ah, Pinto da Costa... Ah, Villas-Boas...". Esse problema não existe para mim. É mais uma etapa do FC Porto. No verão de 1980: Américo de Sá vs Pinto da Costa. Quase 40 anos depois, o que aconteceu foi parecido, a história repetiu-se. Eu lembro-me do verão quente de 1980, o FC Porto estava muito mais em baixo do que está agora. Acima de tudo, o mais importante é pensar que, no Norte, temos de ter e querer sempre mais qualquer coisa. Temos de ter sempre o dobro dos outros. É essa a mentalidade.

Era Villas-Boas no FC Porto, uma nova «etapa», segundo Hernâni Rocha @FC Porto

zz: Já que o tema se aproximou do presente: o que tem achado da equipa do FC Porto?

HR: Eu conheço os jogadores do FC Porto, porque vejo os jogos da equipa B e dos rapazes, mas a maior parte das pessoas olha para eles e não sabe quem são. É nesses cenários que se formam grandes jogadores. Agora, é dar-lhes espaço. Quero acreditar que o FC Porto ainda vai fazer uma brincadeira... Já fez, aliás, na Supertaça, mas acredito que pode fazer mais. Contudo, não parte na pole position.

zz: Alguma vez pensou em ir morar para o Porto para acompanhar mais de perto a equipa e o dia a dia do clube?

HR: Ai... Tanta vez. Foi uma vida inteira a pensar: "E se eu vivesse ali, ao lado daquele Estádio...". Agora tocaram num ponto... Pensei nisso a vida inteira. Uma pessoa aqui já tem a sua vida, por isso não há hipótese. Se vivesse lá, não faltava a um jogo do FC Porto no Estádio do Dragão. Aqui, na ilha Terceira, vejo todos. Só se não puder mesmo, mesmo. Ainda assim, arranjo sempre maneira de acompanhar o resultado. Os meus amigos só me dizem: "Oh homem, outra vez o FC Porto? Possa, deixa isso da mão!".

zz: E já alguma vez lhe vieram com a conversa do: "Se és da ilha, tens de apoiar um clube da ilha"?

HR: A questão é que antes de conhecer os clubes de cá, já era do FC Porto. O meu pai incutiu-me isso. Ele até era do União Desportiva Praiense, que equipava à FC Porto [azul e branco]. 

zz: Há algum ponto comum de portistas cá na ilha? Alguma casa do FC Porto, por exemplo?

HR: Temos uma casa do FC Porto da ilha Terceira, mas não há um sítio físico, é só o nome. É mais uma espécie de núcleo. Era importante existir uma casa mesmo. O Benfica tem. O FC Porto tem uma em São Miguel e acho que faz falta uma cá. Já há anos que se fala nisso.

zz: Assim sendo, a sua garagem, esta espécie de museu, quase que acaba por ser o epicentro do portismo aqui na ilha, não?

HR: Não (risos). Há mais, há mais pessoas tão ou mais portistas que eu. Estou a dizer que faz falta uma casa onde as pessoas se juntem verdadeiramente. Aqui, para ver os jogos do Porto, sou só eu, o meu filho, o meu irmão e uns amigos. Juntamo-nos aqui para ver os jogos, fazemos umas picanhas e o zerozero está convidado para vir ver o próximo jogo (risos). Vão gostar!

Fora da pole, com olhos no grande prémio

zz: Agradecemos o convite! Por falar nisso, o próximo jogo é contra o Santa Clara. Antes de lhe perguntar sobre o jogo em si, ainda gostava de lhe perguntar o que está achar do treinador? Boa pré-época, venceu a Supertaça, ganhou na primeira jornada...

HR: O FC Porto ganhou ao Sporting, mas daquela maneira só acontece uma vez de 100 em 100 anos. Ganhámos todos os jogos de pré-época, mas isso vale o que vale. Lembro-me bem de 1987, que o Artur Jorge não ganhou um jogo de pré-época que fosse e acabou como vencedor da Champions. Por isso, a pré-época significa pouco. O Vítor Bruno já ganhou dois jogos oficiais e não é por acaso. Já tem muita experiência. O Sérgio Conceição era bom, mas não nos podemos esquecer que o Vítor Bruno era o seu braço direito. Acredito muito nele.

Último Santa Clara x FC Porto foi na temporada passada, para a Taça de Portugal @Miguel Cardoso / Kapta+

zz: Agora sim: Santa Clara x FC Porto. Sabe bem ver o FC Porto a jogar contra uma equipa dos Açores?

HR: É-me indiferente. Quero que o FC Porto ganhe. Atenção: gosto que o Santa Clara esteja na I Liga. Como açoriano, gosto muito. Podem ter o equipamento vermelho, ligações com o Benfica, mas gosto. Gosto de ter um representante açoriano, mas quero que o FC Porto ganhe sempre.

zz: Por isso, está confiante na vitória para esta sexta-feira. Vai ver o jogo?

HR: Não sei. É um horário terrível. Se tiver muito serviço, ainda estou na barbearia. Não gosto nada de trabalhar enquanto há jogo. Se não houver muito, ainda me vou é safar e ver o jogo para casa!

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