Trump ou Harris. O mundo suspenso do fiel da balança americana

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Nunca, desde 1945 com a conclusão da II Grande Guerra, se registaram tantos eventos políticos violentos em praticamente toda a Terra: foram mais de 165 mil, só entre julho de 2023 e junho de 2024. Uma em cada sete pessoas no mundo foi exposta a um conflito armado nesse mesmo período.

Face ao ano imediatamente anterior, o número de episódios de violência cresceu 15 por cento. O aumento foi de 56 por cento desde 2020.

Na origem deste fenómeno esteve a eclosão de três guerras, na Ucrânia, em Gaza e em Myanmar, sem que outros conflitos, incluindo no Sudão, no México, no Iémen e na região do Sahel, tivessem abrandado.

A violência armada, extrema, elevada ou turbulenta, afeta seriamente meia centena de países.

"O número de eventos está a proliferar, assim como o número de grupos armados envolvidos na violência", refere o estudo, após compilar, em tempo real, dados de 240 países.

Já em 2022, o secretário-geral das Nações Unidas alertava para o agravar da tensão. António Guterres referia, então, que dois mil milhões de pessoas, um quarto da população mundial, vivia em áreas afetadas por conflitos.

Outros 84 milhões haviam sido forçados a deslocar-se dos seus lares, "devido a conflitos, violência, e violação de direitos humanos". Cerca de 274 milhões de pessoas iriam precisar de assistência humanitária devido a guerras.

Os planos então apresentados por Guterres para trazer a estabilidade não surtiram qualquer efeito, pelo contrário. O papel das Nações Unidas no palco mundial tem perdido relevância.

A tensão só tem vindo a agravar-se. 

Entre os meses de setembro e de outubro últimos, no Médio Oriente a guerra de Gaza alastrou ao Líbano e ameaça envolver diretamente o Irão e outros atores da região, a China intensificou a ameaça militar sobre Taiwan e a tensão da Península da Coreia subiu a pique, com Pyongyang a fazer explodir estradas e linhas férreas de ligação ao sul, e considerando "hostil" a Coreia do Sul.

A evolução dos conflitos tem prosseguido a um ritmo vertiginoso. A menos de duas semanas do escrutínio dos EUA, o Kremlin tentou esvaziar o protagonismo americano e interveio junto do grupo islamita palestiniano Hamas, para forçar um cessar-fogo em Gaza. Admitiu entretanto no território russo soldados norte-coreanos para "treinos". A Ucrânia afirma que são um reforço para a linha da frente.

A ameaça DJT e a simpatia de KH

Neste contexto, as eleições presidenciais nos Estados Unidos assumem uma importância crucial.

Atualmente, nos Estados Unidos e na quase totalidade dos Estados europeus, o discurso oficial e dos media aponta receios de que a reeleição do republicano Donald J. Trump venha a contribuir para a desestabilização mundial, ainda que o agravamento geral dos conflitos tenha ocorrido sobretudo durante a Administração Biden.

 Reuters (arquivo)

São apontadas diversas razões.

Uma delas prende-se com a perda de interesse de uma Administração Trump na NATO e nos tradicionais aliados europeus, em favor da defesa dos interesses americanos face à influência chinesa na Ásia-Pacífico e em África.

Outra prevê que o atual apoio à Ucrânia e a resistência à Rússia e a Vladimir Putin cedam a uma alegada proximidade e simpatia de Trump com o presidente russo, deixando a Europa à mercê do Kremlin.

Uma terceira vê uma presidência Trump a dar luz verde a Israel e ao seu primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, para abrir uma guerra com o Irão.

A postura do candidato republicano durante a campanha eleitoral ajuda a esta perceção.

A Administração Harris iria, pelo contrário, prosseguir provavelmente a política internacional de Joe Biden, já que a candidata democrata não tem proposto alternativas. Por exemplo, quanto à NATO, o atual presidente tem feito tudo para a reforçar e expandir, sobretudo depois da invasão russa da Ucrânia, e o mesmo deverá fazer a atual vice-presidente.

Na Ucrânia e no Médio Oriente, poderão notar-se alterações por parte de uma presidente Harris, pois os esforços de Joe Biden e dos seus conselheiros têm-se revelado algo contraproducentes. Os ucranianos têm recebido ajuda para se defenderem mas não para ganhar contra a Rússia. E, apesar da retórica crítica das ações de Israel, em Gaza e mais recentemente no Líbano, o apoio militar de Washington a Telavive prossegue sem hiatos.

Sob Biden, os dois principais conflitos mundiais têm-se arrastado, com tendência a agravarem-se, em vez de se resolverem. Trump tem afirmado que irá resolver rapidamente a guerra na Ucrânia e deu a entender recentemente que apoiaria um ataque israelita a alvos nucleares iranianos.

  Reuters (arquivo)

Esvaziar a NATO
Do ponto de vista militar europeu, o principal problema da reeleição de Donald Trump seria um desinvestimento americano da Aliança Atlântica, num momento em que a ameaça russa se agrava.

Na sua primeira presidência, Trump chegou a ameaçar retirar os Estados Unidos da NATO, criticando os aliados pela falta de cumprimento na comparticipação nos gastos militares. Durante a campanha eleitoral deste ano, admitiu que poderá vir a não cumprir o artigo 5º do Tratado da Aliança, que estipula que um ataque a um membro da Aliança é um ataque a todos, se a condição continuar por cumprir.

 
Num comício na Carolina do Sul, o candidato republicano afirmou mesmo que "iria encorajar" o Kremlin a atacar qualquer país da NATO que não contribuísse para a Aliança com dois por cento do seu PIB.

"Têm de pagar. Têm de pagar as vossas contas", disse Trump, em resposta à pergunta de um alegado presidente de um "grande país europeu", não nomeado. "Não vos iria proteger" em caso de ataque russo se não tivessem cumprido, afirmou. "Na verdade, encorajá-los-ia (aos russos) a fazer o que lhes apetecesse", ameaçou.

Palavras que suscitaram repúdio imediato do outro lado do Atlântico.

Os tempos, contudo, são outros e as ameaças de Trump não deverão passar de retórica de campanha, alimentada pela contestação ao financiamento na defesa da Ucrânia, num cenário de inflação e perda de poder de compra dos americanos.

O Congresso dos Estados Unidos não quis contudo ficar à mercê de uma qualquer estratégia presidencial e, no ano passado, aprovou a Lei de Autorização de Defesa Nacional, que exige a aprovação de dois terços do Senado, ou uma aprovação separada do Congresso, para os Estados Unidos saírem da NATO.

A medida poderá ser insuficiente, uma vez que a crescente polarização política nos Estados Unidos tem vindo a diminuir a capacidade de influência, baseada em consensos, do Congresso, na política externa do país.

A presidência, se o quiser, tem por outro lado ao seu dispor diversas formas de diminuir o empenho nos compromissos militares assumidos com a NATO, incluindo o não cumprimento de contratos de fornecimento de armas ou a recusa em nomear um Comandante Supremo das Forças Aliadas, tradicionalmente um posto ocupado por um norte-americano.

Enquanto comandante-em-chefe das Forças Armadas, Trump poderia realmente não invocar nem cumprir com o artigo 5º, como ameaçou. Teria nesse contexto de avaliar o impacto junto da opinião pública dos EUA e do Partido Republicano, que poderia ser-lhe muito desfavorável.

Tal ação iria transformar radicalmente as alianças tradicionais do país, com um elevado potencial de fragilização da influência mundial dos Estados Unidos.

A NATO como ponta-de-lança

À cautela, os europeus, alarmados com a ameaça russa e a possibilidade de perder o apadrinhamento americano, decidiram finalmente investir seriamente na própria Defesa.

Se a burocracia e a política de Bruxelas se irão intrometer no desenvolvimento industrial militar do velho continente, atrasando fatalmente o esforço, só o tempo o dirá. Mas os planos poderão ser suficientes para apaziguar Donald Trump e os seus conselheiros.

A própria Aliança Atlântica readquiriu por outro lado relevância com a guerra na Ucrânia e poderá revelar-se crucial também na defesa dos interesses ocidentais na Ásia, face à China, alargando a sua área de colaboração e de ação além do arco atlântico-europeu, de forma favorável aos americanos.

Reveladora dessa estratégia foi a participação, nos trabalhos da cimeira de ministros da Defesa da NATO, dos seus homólogos da Austrália, do Japão, da República da Coreia do Sul e da Nova Zelândia, a 17 de outubro último. Em pano de fundo, a guerra na Ucrânia e o apoio da China e da Coreia do Norte ao esforço de guerra russo. As ameaças de Pequim contra Taiwan ou as Filipinas poderão ter sido igualmente abordadas.

De facto, a China está a posicionar-se como a maior ameaça às regras da ordem internacional liderada pelo eixo transatlântico, tentando construir alianças e dependências em todos os sentidos, como atestam os investimentos em África e a coligação dos BRICS.

As capacidades navais, cibernéticas, espaciais e militares chinesas, incluindo presença nos mares Báltico e Mediterrâneo, a par da propriedade de infraestruturas cruciais na Europa, têm impacto logístico para a NATO, incluindo quanto a mobilidade e comunicações, sem esquecer o apoio dado à Rússia.

Na Ásia-Pacífico, a influência chinesa é incontestável, desviando para ali os olhos e recursos de Washington, em detrimento da Europa.

Apaziguamento como solução

Com o mundo a dividir-se cada vez mais em dois campos opostos, um liderado pelos Estados Unidos e o outro pela China, nunca os riscos foram tão elevados.

Um relatório do centro de análise de conflitos Crisis Group, publicado a 17 de outubro, quando faltavam menos de três semanas para as eleições norte-americanas, considerava incerta a política da próxima administração norte-americana em relação à superpotência rival.

Apontava, como obstáculos, potenciais "fricções" com uma Presidente Kamala Harris, sobretudo quanto a direitos humanos, e "imprevisibilidade" quanto a Donald Trump.

Os dois têm revelado diferentes inclinações políticas que serão de "grande importância para os aliados dos EUA, os seus parceiros e a sua concorrência, como Pequim", referiu no relatório "A Próxima Administração Americana e a Política Chinesa".

Face ao ambiente de tensão mundial que se vive, o Crisis Group recomendou uma aposta no apaziguamento. “Devem ser tomadas medidas para manter um nível de competição moderada, de modo a evitar um conflito existencial" e ao mesmo tempo dar espaço para a cooperação bilateral, aconselhou.

O centro propôs assim estratégias para evitar conflitos entre as duas grandes superpotências globais, uma vez que a competição entre ambas se estende da inovação tecnológica à definição da ordem internacional.

Fulcrais, referiu, seriam a manutenção da "dupla dissuasão" em relação à China e a Taiwan, “que procura persuadir a China a não atacar e Taiwan a não declarar a independência formal", a utilização e o alargamento dos canais militares e políticos com Pequim e o cuidado em mostrar que Washington não pretende o colapso do gigante asiático.

 Reuters (arquivo)

O relatório aponta Kamala Harris como a melhor candidata para prosseguir esta política recomendada, seguindo a estratégia já adotada por Joe Biden, de reequilibrar as relações externas dos Estados Unidos.

Uma conclusão que não surpreende, dado Donald Trump preferir uma “paz musculada” em detrimento de vias de conciliação.

Em alternativa, o braço de ferro

Para muitos, perante o frenesim violento que ameaça continuar a crescer e engolir o mundo, a resposta certa parece ser um murro na mesa entre rosnidos que amedrontem os mais ousados, em vez de apaziguamento e equilíbrios.

Matthew Kroenig, republicano e colunista da revista Foreign Policy (FP), vice-presidente e diretor do Centro Snowcroft do Concelho Atlântico para Estratégia e Segurança, afirmou num colóquio na FP, a 14 de outubro, que, na sua presidência, Trump foi muito criticado quanto ao estilo de governação, mas ignorado quanto aos resultados.

“Um olhar cuidadoso à política de fundo e ao que conseguiu, demonstra que ele foi um presidente de sucesso quanto à política externa, que trouxe ‘paz através da força’”, defendeu o analista.

Kroenig acrescentou que a maior diferença entre uma Administração Trump e uma Administração Harris, em termos de política externa, se deverá notar na questão ucraniana.

Trump foi muito claro na defesa de uma negociação a curto-prazo para acabar com a guerra rapidamente.

 
“Das suas declarações podemos inferir uma estratégia de retirar o apoio militar se [o presidente da Ucrânia, Volodymyr] Zelensky não negociar e – uma parte ignorada amiúde pelos críticos de Trump – ameaçando dar à Ucrânia ‘mais do que alguma vez tiveram’ se Putin não negociar”, referiu Kroenig.

“Suspeito que esta estratégia iria resultar em alguma forma de cessar-fogo”, acrescentou.

No Médio Oriente, Donald Trump já demonstrou que apoia Israel sem hesitações, seguindo a linha tradicional do Partido Republicano contra o Irão e também contra grupos terroristas na região.

Ao contrário de Joe Biden e da sua vice-presidente e candidata democrata, Kamala Harris, que têm simultaneamente apoiado e restringido Telavive, Trump quer ver Israel a “terminar o que começou” e a “fazê-lo rapidamente”, disse Kroenig.

 
“Para mim, isto soa que ele iria apoiar Israel com menos preocupação com danos colaterais”, refletiu, lembrando ainda a posição contrastante entre o candidato republicano e a atual Administração quanto a ataques israelitas a alvos nucleares iranianos. “Biden afirmou que não apoiaria um ataque de Israel a instalações nucleares do Irão. Trump retorquiu ‘isso é a coisa mais doida que já ouvi. Ele disse, ‘por favor deixem em paz o seu nuclear’? Isso é o que se quer atacar, certo?... Ataca-se primeiro o nuclear’”, lembrou o analista da Foreign Policy.

“Penso que isto revela um ponto de vista de Biden-Harris como estando de alguma forma acima do conflito, com Trump a ver os Estados Unidos como participantes num conflito com amigos e inimigos”, afirmou Kroenig.

Para o analista republicano, ao contrário do que sucedeu no primeiro mandato de Trump, o Partido está atualmente muito mais com o seu líder, sobretudo em questões externas, dando pouca margem a eventuais acordos com os democratas que pudessem boicotar iniciativas do presidente, caso Trump venha a ser eleito.

Um referendo à política externa dos EUA

"Donald Trump quer que os eleitores sintam que está a correr tudo mal e que quatro anos da administração Biden deixaram o mundo num estado caótico", pelo que tudo o que provoque o sentimento de que "o mundo está a ficar fora de controlo tende a ser bom para Trump", considerou Mead, professor de relações internacionais e humanidades no Bard College e um Distinguished Fellow em estratégia e estadismo no Hudson Institute of Strategy and Statesmanship.

A política externa poderá ser a pedra de toque que irá ajudar o candidato republicano a vencer as eleições. Quando se trata do equilíbrio da balança, "o caos ajuda Trump", afirmou.

Sob múltiplos aspetos, estas eleições vão referendar o papel dos Estados Unidos no mundo.

 
Matthew Kroenig referiu que “a maioria dos debates” entre as fações republicanas se assemelham aos de parte do Partido Democrata, centrando-se nas mesmas questões: “como devem os Estados Unidos relacionar-se com o mundo, quando devemos usar a força militar, temos mesmo de estar a lutar contra todos, em todo o lado, de uma só vez, terá o poder dos EUA limites”, exemplificou. Democratas e Republicanos estão profundamente divididos nas respostas e o resultado das eleições de 5 de novembro poderá levar ao rubro essa polarização.

Os eleitores norte-americanos focam-se primordialmente nas questões internas quando vão às urnas. Atualmente, a inflação, a crise imigratória e a preservação da democracia e de direitos, do aborto à liberdade de expressão, são os temas mais relevantes.

 
Como lembrou Joe Biden em fevereiro de 2021, no seu primeiro discurso sobre política externa, “já não existe uma linha definida entre políticas interna e externa”. “Cada gesto nosso na conduta externa tem de ser realizado tendo presentes as famílias trabalhadoras da América”, afirmou o presidente.

Esta pode mesmo vir a ser a eleição mais importante na história moderna norte-americana. Charles Kupchan, professor de relações internacionais e especialista do Conselho de Relações Diplomáticas, tentou resumir a questão, quando disse recentemente que “o centro político das democracias liberais está em perigo”.

Donald Trump ou Kamala Harris.

 
O futuro do mundo pode bem estar suspenso do lado para onde irá pender o fiel da balança norte-americana, no próximo dia 5 de novembro.

(com Lusa)

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