Shakhtar, um clube sem casa: «O presidente nunca foi ao estádio ver um jogo nosso»

9 meses atrás 77

De Portugal para a Alemanha, para jogar contra uma equipa... ucraniana. A situação pode ser estranha para os adeptos portistas, mas para os do Shakhtar é só mais um dia na história de um clube cada vez mais habituado a andar com a casa às costas.

Originário de Donetsk, nos últimos nove anos não se pode dizer que o Shakhtar tenha propriamente jogado em casa.

O duelo com o FC Porto vai acontecer na cidade de Hamburgo, mas para trás estão nove anos de viagens e dificuldades acrescidas para um clube que tenta organizar-se no meio da desorganização de encontrar uma morada definitiva.

De Donetsk a Kyiv, com passagem por Lviv e Kharkiv e ainda uma paragem na Polónia, onde fez toda a fase de grupos da época passada, o Shakhtar continua de mala às costas na esperança de um dia regressar a Donetsk.

A inauguração da Donbass Arena, em agosto de 2009 @Getty /

O adeus à Donbass Arena

Desde fevereiro de 2021 que se fala da Guerra na Ucrânia, mas os problemas do Shakhtar começaram alguns anos antes.

Pouco tempo depois do Euro 2012, que era visto como uma competição importante para a afirmação da Ucrânia na Europa, de tal forma que o objetivo do país passava por entrar na União Europeia dois anos depois, a região da Crimeia foi invadida por tropas russas e o Shakhtar, campeão ucraniano, foi obrigado a deixar a Donbass Arena, criada pelo dono Rinat Akhmetov, o homem mais rico da Ucrânia.

1200 quilómetros separaram a casa do Shakhtar da nova residência, em Lviv. Se fora das quatro linhas tudo correu mal à formação de Donetsk, em termos futebolísticos o clube também acabou por se ressentir.

Paulo Fonseca, primeiro, e Luís Castro, depois, treinaram o Shakhtar @Getty / SERGEI SUPINSKY

Dos 50 mil adeptos que enchiam a Donbass Arena, o Shakhtar passou a contar com médias de 13 mil espectadores em Lviv e o Dynamo Kyiv aproveitou para reconquistar um título que fugia desde 2009.

A saída de Lucescu e a chegada de Paulo Fonseca fizeram com que o emblema de Donetsk voltasse à rota dos títulos, mas o regresso a casa permaneceu adiado.

«Nós, na Ucrânia, nunca fomos a Donetsk. O mais próximo que estivemos, e ainda é alguma distância, foi em Mariupol, quando lá jogávamos. Alguns funcionários do clube foram, simbolicamente, tirar uma foto à placa que dizia Donetsk porque era o mais próximo que estavam de casa desde que tinham saído de lá», relata Vítor Severino, antigo treinador do Shakhtar, em declarações ao zerozero.

Shakhtar - Monaco, jogado em Kharkiv @Getty / DeFodi Images

Uma aproximação indesejada

Contra a vontade de Akhmetov, o Shakhtar mudou-se para Kyiv e viu-se mesmo forçado a dividir estádio com o eterno rival, o Dynamo. Distantes na amizade, Dynamo e Shakhtar promoveram alguns momentos intensos ao longo dos anos.

Se o Dynamo era o maior clube do país, o Shakhtar falhou sempre essa aproximação e a forma como lidou com a invasão russa à Crimeia não caiu bem entre os ucranianos: o Shakhtar foi o único clube a recusar vestir t-shirts de apoio às tropas do país.

Por tudo isto, Akhmetov evitou ao máximo qualquer aproximação à capital ucraniana.

«Na primeira época, vivíamos e treinávamos em Kyiv, mas fazíamos os nossos jogos 'em casa', em Kharkiv, tanto para a Liga dos Campeões como para a Liga Europa. Era um voo de uma hora. Tínhamos de andar de avião todas as semanas, fosse para jogar em casa ou para jogar fora», conta Vítor Severino, antigo treinador adjunto do Shakhtar.

Dmytro Chygrynskiy regressou esta época @Shakthar Donetsk

«O nosso presidente nunca foi a favor disso [permanência em Kyiv]. Queria que a equipa continuasse a jogar em Kharkiv, mas no segundo ano acedeu e a equipa passou a treinar em Kyiv e a jogar no Olímpico de Kyiv. Nós dividíamos o estádio com o Dynamo», recorda.

«Essa era a parte política. Kyiv era a cidade do Dynamo, a grande rivalidade do Shakhtar era o Dynamo e foi esse o entrave numa fase inicial», acrescenta.

Apesar de todas as mudanças, a formação de Donetsk conseguiu adaptar-se e a permanência em Kyiv até funcionou como alavanca para conseguir angariar mais adeptos pelo país.

«Os ucranianos falavam do fenómeno das novas gerações começarem a ser adeptas do Shakhtar. O Shakhtar estava num processo de crescimento que tinha a ver com as conquistas dos últimos anos. Tinha vencido uma Taça UEFA e estava a ganhar o campeonato e as taças quase todos os anos, então havia esse fenómeno», lembra.

«Mesmo assim, não tínhamos muita gente nos estádios. As pessoas ficavam tristes com isso. O presidente nunca foi ao estádio ver um jogo nosso. Em conversas que tinha com o Darijo Srna, ele dizia que o presidente só voltava ao estádio quando o Shakhtar jogasse em Donetsk.»

«Havia uma sensação de luz ao fundo do túnel. Aquele pensamento de 'um dia vamos voltar, um dia vamos jogar para os nossos adeptos, no nosso estádio'. O Shakhtar promovia muito que nós estivessemos nas redes sociais, que fossemos às escolinhas do clube, que sempre que alguém de Donetsk fosse a Kyiv nos visitasse. Tentavam fazer essa aproximação para as pessoas não perderem esse sentimento. Sentia-se que o clube tinha mais adeptos, mesmo em Kyiv já víamos crianças com a camisola do Shakhtar.»

Shakhtar voltou a sagrar-se campeão em 2023 @Shakhtar Donetsk

O futuro... ainda sem casa

Há sempre incerteza no que toca ao futuro, mas se na maioria dos casos é possível fazer um planeamento para o que se segue, o mesmo não acontece com os clubes ucranianos e, claro, o Shakhtar não foge à regra.

Por isso, o clube vai olhando a curto prazo. Depois de definir o Volksparkstadion como casa para a fase de grupos da Liga dos Campeões, o Shakhtar procura agora representar todo um país na competição de futebol mais importante do Mundo.

«Eles [jogadores e equipa técnica do Shakhtar] vivem 'normalmente'. Falei com o Darijo e ele estava em Lviv. Sei que a equipa vai treinando em Kyiv e Lviv, mas a Liga dos Campeões é na Alemanha. Eles andam a viver o dia a dia. Há tensão e questões políticas para resolver, mas têm capacidade de se adaptar. Estamos a falar de funcionários que já passaram por isto duas vezes. Já saíram de Donetsk e agora tiveram este problema no conflito com a Rússia», recorda Vítor Severino.

Vítor Severino chegou a recolher camisolas para vender em leilões e ajudar as famílias ucranianas @Vítor Severino

«Tínhamos funcionários com família em Donetsk, que nas paragens faziam questão de entrar lá. Tinha de se comprovar que era residente, passar postos de controlo... agora passam por isso novamente.»

Apesar da saída de jogadores relevantes nos últimos anos (Trubin, para o Benfica, foi o mais recente), Vítor Severino acredita num Shakhtar sem desculpas e com algo a provar à Europa do futebol, em particular aos ucranianos.

«O facto de estarem a jogar a Liga dos Campeões serve para provar que a Ucrânia, mesmo a passar por tudo isto, é um país de futebol», afirma.

«O Shakhtar é um clube gigante, sei que o presidente e as pessoas que trabalham lá têm um carinho enorme pelo clube, sempre quiseram fazer do Shakhtar uma bandeira da Ucrânia, não só na qualidade do futebol, mas na qualidade de jogadores que saíram e continuam a sair de lá. A Ucrânia tem grandes jogadores de futebol, jovens de muito talento. Mesmo passando por tudo isto, vai ser uma prova de resiliência do país e do futebol no país. São a bandeira de um país que está a passar por dificuldades, mas que prova que está lá por ter qualidade e não por serem uns coitadinhos.»

Nas bancadas do Volksparkstadion esperam-se muitos adeptos portistas, mas também fãs ucranianos... que nem apoiam assim tanto o Shakhtar.

«Existem muitos deslocados ucranianos na Alemanha. Embora exista muita rivalidade de clubes, nota-se que agora existe um orgulho nacional em torno da bandeira da Ucrânia. Acredito que estarão até mais ucranianos do que adeptos do Shakhtar.»

SHAKHTAR DONETSK

EMPATE

FC PORTO

Ler artigo completo