Um ano depois, ainda não há data de saída. Expropriados continuam sem indemnizações e falam em má-fé do Metro de Lisboa

1 hora atrás 24

Investigação Renascença

23 out, 2024 - 06:30 • Alexandre Abrantes Neves , Salomé Esteves (infografia)

O acordo com o Metropolitano já chegou há um ano, mas desde aí que os proprietários nunca mais receberam resposta. As expropriações devido à expansão da linha vermelha do metro estão atrasadas — e já levaram duas idosas a perder a entrada de uma nova casa, em mais de sete mil euros. O metro e a empresa que contratou para as negociações não se entendem – e um crime de má-fé não está excluído do processo.

QUA ALEXANDRE ABRANTES NEVES DENUNCIA 23H D2
Ouça aqui a reportagem da Renascença. Foto: Beatriz Pereira/RR

O cenário continua igual. Passou um ano, mas mantêm-se os caixotes acumulados nos corredores, as paredes com as marcas das molduras de décadas e uma casa mobilada com incerteza.

“Imagine o que é estar na posição destas pessoas. Veem a casa onde viveram nos últimos 70 anos a aparecer em vídeos e publicidade da obra, sabem que vai ser demolida, mas tudo ainda é uma incógnita”, conta à Renascença Francisco Encarnação Gomes, advogado de duas idosas, com mais de 75 anos e que preferem não ser identificadas.

Vivem num T4 no número 14 da rua Maria Pia, na freguesia da Estrela, a escassos metros da estação de comboios de Alcântara-Terra. O pesadelo começou há cerca de um ano, quando foram informadas pelo Metropolitano de Lisboa (ML) de que seriam expropriadas do imóvel devido às obras de extensão da linha vermelha, que vai passar a ligar São Sebastião a Alcântara.

O ML diz que a expansão vai obrigar à expropriação de vinte edificações em Alcântara e na Estrela, algumas delas propriedade da Câmara Municipal de Lisboa. O número total de indemnizações a pagar, entre inquilinos e proprietários, não é divulgado pelo metro – mas, só na zona da Estrela, a junta de freguesia aponta 32 famílias afetadas pelo processo e em Alcântara serão, pelo menos, três.

"Começaram a casa pelo telhado". Moradores questionam método de cálculo das indemnizações na Estrela

Em outubro do ano passado, e depois de queixas de vários moradores e de uma reportagem da Renascença, o Metro aceitou rever as indemnizações aos proprietários que seriam expropriados. Todas as comunicações foram feitas não diretamente com o ML, mas com o Instituto de Avaliação Imobiliária (INAI), mandatada pelo metro para gerir o processo.

Neste caso, o acordo chegou por email a 14 de novembro, em que o INAI referia que a contraproposta com um valor final de mais de 450 mil euros "passava ao estado de aceite". Mas, desde aí, aguardam a marcação da escritura.

“Primeiro, disseram-nos que seria na primeira quinzena de dezembro, depois na segunda, depois no final do ano. No início de janeiro, garantiram que seria até ao final do mês de janeiro, até que finalmente assumiram ‘olhe, não temos resposta’”.

Afinal, quem estava mandatado não estava mandatado?

Nesse momento, começou um vácuo de resposta por parte do Metropolitano, que os levou a avançar para uma ação no Tribunal Administrativo de Lisboa contra o ML, não para travar a expropriação, mas para pressionar o ML a cumprir o acordo e a avançar, o mais rapidamente possível, com a escritura e o pagamento da indemnização.

Mas a contestação por parte do Metropolitano trouxe uma surpresa. “Basicamente, diziam que o acordo não era vinculativo e que, afinal, o INAI não estava mandatado para isso”, esclarece o advogado.

No documento a que a Renascença teve acesso, o ML recorda que, num email dirigido aos proprietários, o INAI refere que “não se pode substituir à deliberação do conselho de administração do ML”. A resposta do metro conclui, por isso, que não se chegou a nenhum acordo para rever em alta o valor da indemnização, já que “não foi conferido [ao INAI] qualquer mandato”.

Quando viu a resposta, Francisco confessa ter ficado “estupefacto” e ter ido “reler várias vezes os outros documentos” que davam ao INAI competência para gerir as expropriações e chegar a acordo – nomeadamente, uma carta assinada pelo diretor jurídico (o mesmo que assinou a contestação) e também outra assinada pelo presidente do conselho de administração do ML.

Mas a confusão não havia de ficar por aí. Depois desta resposta do metro a dizer que o INAI não estava mandatado, esta empresa de avaliação imobiliária ainda marcou e desmarcou a escritura por mais duas vezes em setembro, até chegar à última data – esta quarta-feira, 23 de outubro. "Vamos ver se é desta", confessa-nos o advogado.

Quando passam vários meses entre a definição da indemnização e o pagamento, a lei exige que o valor seja atualizado, de acordo com o Índice de Preços no Consumidor excluindo Habitação. Neste caso, a subida foi de cerca de 10 mil euros – valor que, ainda assim, fica “abaixo” das expectativas das proprietárias.

Acho, no mínimo, estranho que a pessoa que assina a dizer que a empresa está mandatada é a mesma pessoa que vem contestar isso mesmo"

O advogado lamenta que o metro “tenha vencido pelo cansaço e saturação”. Francisco da Encarnação Gomes está “esperançado” de que a escritura seja finalmente assinada, mas assinala que a ansiedade e o medo ainda não terminaram: “os prazos de saída e de entrega das chaves ainda não foram definidos, mais uma vez parece que temos de estar à disponibilidade do metropolitano”.

Mas mesmo que haja fumo branco, o caso pode continuar na justiça. O impasse já fez as duas idosas perderem um sinal de 7.500€ dado por uma casa nas redondezas e que as protegia de grandes mudanças na rotina – nomeadamente, permitindo a manutenção do médico de família.

Francisco da Encarnação Gomes admite, por isso, avançar com uma outra ação judicial, para reparar este dano, como previsto na lei – e até coloca em cima da mesa que o metro tenha agido por má-fé.

“Continuar este braço de ferro com duas idosas, e apenas por uma questão de teimosia, não faz qualquer sentido. Então, dizem-nos: ‘negoceie com este senhor', nós negociamos e depois dizem que tudo o que essa pessoa disse não é vinculativo para o metropolitano’? Eu acho que se isto não está a tocar na má-fé, está muito próximo disso”, critica.


Metro empurra para o final do ano, INAI garante ter “cumprido regras”

Contactado pela Renascença, o INAI, a empresa supostamente contratada e mandatada pelo metro para gerir o processo de expropriações, garante que todas as ações foram tomadas de acordo com as “regras definidas pelo metro”.“Nós fazemos o trabalho de contacto entre os particulares e o metropolitano, nas regras estabelecidas pelo próprio metropolitano. Tramitamos a informação, mas não tomamos a decisão”, esclarece.

Já o Metropolitano de Lisboa, em resposta escrita à Renascença, não fala em nenhum momento deste caso específico - garante apenas que está a cumprir "todas as determinações legais do Código das Expropriações e demais legislação".

Na mesma resposta, o ML esclarece que "até ao final do ano de 2024, todos os imóveis estejam libertos dos respetivos ocupantes", mas em nenhum momento clarifica se alguma escritura já foi assinada: diz apenas que já "foram concretizados acordos, para realojamento e (...) indemnizações".

A empresa afirma ainda que não tem “nenhum comentário a fazer sobre a ação judicial em curso” e que, perante “duas verdades diferentes, eventualmente alguma não estará correta e o desfecho será em tribunal”.

Metro de Lisboa. Planos para expansão da Linha Vermelha não mudaram

Crime de má-fé não está excluído

Fernanda Paula Oliveira, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, não exclui a possibilidade de alguém estar a agir de má-fé neste processo: “eu acho, no mínimo, estranho que a mesma pessoa que assina a dizer que a empresa está mandatada é a mesma pessoa que vem contestar isso mesmo”.

A especialista em direito das expropriações aponta ainda que o atraso no processo de expropriação – superior a um ano – já pode levar à queda da Declaração de Utilidade Pública (DUP) com carácter de urgência, sem a qual não é iniciado o processo de expropriação e que foi publicada em Diário da República em julho do ano passado.

“Se não houve escritura, não houve acordo, à luz do Código das Expropriações. (…) Os particulares não vão poder ficar eternamente à espera. No limite dos limites, e se não há acordo, no prazo de um ano tem de ser constituída arbitragem para chegar ao valor da indemnização. Como isso parece não ter acontecido, os proprietários já podem invocar a caducidade [da DUP]”, explica.

Se a DUP for declarada como caducada – e o metro não a renovar no prazo definido por lei, até agosto do próximo ano –, Fernanda Paula Oliveira alerta que “todo o processo começa do zero, (…) o que pode levar a mais atrasos na obra”.

Continuar este braço de ferro com duas idosas não faz qualquer sentido. Se isto não está a tocar na má-fé, está muito próximo disso"

A secretária de Estado da Mobilidade, Cristina Pinto Dias, disse esta terça-feira no parlamento que as obras estão atrasadas 18 meses: só devem estar concluídas, por isso, não no final de 2026, mas já depois de junho de 2028. A execução da obra está também atrasada - apenas 1,4% dos fundos, a maioria do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), foram até agora executados -, mas Cristina Pinto Dias reforça que o governo já está a renegociar os prazos com Bruxelas, para garantir que não há perda de fundos europeus.

Em julho deste ano, o presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR, Pedro Dominguinhos, alertou que será “materialmente impossível” concluir as obras até final de 2026, como inicialmente planeado. No mesmo dia, no parlamento, o ministro da Habitação e Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, admitiu que o metropolitano pode falhar os prazos do PRR, mas deixou a garantia de que “a prioridade na expansão” vai continuar.

Também na resposta enviada à Renascença, o ML diz prever começar a fase de construção em janeiro do próximo ano, assim que receba um parecer em falta da Agência Portuguesa do Ambiente - mas sublinha que já estão em curso "sondagens geotécnicas, geológicas, arqueológicas e ambientais".

Fonte ligada à obra diz à Renascença que esses sinais de perfurações "ainda são muito tímidos" e esclarece que são precisamente estes atrasos na obra que estão a fazer o metro empurrar para a frente o processo das expropriações, “já que não há necessidade de acelerar”. A mesma fonte aponta que a derrapagem dos prazos da obra se devem “à complexidade do plano, à ponderação de perceber se ainda é possível cumprir o PRR e à impugnação do concurso público por uma das empresas concorrentes”.


“O prédio está velho, mas nós nem sentimos o sismo, ao contrário de muitos edifícios modernos”

Mas este não é caso único. Há um ano, José Ramos começava a fazer contas à vida e a tentar perceber como ia desmantelar a mercearia que ergueu na rua Maria Pia, em Lisboa, há 48 anos. Hoje, o cenário não é muito diferente: a vida continua em suspenso, mas já sente na pele os efeitos dos atrasos nas expropriações.

Sentimos muito menos negócio. Havia pessoas que viviam aqui em casas alugadas e que foram embora e a gente perdeu muitos clientes. Dificuldades, dificuldades ainda não temos, mas facilidades também não são nenhumas. É trabalhar para as despesas. Se tivéssemos de pagar renda, já não dava”, relata à Renascença, com o mesmo olhar com que nos dizia, no ano passado, que nunca lhe “tinha passado pela cabeça” fechar o negócio desta forma.

Vai-nos contando, caso a caso, o que foi acontecendo nas redondezas: o restaurante do lado que não renovou o contrato de arrendamento e já mudou de localização, a senhoria do prédio de cima que ficou sem inquilinos há quase um ano “e a perder muito dinheiro” e os antigos vizinhos “que agora pagam rendas que equivalem a duas do que pagavam aqui”.

O pequeno mundo de José foi mudando, mas o seu desejo continua igual: doze meses depois, “agora ainda tenho menos vontade” de abrir a mercearia noutro lado. Enquanto não têm resposta do metro, José e a esposa só exigem uma atualização à indemnização de cerca de 230 mil euros, “porque há um ano, ainda comprávamos alguma coisa com isto e agora já não”.

Governo mantém prioridade na expansão do Metro de Lisboa mesmo sem PRR

Duas portas acima, Maria Dalila Esteves confessa que já é “mais o prejuízo do que o lucro” e refere que perdeu muitos clientes “porque acham que isto já fechou e já não põem cá os pés”.

Maria Dalila e o marido queixam-se da falta de resposta do metro às tentativas de contacto que têm feito. A última comunicação oficial chegou no final do ano passado e, desde aí, o único fumo branco que vão recebendo é através de contactos informais – e não os deixa confiantes.

“Passaram aqui uns senhores do metro. Vieram aqui beber um café e perguntei-lhes como é que era. Como tem muita burocracia, disseram que até janeiro ia estar tudo pronto. Mas continuamos à espera, vamos ver”, sentada precisamente na mesma cadeira do que há um ano.

A voz está mais preocupada, amargurada e até revoltada – “eles baseiam-se no prédio estar antigo, mas veio um tremor de terra [sentido a 26 de agosto] e ele não caiu. Nós não sentimos e noutros mais modernos sentiram”.


O único sismo que continua a abalar António Gomes há mais de um ano é a incerteza – “voltei à casa de partida, com estes atrasos”. Quando o metro atualizou o valor da indemnização e prometeu acelerar o processo das expropriações, António começou a procurar casa – mas viu-se obrigado a desistir.

Comecei a procurar, mas depois decidi deixar de ver. Guardava nos favoritos, as casas eram vendidas então optei por não ver. Depois do caso das minhas vizinhas que perderam o sinal, eu só posso começar a procurar casa no dia em que tiver a indemnização. Se não, também tenho medo de perder o sinal”, confidencia.

Desde o verão que tem visto alguns trabalhos nas obras do metro – primeiro umas carrinhas de caixa aberta, depois os primeiros trabalhos de perfuração. Descobriu tudo por andar à procura na vizinhança ou “por ouvir dizer”. Do metro, nem uma palavra. “É impossível comunicar com eles. Podiam só fazer uma comunicação a explicar tudo. Deixavam-nos muito mais descansados”, remata.

Destaques V+

Ler artigo completo