Rosário Macário: “Economia portuguesa depende do transporte aéreo”

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Especialista que teve um papel importante na Comissão Técnica Independente considera que a economia portuguesa “depende do transporte aéreo” e que o país dificilmente vai conseguir estar ligado ao centro da Europa por via terrestre de “forma eficiente”. No final deste mês, Lisboa será o centro da discussão sobre o futuro do transporte aéreo a nível mundial.

No final deste mês de junho, todas as discussões em torno do futuro do transporte aéreo “aterram” em Lisboa com a realização de certames que se propõem a refletir sobre o sector aeroportuário.

O ISEC Lisboa, em parceria com o Instituto Superior Técnico e a Universidade da Beira Interior, organizam a Semana do Transporte Aéreo, que se realiza de 27 de junho a 4 de julho, e que contará com dois grandes eventos, onde se debaterá o setor aeroportuário.

Assim, entre 27 e 29 de junho, o Campus Académico do Lumiar do ISEC Lisboa recebe o IX RIDITA, que reunirá mais de 50 especialistas, líderes do sector da aviação para discutir desafios do mercado ibero-americano e de 30 de junho a 4 de julho, a ATRS – Air Transport Research Society organiza a conferência mundial de transporte aéreo, com reflexões sobre temas como a descarbonização dos aeroportos à sustentabilidade do transporte aéreo.

Neste âmbito, o JE entrevistou Rosário Macário, Chairwoman da ATRS – Air Transport Research Society e membro da Comissão Técnica Independente que estou várias localizações possíveis para o novo aeroporto de Lisboa, que será edificado no Campo de Tiro de Alcochete. 

Destaca esta especialista que a economia portuguesa não só “depende do transporte aéreo” como Portugal dificilmente vai conseguir estar ligado ao centro da Europa por via terrestre de “forma eficiente”. Sobre o debate que se coloca na Europa sobre a possibilidade de substituir o aéreo pelo ferroviário, Rosário Macário considera que “Portugal nunca poderá dispensar o transporte aéreo” e que o país sempre foi “muito deficitário em relação às políticas de transporte aéreo”.

O que esperar da Semana do Transporte Aéreo que se realiza em Lisboa e antecede a conferência mundial de Transporte Aéreo da que também acontece em Portugal?

Será uma semana de debate e justifica-se pelo facto de recebermos em Portugal a Conferência Mundial de Transporte Aéreo. Portanto, a realização desta semana não é uma motivação local, digamos, e tem âmbito internacional ao qual se junta ainda a Conferência Ibero-Americana RIDITA. Esta organização tem vindo a ser combinada há cerca de três anos. Trazer a Lisboa a Conferência Mundial é dar a oportunidade a todos os nossos interlocutores nacionais com interesse no transporte aéreo, seja as autoridades, seja as companhias aéreas, sejam os operadores dos vários sistemas que estão nos aeroportos de terem a oportunidade de falar com os principais investigadores mundiais e com os principais académicos. Vamos receber aqui cerca de 400 pessoas, todos eles investigadores com reputação internacional. Muitas coisas mudaram desde a última conferência em 2010 até porque há novos temas que merecem ser discutidos. Em Portugal, somos poucos os investigadores e académicos na área do transporte aéreo.

Que grande desafio se coloca ao futuro do transporte aéreo?

A descarbonização é o grande desafio, sobretudo ao nível europeu. Até porque na Europa está a existir uma pressão muito grande no sentido de reduzir o transporte aéreo, em particular no centro da Europa e isso vai começar a ser uma realidade. Há uma tentativa bastante forçada pelas autoridades e políticas públicas no sentido de transferir o transporte aéreo para o ferroviário. Esta transferência é possível no centro da Europa mas nos países periféricos, como Portugal, não é possível. Nunca conseguiremos estar ligados ao centro da Europa por via terrestre de forma eficiente dada a nossa localização, a distância e as dificuldades da própria ligação de transporte ferroviário. Portanto, temos que olhar para a nossa localização como sendo centrada em relação ao mundo e a dois continentes: Europa e Américas.

Temos essa localização privilegiada?

Temos essa vantagem que pode ser utilizada nesta perspetiva dos conceitos de hubs em que estamos numa boa posição geográfica para pode vir a desenvolver este conceito de hub. Aliás, no passado, a nossa localização fez de Portugal, e de Lisboa em particular, a escala técnica e estação técnica de boa parte das companhias internacionais que voavam entre os dois continentes. Com a evolução da tecnologia, perdeu-se essa vantagem e comercialmente e politicamente não fomos suficientemente ágeis para nos adaptarmos a essa mudança. Com isso perdemos posição em relação a Madrid. E essa situação é largamente irrecuperável. Lisboa tem boas possibilidades de ser um hub mas não da mesma dimensão que Madrid porque a capital espanhola leva um avanço muito significativo.

No entanto, podemos manter essa estratégia?

Sem dúvida, não se pode excluir essa possibilidade dessa estratégia para Portugal. Estratégia essa que obviamente terá vantagens desde logo para a TAP que é a principal companhia interessada neste processo. Mas também para outras companhias como é o caso da EasyJet que já declarou que também pretende fazer um hub aqui. Portanto, temos de facto essa capacidade de explorar e de vir a desenvolver aqui um segundo hub ibérico.

Com uma dimensão mais apropriada?

Sim, até com uma vocação mais intercontinental do que no caso do hub de Madrid. Esse é desde logo um desafio. A questão que se coloca é como será a descarbonização nestes casos: esta prende-se também com um conjunto de elementos não só aéreos, mas também terrestres de assistência aos aviões, por exemplo, onde temos emissões muito significativas. Ou seja, é necessário começarmos também a gerir essa perspetiva. Estão a ser testadas novas soluções para reduzir as emissões de carbono em terra e não tanto no ar.

Essa dimensão intercontinental de Lisboa deve ser cada vez mais aprofundada?
Se olharmos para a grande estratégia de hub da TAP é em relação a outro continente e ao longo dos anos tem sido mais forte nesse sentido. A nossa localização dá-nos esta oportunidade. Obviamente, é preciso que os agentes económicos tirem partido dessa localização e fazermos aqui um ponto de ligação entre o outro continente e o resto da Europa

O Governo português tomou a decisão em relação ao novo aeroporto. Como é que esta conferência pode aportar valor aos próximos passos?

A decisão está tomada. Agora, essa decisão tem obviamente que ser acompanhada por um conjunto de políticas públicas e a própria política de transporte aéreo ao nível nacional, que não tem sido concretizada. É importante que decisores e agentes económicos façam parte destas discussões e que ganhem a perceção do que é que se está a passar noutros locais, sobre o que é que se está a discutir e a avançar para os próximos anos. Questões relacionadas com a nossa realidade podem ser levantadas neste evento.

Um dos temas fundamentais nesta discussão passa também pelas estratégias das companhias aéreas?

Sim, o modelo de negócio das low cost, por exemplo, já está a evoluir face àquilo que era o negócio original. E essa é uma evolução importante em termos daquilo que é a concorrência das companhias aéreas, da perceção das vantagens que tem um modelo versus outro modelo, da interação entre as companhias e o próprio aeroporto.O mesmo se aplica aos sistemas de navegação aérea, por exemplo. Portanto, tudo isso são elementos importantes de discussão de como vai ser a evolução do sector nos próximos dez, quinze, vinte anos, quer na Europa, quer na relação da Europa com o resto do mundo.

Nessa evolução enquadra-se o novo modelo de vertiporto?

Exato, esse é um modelo que compreende a utilização de aeronaves de descolagem vertical, algo começa a ter um interesse muito significativo por parte dos investidores. Bruxelas e Paris são exemplos recentes de investimento nessa área. É algo que serve de oferta complementar aos aeroportos e, portanto, estamos perante uma evolução que vai ser muito significativa quer no transporte de pessoas que obviamente será talvez o mais lento a ocorrer, mas também no transporte de mercadorias. Estamos numa fase inicial de introdução de novos veículos aéreos e como é que se vão relacionar com os existentes. A gestão dos slots aeroportuários também é uma questão muito importante: como é que os diferentes perfis de slots aeroportuários estão a ser adotados nos vários países

Ainda em relação à descarbonização, acredita que os voos curtos terão mesmo tendência para acabar mesmo com tantas inovações a avançarem, como os motores elétricos e combustíveis mais amigos do ambiente?

Os combustíveis de aviação sustentável já estão a ser incorporados e utilizados. Têm um grande problema que é o custo muito elevado porque a utilização ainda é reduzida e, portanto, enquanto não aumentar essa utilização, o custo não desce para valores razoáveis. Neste momento temos outros tipos de veículos aéreos a serem testados e em fases avançadas, que é o avião elétrico e hidrogénio. Também a componente elétrica está a ganhar muito terreno para converter todos os equipamentos de terra em equipamentos a abastecidos por eletricidade, o que obviamente traz grandes vantagens. A alta velocidade é obviamente um concorrente fortíssimo em relação ao transporte aéreo e se houver uma rede de alta velocidade forte, como existe no centro da Europa, naturalmente que o transporte aéreo abaixo dos 500 quilómetros vai ser menos competitivo. Acredito que a evolução, em termos de sustentabilidade, vai acabar por afinar melhor a vocação de cada modo de transporte em relação às diferentes opções. Se isto é reversível? As questões de sustentabilidade não vão regredir, pelo contrário, vão aumentar cada vez mais. Obviamente que é importante ter tecnologias, soluções, infraestruturas mas o utilizador acaba por ser o driver principal desta mudança. Temos uma grande necessidade de sensibilizar o utilizador para a necessidade de adotar comportamentos mais sustentáveis e essa é das áreas em que menos investimento se tem feito.

Esse é um dos grandes desafios do transporte aéreo?

O transporte aéreo não é dispensável, em particular num país como o nosso com esta localização e perificidade. A nossa economia depende do transporte aéreo e tendo vindo a converter-se ao ponto de a nossa economia já exportar muito pelo aéreo e esse foi um aspeto muito importante que foi assinalado nos trabalhos da Comissão Técnica Independente. No nosso caso, o aéreo está longe de ser dispensável. O que não quer dizer que, no caso de haver uma rede forte de alta velocidade, não possa haver certos trajetos que passem a ser melhor fornecidos pela alta velocidade. Essa complementaridade existe. Agora, sendo um país pequeno não faz sentido ter três, quatro, cinco grandes aeroportos. Temos que ter uma rede bem articulada e essa rede multimodal tem que ser pensada e corresponder a uma estratégia nacional e uma política pública associada. Sempre fomos muito deficitários em relação às políticas de transporte aéreo. Em Portugal, o transporte aéreo foi acontecendo.

Porque é que considera que tem sido assim?

O transporte aéreo em Portugal foi evoluindo sem termos um traçado estratégico que defina que queremos, o que é que queremos das nossas redes de aeródromos. Tudo isso foi-se deixando andar à medida daquilo que a livre iniciativa colocava. Por exemplo, isso dá origem a que tenhamos um número elevadíssimo de aeródromos para o território que temos. Nos últimos anos, a competitividade passou a ser muito forte, quer no modo aéreo quer em relação aos outros modos e começa a ser necessário sabermos o que queremos e como é que queremos avançar para obter determinado resultado e com que soluções fazê-lo. Diria assim: o deixar andar começa a ser uma opção demasiado penalizadora e, portanto, é necessário começarmos a pensar quais são as políticas de transporte aéreo, multimodais e que vocação queremos dar a cada modo. Quer nos passageiros quer nas mercadorias.

Um melhor aproveitamento de estruturas como Beja poderiam contribuir para uma maior coesão territorial

Ao contrário do que se ouve tantas vezes, Beja não é um aeroporto; é uma base militar com um pequeno terminal civil e do ponto de vista militar, Beja está a ser muitíssimo bem aproveitada. Já que falou desse exemplo, Beja é um bom exemplo de uma estrutura que não fez com que a iniciativa privada do sector se desenvolvesse à volta. Ali não há uma dinâmica económica territorial. Portanto, fazer infraestruturas e colocá-las num sítio não faz um milagre. Essa base aérea existe em Beja desde a Segunda Guerra Mundial e no entanto, para onde é que se desenvolveu o cluster de transporte aéreo? Ponte de Sor e Évora. Em Beja, que reforço está a ser muito bem aproveitado do ponto de vista militar, tem o centro do KC que é o avião que vai substituir o Hércules em toda a Europa. É em Beja que está o centro de treino e o simulador europeu vai ser ali. Portanto, há um enorme aproveitamento.

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