Abusos sexuais na Igreja: desmobilizar as vítimas e limpar a consciência

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A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) publicou o regulamento para a atribuição de compensações financeiras às vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica. Os pedidos são apresentados às Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis ou aos Institutos Religiosos e Sociedades de Vida Apostólica, caso o abuso tenha acontecido nas estruturas a eles ligados.

Primeiro, as vítimas têm de preencher um documento com a sua identificação e a idade que tinham no momento do abuso; o nome e a função à época do abusador; a data, o local e uma “descrição sucinta” dos abusos; as entidades a quem fez a denúncia e as medidas que foram tomadas. Ou seja, a vítima tem de voltar a fazer o que, em vários casos, já fez, incluindo junto da Comissão Independente, que produziu o relatório que levou a esta decisão, ou ao Grupo Vita. Agora de forma burocratizada, mas nem por isso menos dolorosa.

Depois, é preciso passar pela peneira que os bispos criaram para se defenderem. A comissão de instrução que aceita os pedidos é composta pelo menos por dois membros: um representante do Grupo Vita (criando depois da Comissão Independente) e outro da Comissão Diocesana ou instituto religioso onde os abusos ocorreram. Um número par que dá, na prática, poder de veto à instituição que representa o lugar onde aconteceu o abuso, já que, se houver divergência entre os dois membros da Comissão, deverá prevalecer o entendimento do segundo, que decide em causa própria. Isto chega para atirar por terra qualquer credibilidade deste processo.

Depois disto, o processo segue para a Comissão de Fixação de Compensação, que determina o valor. É composta por duas pessoas indicadas pela Conferência Episcopal Portuguesa, duas pela equipa de coordenação nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, uma pela Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal e duas pelo Grupo Vita. Ou seja, cinco dos sete membros são representantes da hierarquia da Igreja e das instituições onde as vítimas foram abusadas e, em muitos casos, ignoradas.

Os montantes das indemnizações terão em conta o tipo de abusos, a idade da vítima, a duração e frequência do abuso, a idade e estratégias utilizadas pela pessoa agressora, a natureza da relação entre a vítima e agressor, a vulnerabilidade de quem foi abusado e o impacto negativo da denúncia. Passado todo este processo, onde a hierarquia mantém todo o controle, a decisão definitiva ainda caberá à Conferência Episcopal, não vá o diabo tecê-las.

Olhando para este processo, parece haver o objetivo de desmotivar as poucas vítimas que resistem, evitando o efeito que decisões como estas tiveram em algumas dioceses nos EUA e dar total poder de decisão à mesma hierarquia que durante décadas encobriu os abusos. É provável que, no fim, se fique por umas compensações simbólicas que permitam a Igreja ser, como tem sido sempre, complacente consigo mesma, perdoando-se, preservando o seu poder e tratando de uma pequena lavagem no seu rosto pouco envergonhado.

É impressionante como, depois de um debate em todo o mundo sobre abusos sexuais de menores e o papel da hierarquia no seu encobrimento (e é isso que não permite dizer que o que ali aconteceu pode acontecer em qualquer lado), a Igreja Católica ainda não tenha percebido o que não pode fazer.

Obrigar as vítimas a recontar tudo às estruturas onde foram abusadas e por quem foram ignoradas, depois de se ter apelado a que o fizessem junto da Comissão Independente ou do Grupo Vita, é revitimizá-las, sujetando-as a reviver um pesadelo. Revela a mesma insensibilidade perante o sofrimento que levou a Igreja a ignorar as denuncias. E mostra que os bispos não perceberam que muitas destas pessoas perderam confiança naqueles a quem insistem em dar o poder de decisão. Na realidade, não tenho a certeza que estes bispos tenham percebido alguma coisa para além do dano reputacional provocado por estes casos.

A necessidade da hierarquia e das estruturas mais próximas do lugar onde o abuso aconteceu garantirem o total controlo de todos os passos do processo mostra que, depois de alguma abertura, os bispos querem que as coisas voltem a ser feitas dentro de casa. Mas não é por acaso que a única coisa decente que se produziu neste processo foi o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Por ser realmente independente, não estar disponível para proteger a imagem de quem permitiu o abuso e ter transmitido confiança as vítimas para que falassem com quem acreditaram não estar ligado a quem abusou ou ocultou. Sem isto, nada do que se faça é sério.

Já a ideia de medir a gravidade do abuso para determinar a indemnização parece-me complicada. Que convergência de conhecimento entre psicólogos, juristas e financeiros é necessária para este tipo de cálculo? Como se lida com as vítimas no momento em que se lhe explica o grau de importância do seu sofrimento num ranking burocrático?

Tenho dúvidas gerais sobre a viabilidade de indemnizações em casos que não foram julgados e já não o poderão ser. Mas se o caminho é esse, ele só pode acontecer de uma forma: a Igreja aceita indemnizar com base em indicações vindas de estruturas totalmente independentes, em que nenhum representante da instituição responsável pelo abuso ou pelo encobrimento tem sequer uma palavra a dizer, aceitando humildemente as conclusões a que se chegue.

O tempo para a Igreja fazer justiça em causa própria acabou. Ou aceita que sejam outros a aplicá-la, ou carrega o peso da culpa que tantas vezes põe nos ombros de tanta gente. Diz-se que Deus perdoa, mas do culpado por décadas (séculos) de silêncio e encobrimento, espera-se arrependimento sincero. E ainda não foi desta que o vimos. Sujeitar as vítimas a um novo calvário perante as instituições onde foram abusadas, que nunca os ouviu e que, em muitos casos, encobriu o crime, é repetir o abuso.

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