Ucrânia: Alemanha poderá vir a ser maior apoiante internacional de Kiev

7 meses atrás 58

A Alemanha pode tornar-se o maior apoiante internacional da Ucrânia, mas sem preencher o vazio de liderança dos EUA.

A Alemanha pode tornar-se, com o tempo, o maior apoiante internacional da Ucrânia, mas sem preencher o vazio de liderança dos EUA, caso continue o bloqueio ao pacote de ajuda a Kiev, segundo analistas ouvidos pela Lusa.

O tenente-coronel Torben Arnold acredita que o mundo está de olhos postos na Alemanha e que Berlim tem “um papel muito importante a desempenhar” no apoio à Ucrânia. Já o analista Rafael Loss, vai mais longe, apontando as mudanças que se podem prever caso o Congresso norte-americano se mantenha num impasse, e Donald Trump for reeleito para a Casa Branca.

“Então sim, é provável que a Alemanha se torne, com o tempo, o maior apoiante internacional da Ucrânia. Mas isso não significa que a Alemanha possa preencher o vazio de liderança que os EUA deixariam”, destaca o especialista em segurança e política de defesa europeia no Conselho Europeu de Relações Externas (ECFR) em Berlim.

O líder republicano da Câmara dos Representantes (câmara baixa do Congresso norte-americano) recusou-se na semana passada a submeter a votação um projeto de lei de ajuda americana à Ucrânia que acabava de ser aprovado pelo Senado (câmara alta).

Sem a adoção de um novo envelope, que prevê 95 mil milhões de dólares (88,5 mil milhões de euros, à taxa de câmbio atual), incluindo 60 mil milhões de dólares (56 mil milhões de euros) para a Ucrânia, 14 mil milhões de dólares (13 mil milhões de euros) para Israel, bem como fundos para Taiwan, não será retomada a ajuda norte-americana ao Exército ucraniano, interrompida desde o final de dezembro.

Este bloqueio, para além da discussão parlamentar, resulta de um impasse entre o Presidente norte-americano Joe Biden e o seu antecessor republicano Donald Trump, ambos candidatos às eleições presidenciais de novembro.

“A liderança dos Estados Unidos não se manifesta apenas no volume de ajuda militar enviada para a Ucrânia, estende-se ao grupo Ramstein, à coordenação das atividades na NATO e à inclusão de países não europeus, como a Coreia do Sul, no seio da coligação internacional” de apoio a Kiev, sublinha Rafael Loss, em declarações à Lusa.

“Também vimos que as ameaças nucleares de Vladimir Putin tiveram um efeito muito mais forte nas mentes dos decisores alemães do que na Grã-Bretanha, França ou Polónia. Sem as sólidas garantias de segurança dos EUA em relação à NATO, incluindo no domínio nuclear, acho difícil imaginar que Berlim se sinta subitamente mais determinada a enfrentar Putin”, destaca.

Para o tenente-coronel Torben Arnold, investigador no Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP),”não é possível compensar totalmente a ajuda prestada pelos EUA devido à insuficiência das capacidades de defesa na Europa”.

“Por esta razão, é agora necessário dar prioridade ao que pode ser feito para ajudar efetivamente a Ucrânia. Para se preparar para uma redução da ajuda dos EUA no próximo ano, a Europa tem de começar agora e não no próximo ano. Nessa altura, será demasiado tarde”, avisa.

Torben Arnold alerta para a importância de não comparar os números de armas ou munições com os russos, mas sim permitir à Ucrânia que estabeleça a sua superioridade através de “melhor tecnologia, táticas e procedimentos.”

O investigador do SWP de Berlim defende que a “zeitenwende” (mudança de paradigma), prometida por Olaf Scholz depois da invasão da Rússia à Ucrânia em fevereiro de 2022, só agora está a começar.

“A defesa nacional como um todo deve ser considerada e significativamente alargada. Por outro lado, as forças armadas alemãs têm de estar preparadas para o pior cenário possível (…) Isto não acontecerá de um dia para o outro”, considera.No discurso no parlamento alemão, três dias depois do início da guerra na Ucrânia, a 27 de fevereiro de 2022, o chanceler alemão anunciou um pacote de 100 mil milhões de euros para a modernização da Bundeswehr, as Forças Armadas alemãs.

Para o analista Rafael Loss, a “zeitenwende” na Alemanha está “bloqueada”.

“O governo alemão tem dificuldade em delinear um plano de despesas a médio prazo (…) mas é urgentemente necessário. Independentemente de como ou quando a guerra na Ucrânia terminar, a Rússia de Vladimir Putin continuará a ser uma ameaça a longo prazo para a segurança europeia”, aponta.

“A vitória (na guerra) encorajaria Putin. A derrota torná-lo-ia ainda mais imprudente. E os seus objetivos permanecem inalterados: castigar os Estados Unidos para fora da Europa e estabelecer a Rússia como a potência militar dominante no continente, o que não é do nosso interesse”, conclui.

Por outro lado, a maioria republicana na Câmara de Representantes converteu-se, sob influência do ex-presidente dos EUA Donald Trump, em força de bloqueio em matérias sensíveis como os fundos federais para funcionamento do Governo ou os pacotes de ajuda militar à Ucrânia.

Nos últimos dias, o Senado – de maioria democrata – conseguiu aprovar um pacote de ajuda de cerca de 80 mil milhões de euros destinados à Ucrânia e a Israel, mas bastou uma palavra crítica de Trump sobre essa medida para que a maioria republicana na câmara baixa do Congresso ameaçasse novo impasse sobre a matéria.

Também sobre política de imigração – onde o Presidente Joe Biden reconheceu a necessidade de introduzir modificações, perante uma escalada de entrada de imigrantes ilegais pela fronteira com o México – Trump tem dado instruções para que os republicanos não facilitem a vida à Casa Branca, criticando a forma como o líder da maioria na Câmara de Representantes tentou misturar esse tema com a ajuda à Ucrânia e, de novo, bloqueando ambos os temas.

“A verdade é que Trump é hoje o dono e senhor do Partido Republicano, como se viu recentemente no fracassado pacote de ajuda externa (a países como a Ucrânia) que continha leis e medidas mais duras contra a imigração ilegal”, explicou à Lusa Nuno Gouveia, especialista em política norte-americana.

Este analista recorda que o bloqueio foi meramente tático, para impedir que Joe Biden ganhasse pontos para a sua campanha de recandidatura às eleições presidenciais de novembro, sobretudo numa matéria que tem sido uma das bandeiras políticas dos republicanos.

A capacidade de controlo dos republicanos por parte de Trump explica-se com o seu forte enraizamento na base eleitoral do partido, o que lhe tem permitido anular qualquer adversário interno à sua própria recandidatura à Casa Branca.

“Todos têm receio de enfrentar algum oponente nas primárias que seja apoiado por Donald Trump ou de perder acesso à corte de Trump. Os custos de enfrentar Trump podem ser elevados, como viram Elizabeth Cheney ou vários outros que perderam os seus lugares”, explica Nuno Gouveia.

Trump tem pessoas de confiança nos lugares-chave do partido e controla ainda a sua máquina administrativa, para além de ter tomado conta dos principais financiadores e dos canais de comunicação, que são plataformas essenciais para uma campanha.

Ao mesmo tempo, como lembra Ana Isabel Xavier, investigadora de Relações Internacionais, Trump é um ativo muito útil para os republicanos, na sua tentativa de não perderem peso político no Congresso.

“Recorde-se que já em outubro de 2023, os republicanos procuraram o apoio de Trump para chegarem à liderança da Câmara dos Representantes, após 20 dias de paralisação. Foi mais uma ilustração clara de que Trump domina alguns estados e vários congressistas-chave”, explicou à Lusa esta analista, concluindo que “a polarização da América não se vai resolver com as próximas eleições”.

Este efeito de controlo de Trump sobre o Partido Republicano, contudo, tem bolsas de resistência, em particular no Congresso.

Nuno Gouveia deteta três tipologias de republicanos no congresso: “a minoria resistente”, que se encontra sobretudo no Senado, com figuras como Mitch McConnell, o líder da minoria nessa bancada, mas também Mitt Romney, Susan Collins ou Lisa Murkowski; os fiéis seguidores do ex-presidente, que constituem o núcleo duro da bancada da Câmara de Representantes; e uma terceira corrente, dos que contestam Trump e criticam as suas táticas, mas seguem a sua liderança, por motivos táticos.

Para este analista, apenas uma derrota de Trump nas eleições presidenciais de novembro poderá colocar em causa esta hegemonia do ex-Presidente sobre o Partido Republicano, mas sem fazer desaparecer o ‘Trumpismo’, porque esse já deixou as suas sementes.

Ler artigo completo