Sem pés, sem mãos…

A única boa notícia da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o caso das gémeas foi a agressividade do sr. Ventura – notem: agressividade dirigida à mãe das duas crianças doentes. Será desta que parte dos eleitores do Chega lamentam a viscosidade do trágico personagem? Infelizmente, é provável que não – e até tenho a impressão de que outros Ventura vão dar à costa depois de este esgotar o seu filão. O personagem que observamos hoje é apenas a versão 1.0 desta subespécie de criatura; outros chegarão para explorar este inqualificável modo de vida.

Na verdade, as CPI são uma nobre ideia que tem corrido terrivelmente mal, servindo de trampolim a todos os demagogos da pátria. Bem sei que na altura da queda do BES a prestação de Mariana Mortágua numa destas comissões fez salivar muito boa gente, hipnotizada pelo fervor da jovem bloquista no ataque desabrido a Ricardo Salgado. Eu também assisti a esses instantes seminais do western spaghetti parlamentar. Era impossível não aplaudir tanta pancada e tamanha vingança. Acontece que, logo na altura, aquela agressividade deixou-me um certo desconforto que demorei a identificar. Não é normal sentir pena e até misericórdia por um passarão como o DDT.

Com o tempo, decifrei esse sentimento — era repugnância democrática por este tipo de exercício populista que vive do ajuste de contas típico dos circos que andam de lugarejo em lugarejo. O tiro ao boneco humano não é um desporto digno, está ao nível do lançamento de anões, mas noto que há cada vez mais entusiastas. Uma coisa é a fiscalização política, outra é o julgamento sumário conduzido por deputados que fazem de ‘Ministério Público’, investigadores privados e até de juízes. Perguntam, julgam e emitem a sentença – traduzida num sound-bite eletrificante que transita logo em julgado. Tenho visto isto acontecer em muitas CPI, sob aplauso dos média, sempre presentes na fan zone da justiça instantânea. Mistura-se política partidária com factos, impressões, insinuações e já está: seta para cima. É o caminho mais curto para o éden editorial.

Quanto custará esta CPI do caso das gémeas? Talvez uma parte dos milhões gastos no tal medicamento? Se há caso, se houve aldrabice, o Ministério Público que investigue. Penso que seria o normal e o desejável, o resto é exibicionismo partidário. Não é política. Não melhora a nação. Estes abusos que decorrem no centro da democracia serão debitados na conta-corrente do país – a bancarrota moral está ali ao virar da esquina, e nós ladeira a baixo, sempre a acelerar. Sem pés, sem mãos…