REPORTAGEM | Tecnologia na arbitragem: «Corremos o risco de daqui a cinco ou dez anos termos jogos sem árbitros»

2 meses atrás 42

«O futebol está a mudar! Estão a desvirtuar o nosso futebol!», quantas vezes já ouvimos frases como estas? A verdade é que o futebol está mesmo a mudar. Não há como evitar uma certeza tão inabalável. Resta-nos tentar depreender se para melhor… ou pior.

Neste sentido, e porque este é um tópico que merece a nossa maior atenção, decidimos tentar perceber algumas das mudanças e inovações mais recentes no importante mundo da arbitragem.

O Euro 2024 está a ser palco de experimentação e «aprimoração» de algumas tecnologias que prometem alterar a forma como se arbitra um jogo de futebol. O zerozero entrou em contacto com o ex-árbitro FIFA, Duarte Gomes, para nos ajudar neste tema.

Cristiano Ronaldo ou Bruno Fernandes? Tinha dado jeito...

Uma das novidades é a Tecnologia Connected Ball – utilizada pela primeira vez num Campeonato da Europa.

@Getty /

«São chips dentro da bola, cujo conjunto de sensores transmitem uma informação à sala de videoarbitragem. Por exemplo, no Mundial que se realizou no Catar, quando eles introduziram o fora-de-jogo semiautomático, já era possível saber, no momento do passe, qual tinha sido o exato momento em que o pé ou a cabeça ou a parte do corpo que fazia o passe tocava na bola.», esclareceu Duarte Gomes, antigo árbitro.

«Na teoria é uma tecnologia que resolve o problema das mãos dentro da área. Já tivemos lances neste Europeu em que esses sensores dentro da bola conseguiram perceber que houve um toque na mão. Aparece até na imagem no ecrã televisivo, para quem está em casa, uma espécie de eletrocardiograma. Ajuda bastante nestes casos mais difíceis em que não se percebe se há mão ou não, como pode, por exemplo, ajudar em lances de fora-de-jogo, naquelas situações em que não sabemos se a bola toca no defesa ou se toca no atacante, para pôr um jogador em jogo ou não», acrescentou.

Em tom de brincadeira, o antigo árbitro foi ainda mais longe: «Tinha dado jeito por exemplo naquele lance entre o Cristiano Ronaldo e o Bruno Fernandes no Mundial do Catar para saber se o Cristiano tocou realmente na bola ou não.».

É para manter a lei?

Esta inovação relaciona-se com a tecnologia de fora-de-jogo semiautomático da UEFA (SAOT). Este sistema foi introduzido na Liga dos Campeões de 2022 e permite às equipas VAR determinarem situações de fora-de-jogo com rapidez e precisão, graças a dez câmaras especializadas instaladas no estádio que rastreiam 29 pontos diferentes no corpo por jogador. É aqui que começa a discórdia, e a questão: quanta tecnologia é demasiada tecnologia? «Há danos colaterais quando nós queremos ter a tecnologia ao serviço da arbitragem e um desses danos é a da precisão milimétrica», disse.

Questionámos Duarte Gomes sobre os foras-de-jogo tirados a jogadores que aparentemente não tiraram vantagem da sua posição – caso de Romelu Lukaku frente à Roménia e de Joachim Andersen frente à Alemanha – e sobre a lógica da lei atual: «O que nós temos de perceber é se nós queremos manter à letra a lei como ela está. A lei neste momento diz o quê? Se estiver adiantado e tomar parte ativa - se jogar a bola - está fora de jogo. E, portanto, não diz quanto é que está adiantado. Ora, adiantado é ao milímetro. Um milímetro, um centímetro, um metro, a tecnologia não quer saber nem sabe. Porque nós estamos a olhar na ótica de que é muito injusto por causa de um centímetro ou dois, mas quando somos nós a sofrer o golo, a equipa que sofre também não gosta de sofrer só porque estava adiantado um centímetro ou dois. Também não é justo. Porque a lei diz que adiantado é punido. Nós devemos repensar é a letra da lei.»

Lei Wenger

E a lei Wenger? «Essa proposta do Wenger de facto faz algum sentido, embora eu também ache que não vai resolver grande coisa.»

Se não estiver a par, não se preocupe, caro leitor, nós explicamos: a lei Wenger propõe que, enquanto o jogador que vai receber a bola tiver uma parte do seu corpo sobreposta sobre a linha do defesa, então está em jogo. Ou seja, imaginando uma linha no limite do pé do penúltimo defesa – tal como se faz agora -, se o avançado tiver pelo menos «um pé que seja» atrás dessa linha, está em jogo, caso o seu corpo ultrapasse completamente a tal linha então aí sim, está fora-de-jogo.

«Isto na prática diz-nos logo que vai haver mais lances de ataques sem infração, porque já há uma margem ali», diz Duarte Gomes.

A proposta de Wenger

Portanto vamos ter mais ataques e, eventualmente, menos punição. Mas e quando a sobreposição for de apenas um centímetro? «As pessoas dizem “Dá-se uma margem de 10 cm então”, e quando estiver fora de jogo por 11 cm? Voltamos sempre à mesma questão. A proposta do Wenger é boa porque de facto vai permitir, na minha opinião, que existam mais lances de ataque sem infração, logo mais golos, dá uma margem maior ao avançado em relação ao corpo do penúltimo defesa, mas vai transportar a discussão para essa zona milimétrica em que a tecnologia vai dizer que está sobreposto a um centímetro. Vai ser impercetível a olho nu e, portanto, não é golo. Ou então está correto por um centímetro e é

E pontos positivos? «A verdade é que se resolve a coisa em poucos segundos, é impressionante. O árbitro recebe a resposta em campo para aí uns 5 ou 10 segundos depois. Portanto perdeu-se aquele tempo de espera que às vezes pode ser de 1 ou 2 minutos em algumas ligas, e, claro, conforme o tipo de lance. E perdeu-se aqui uma coisa importante que é a falibilidade humana. É tudo automático, não há intervenção humana e é infalível. A única altura em que há intervenção humana, e por isso é que se chama semiautomático e não totalmente automático, é naqueles lances de fora de jogo de interferência. Ou seja, o jogador que está fora de jogo, a tecnologia diz que está fora de jogo, mas se ele não tocar na bola, compete ao árbitro e ao VAR perceberem se ele interfere ou não.», referiu.

Excesso de informação

Outra das novidades é a forma como toda a operação de arbitragem está organizada na Alemanha. O FTECH HUB é o epicentro de todas as operações tecnológicas do EURO 2024. É um centro tecnológico que recebe e reúne todos os dados recolhidos em tempo real, faz o controlo de qualidade e distribui para as diferentes aplicações. Questionámos o ex-árbitro sobre os pontos positivos deste modelo de organização e sobre a hipótese de haver um excesso de informação.

Quanto à primeira questão, não há dúvidas: «A organização é obviamente fantástica. Tem resposta quase imediata, pelo que, em termos de celeridade, é fantástica. A credibilidade da informação reunida também é muito boa, portanto não deve haver grandes dúvidas.» 

qHá 22 jogadores em campo com personalidades diferentes e que precisam de um pessoa que sirva de psicólogo e de gestor de emoções

Quanto à segunda, a opinião é ligeiramente diferente: «Muitas vezes o excesso de informação resulta em má informação. Por exemplo, de um lado temos um árbitro com acesso a quatro ou cinco câmaras que, com base nos ângulos fornecidos, vai dar indicação ao colega de campo. Por outro, temos um árbitro com dez ou 12 câmaras que vai perder tempo a escolher o melhor ângulo e ainda vai ter ângulos que mostram uma coisa e outros que sugerem outra. Isso já aconteceu, nós tivemos lances em que atrás da baliza parece claramente penálti e à frente parece claramente simulação. E é uma grande chatice porque há disputas, especialmente aquelas de intensidades e de interpretações, que nem a televisão consegue ajudar.»

«Portanto, percebendo muito bem o espírito subjacente a esta inovação tecnológica e a essa centralização de informação tecnológica, que é muito bom- a ideia era mesmo ajudar- não sei se na prática ajuda ou não. E isso leva-nos para aquela velha questão: quando é que já chega da tecnologia para não retirarmos humanidade ao jogo?», questionou Duarte Gomes.

Árbitros substituídos pela inteligência artificial?

Todo este cenário obriga a uma reflexão mais profunda. 

«Eu sou muito apologista da tecnologia para ajudar na celeridade do jogo e na qualidade da decisão, mas nunca retirando o entusiasmo e a paixão ao jogo, pelo contrário. O jogo fica mais rápido se eu tomar uma decisão em 5 segundos e não tiver que parar a partida 2 minutos. Se tudo isto se vai converter em demasiada mecanização do jogo, vai-se perder aqui muita coisa, não é? Já se perdeu um bocadinho do golo porque o adepto agora já festeja às prestações, já desconfia um bocado quando o lance é complicado», reiterou.

«Isto de facto tem que ser repensado. Vai haver um momento em que a tecnologia tem que parar de intervir, não só no processo de decisão dos árbitros, neste caso na arbitragem, como no próprio jogo. Era importante que se tivesse essa discussão em breve, porque, com a evolução monumental que nós estamos a ver da inteligência artificial, daqui a cinco ou dez anos, se calhar, podemos mesmo ter jogos sem árbitros», alertou.

Gerir emoções de um jogador

E porque nem só de decisões automatizadas se faz a arbitragem, Duarte Gomes relembrou: «Estamos a esquecer de uma coisa fundamental, é que são 22 jogadores em campo com personalidades diferentes, com estilos de entrega ao jogo completamente diferentes, mais agressivos, mais calmos, mais técnicos, mais malandros, mais velozes, não é? E eles precisam de uma pessoa que sirva de psicólogo e de gestor de jogo e de emoções. O gestor de emoções consegue evitar que um jogo, por exemplo, descambe, que um jogador que está a perder o controle se acalme, que não entre em conflito com outros. E esse papel, que foge à compreensão do adepto, é absolutamente fundamental. É fundamental estar perto dos lances, avisá-los antes das faltas acontecerem para dissuadir o comportamento. As pessoas não têm noção do número de cartões que se evitam e de faltas que se evitam marcar. Por essa mecânica invisível para o adepto, que é o árbitro falar, ser preventivo, saber ouvir, dar a palavrinha certa no ouvido e isso é tudo impercetível nas imagens.»

Esclareceu ainda: «Há árbitros que têm um padrão de dez ou 12 cartões. E há outros que têm três ou quatro. Não é à toa. E se calhar o que tem 10 ou 12, até os deu bem, se nós formos ver bem eram todos amarelos. A questão é que ele não soube evitá-los. Era um árbitro reativo, não era preventivo. E esse papel do árbitro gestor, esse papel do árbitro preventivo, pedagógico, que está por cima do jogo, que é o dono do jogo e que os jogadores respeitam, é fundamental e nunca se pode perder. Não há nenhuma tecnologia que consiga substituir isso.»

Já temos as grandes tecnologias, e os grandes árbitros?

Recuando um pouco no tema, questionámos Duarte Gomes sobre a discussão pré-Euro onde algumas pessoas defenderam o aumento da intervenção do VAR. Ao qual a UEFA respondeu garantindo querer «árbitros com poder e personalidade dentro de campo». Esta visão vai ao encontro da do ex-árbitro: «Estou completamente alinhado com o comitê de arbitragem da UEFA. A ideia é retirar à tecnologia o poder de intervenção tão grande. Na UEFA costumam dizer a brincar que se o polícia que estava sentado na última fila da bancada diz que viu, então o VAR também tem que dizer. Senão não é para intervir. Ou seja, tem de ser uma coisa claríssima que resulte num erro de perspetiva do árbitro, de colocação, de distração, de desconcentração momentânea, ou o que quer que seja e aí o VAR intervém.» 

Duarte Gomes terminou a carreira em 2016 @Carlos Alberto Costa

Isso não acaba por parecer contraditório dada a quantidade e a forma de tecnologia que se está a acrescentar ao jogo? Questionámos. «Parece, mas o futebol a nível internacional tem muito dinheiro. Isso também funciona muito como uma questão política. Eles querem mostrar que estão a investir para melhorar a decisão. Hoje em dia um jogo e um golo valem muito mais do que um resultado desportivo. Há muitos milhões em causa, muitas passagens, muito estatuto, muito dinheiro, e eles querem garantir que os erros estão minimizados.»

Isso não cria uma separação e uma distância monumental entre as ligas do topo da Europa e as ligas ditas inferiores que não têm recursos para implementar tais tecnologias? «Exatamente, basta olhar para o caso de Portugal. Nós ainda nem temos a tecnologia da linha-de-golo», – outra das tecnologias utilizadas neste Campeonato da Europa. «Implica um investimento muito grande. Serve para três, quatro lances no máximo por época, será que faz sentido um investimento tão grande? Eu acho que sim porque este é um daqueles casos factuais, a bola entrou ou não entrou. Não há intervenção humana e, portanto, corrige-se um erro. Agora faço outra questão. A Premier League, que é o exemplo de uma liga com bastante dinheiro, por mérito próprio, e que tem ambas tecnologias. A arbitragem ficou assim tão melhor? Há menos polémica lá depois disso? A questão é o uso que se dá à ferramenta, não é só a ferramenta», disparou.

«Nós temos que aliar à excelência da ferramenta, não há dúvidas nenhumas que elas são fantásticas, uma preparação muito grande dos melhores árbitros. Aí nós vamos ter grandes VARs a trabalhar com grandes sistemas de videoarbitragem. Até lá é prepará-los. Isso para mim é o mais importante, aliar a qualidade da tecnologia ao reforço de qualidade e preparação dos videoárbitros. O que é que vale ter uma ferramenta boa, se a pessoa que está ali não tem sensibilidade, experiência, competência, se vacila perante a pressão de saber que há alguém no estádio à espera e que aquela decisão pode decidir um campeonato, que estremece a voz quando está a comunicar e não comunica com a assertividade suficiente?», concluiu.

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