Controlam tudo como o "big brother", mas "sobem o preço do peixe". As quotas ainda desagradam aos pescadores?

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Europeias 2024

04 jun, 2024 - 06:00 • Alexandre Abrantes Neves

Mais consensuais do que há uns anos, as quotas pesqueiras são hoje vistas como um "mal menor" para regular o mercado. Ainda assim, já há alterações a pedir aos futuros eurodeputados - não só nas quotas, mas também nas regras "apertadas" para atrair mão de obra. Eis as perguntas e queixas de um setor que só responde a Bruxelas.

Reportagem pescas Alexandre Abrantes Neves 4Jun24
Ouça aqui a reportagem da Renascença. Foto: Hotli Simanjuntak/EPA

O sol está na posição mais alta. É meio-dia e o porto de Peniche está lotado. Da entrada, debaixo de um antigo telheiro do qual só resta a estrutura de ferro já enferrujada, os barcos parecem encher o horizonte e até o farol vermelho e branco tem dificuldade em espreitar entre as embarcações.

O caminho até ao cais é sinuoso, ora desviando-nos das gaivotas que rodopiam em nosso redor, ora contornando as poças de água que aparecem metro sim, metro sim.

Já fomos ultrapassados por vários carros que se dirigem para a lota quando nos encontramos com Luís Santana. Está no varandim da embarcação e não nos ouve à primeira tentativa, devido ao som da grua que transporta todo o peixe para terra.

A ronda da noite deu bons resultados - conseguiu pescar o limite máximo de 300 cabazes de sardinha, o equivalente a cerca de 6.750 quilogramas. “Hoje está um dia bonito, custa menos assim”, confidencia à Renascença, quando ainda subimos até à ponte - o nome técnico para a sala onde está o leme.

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Luís anda no mar há três décadas e há quase 20 que é mestre de embarcação. Deve ao pai “o gosto pela pesca do cerco” e a “sorte” de todos os dias poder sair de casa para fazer algo que gosta.

Quando lhe perguntamos qual é o pior momento de tantos anos a cruzar mar, é rápido a responder: a altura em que Bruxelas decidiu apertar as quotas de pesca anuais para proteger a biodiversidade.

Luís assume o rancor e a mágoa que ainda carrega na voz contra “os senhores biólogos” que “olharam para nós como uns assassinos, ignoraram o controlo da espécie que nós já fazíamos e acharam que tínhamos de ir para quota zero e parar as embarcações”.

Em 2015, centenas de pescadores saíram às ruas contra as quotas que o governo tinha decidido inicialmente para o ano seguinte na pesca de sardinha – uma redução de cerca de 90% e que até levou várias comunidades piscatórias a entregarem caixas de sardinhas à ministra da Agricultura e das Pescas da altura, Assunção Cristas.

O governo acabou por recuar e manter os níveis – mas que, à altura, continuaram a ser “insuficientes” e cujos efeitos, garante Luís Santana, ainda hoje se sentem.

“As fábricas precisavam de uma certa quantidade e começaram a aviar-se noutros lados. A procura habituou-se a outros lados e atualmente isso ainda nos prejudica. Se calhar agora, havendo mais alguma regularidade, começam outra vez a comprar o produto nacional”, refere.

Já ninguém se queixa das quotas?

A definição das quotas nacionais é um processo complexo, mas está dependente unicamente de Bruxelas – com a introdução da Política Comum de Pescas, a União Europeia passou a deter a competência exclusiva de toda a matéria de pescas que esteja relacionada com a proteção da biodiversidade marinha.

Anualmente, é definido um limite de pesca comunitário que não pode ser ultrapassado para garantir a sobrevivência de cada espécie – os chamados TAC, do inglês, “total alowable catch” (em português, captura total permitida). Após este valor estar estabelecido, os ministro das Pescas dos 27 reunidos em Conselho negoceiam e decidem – sob proposta da Comissão Europeia – as quotas que cada Estado-membro pode pescar de cada tipo de peixe.

Os senhores biólogos olharam para nós como assassinos e decidiram que tínhamos de parar as embarcações

De acordo com os números do ministério da Agricultura e das Pescas, a quota da sardinha deste ano não sofreu variações significativas em relação a 2023 – até ao final de dezembro, podem ser pescadas no mar português 7.674,25 toneladas.

Já quanto ao carapau – que foi uma das espécies que viu a quota aumentar em 2024 –, o limite máximo situa-se em 123.295 toneladas para este ano.

Humberto Jorge, presidente da Associação Nacional das Organizações de Produtores da Pesca do Cerco (ANOPCERCO), explica que esta é uma quota “muto difícil de se esgotar” e contraria as notícias das últimas semanas que diziam que a linha vermelha já tinha sido ultrapassada“em Portugal, podemos pescar carapau em três zonas e apenas na menos significativa é que o limite já foi excedido”, esclarece.

Pesca da sardinha reabre quinta-feira mas com limitações diárias

Ainda assim, Humberto “não tem ilusões”: ainda há “quotas irrisórias”, como o arenque, que acabam muito antes do fim do ano e que fazem com que “alguns pescadores percam muitos rendimentos”. A pergunta é automática, então: por que é que não há protestos como antes?

“Não afeta todos ao mesmo tempo e da mesma forma. A mobilização dos pescadores não é igual. Isso acontece principalmente na pesca polivalente, em que há dez espécies e algumas menos representativas. (…) Acaba [a quota] só numa e os pescadores são menos e têm menos voz”, detalha.

Quotas são como “leis” na sociedade

O sol já desce com velocidade quando colocamos a derradeira pergunta em cima da mesa: as pescas podem sobreviver com todas estas quotas e regras?

As diretrizes só são o problema da pesca quando são inadequadas e não condizentes com a realidade dos recursos. Isso é que é um problema. Agora, as quotas não são problema nem para nós, nem para nenhuma pesca. As quotas são um instrumento valioso para boa gestão de qualquer recurso”, defendeu Humberto Jorge.

Luís Santana vai mais longe e diz mesmo que a pesca não consegue sobreviver sem quotas – “são como as leis na sociedade, precisamos delas para regular a oferta, se não quanto mais pescarmos, mais barato vendemos”.

Pescar acima da quota diária – o que acontece frequentemente “porque eu não consigo devolver o excedente sem mandar o meu peixe ao mar também” – não é sujeito a coima, desde que o peixe não seja vendido ou transposto para outra embarcação sem aviso prévio.

“Numa semana, em que um dos meus barcos teve um problema no motor e não saiu, eu tinha peixe a mais no outro e passei para lá. Mas houve uma denúncia, tive de devolver as pescas todas e mais três ou quatro mil euros de multa. Tinha de avisar com antecedência, mas isso é impossível. Eu não sabia que ia pescar a mais”, lamenta.

Por esta razão, muitos pescadores pedem que as quotas piscatórias sejam semanais e não diárias. Contudo, e na perspetiva de Vasco Becker-Weinberg, presidente do Instituto Português de Direito do Mar e ainda eurodeputado do CDS-PP, esta estratégia pode pôr em risco o funcionamento do setor.

As quotas só são o problema da pesca quando são inadequadas e não condizentes com a realidade dos recursos.

“É preciso ver cada caso, não é meramente uma questão aritmética. Primeiro, é preciso avaliar a sustentabilidade qual o stock que os pescadores pretendem pescar. Depois, temos de garantir que há concorrência leal entre todos os pescadores. E ainda assegurar que está tudo legal quando descarregamos o peixe para a lota”, detalha.

Esta discussão é apenas uma das que pode ser trazida para cima da mesa na próxima legislatura europeia – nomeadamente, durante a discussão de um possível Pacto para os Oceanos.

Segundo o estudo “Sabes se o teu voto é fish?” da organização não-governamental (ONG) Sciaena, todos os partidos com assento parlamentar português são favoráveis à elaboração do documento e a grande maioria também daria luz verde a uma comissão para o oceano.

Vasco Becker-Weinberg também vê com bons olhos essas medidas – considera, aliás, que “a Europa e o mundo precisam delas”.

“Não apenas ter boas políticas para a União e para os seus mares regionais, mas ter verdadeiramente uma ambição mundial. Com essa liderança, também vêm muitos benefícios para a União Europeia. Em determinados dossiers, a UE é líder e essas boas práticas depois são replicadas. Isso deve acontecer também no oceano”, defende.

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Regras são “um big brother” que afasta mão de obra

Humberto Jorge alerta, contudo, para o facto de as regras apertadas de Bruxelas irem muito para lá das “meras” questões de quotas e estarem presentes em todos os passos que um pescador dá enquanto trabalha – “às vezes, já ultrapassa o Big Brother”.

Para além de ter de se registar todo o peixe apanhado em ferramentas digitais do diário de pesca, as diretrizes impostas por Bruxelas, em certas pescarias, já exigem câmaras a bordo e em alguns cais de descarga.

O presidente da ANOPCERCO considera estas regras “exageradas”, mas reforça que se tornam “ainda piores” quando nos viramos para as exigências da formação piscatória.

Uns metros atrás, Luís Santana dizia à Renascença que a formação atual de pescadores “era quase de médico” – nomeadamente para os contramestres que, entre formações e anos de experiência, só podem assumir funções seis anos depois de irem para o mar pela primeira vez.

Não é tão crítico quanto Luís – que pede “que seja como antigamente, em que se dava um mergulho e se aprendia tudo na prática –, mas Humberto Jorge critica a “pouca imaginação” para reduzir a carga dos cursos de formação, cuja duração ronda os seis meses.

“A formação profissional tem de existir, mas deve adequar-se ao que existe hoje. Há meios digitais mais que suficientes para se dar formação às pessoas sem ter sem ter de perder horas e horas. Também se podiam criar mais estágios para atrair mais jovens pescadores”, critica.

A solução preferida para colmatar esta falta de mão-de-obra passa por contratar imigrantes – mas até aqui a “burocracia é demasiada”.

Em Peniche, grande parte da mão-de-obra estrangeira vem da Indonésia – já habituados a irem para o mar, estes pescadores escolhem Portugal na esperança de ganharem rendimentos extras e de aqui não terem de se preocupar com habitação, voos e alimentação.

Ainda há quotas irrisórias que fazem com que alguns pescadores percam muitos rendimentos

A chegar aos portos portugueses, é-lhes exigido – “e com sentido” – um teste de português e outro de segurança básica. O problema está neste último: mesmo que já o tenham feito no países de origem, os pescadores imigrantes têm de o repetir e queixam-se de que isso faz com que a cédula demore, por vezes, mais de um ano a chegar.

Humberto Jorge considera que esta “lentidão burocrática” afasta a mão-de-obra estrangeira e mostra que o regulador não compreende a intenção destas pessoas.

“Continuamos a tratar estas pessoas como se se integrassem e ficassem cá para o resto da vida, mas eles não querem isso. (...) Eles têm o hábito de: receber dinheiro, ficam cá um ano e meio, regressam a casa e depois voltam a Portugal se quiserem. Ainda não conheci nenhum que viesse para cá para se estabelecer com a família”, relata.

Há 30 anos, a CEE pagava para se mandar peixe fora

Perante este cenário, a resposta para a falta de trabalhadores passa muitas vezes por pescadores reformados. Alberto de 74 anos é um deles. Já vamos em passo acelerado para regressar quando o vemos junto aos carros dos pescadores. Pescador há quase meio século, há 20 anos que tem estado mais em terra, a coser e remendar as redes – a agulha e a linha não param enquanto conversamos.

A pele bronzeada é sinal de muitas memórias ao leme de várias embarcações – algumas delas negras, principalmente de tempos em que a comida faltava à mesa. Quando lhe pedimos para nos contar uma dessas histórias, Alberto recua mais de 30 anos.

“Íamos ao mar, trazíamos o peixe, mas ninguém comprava e tínhamos de voltar a mandar tudo ao mar. A Europa pagava-nos subsídios, mas era pouco à mesma. Mas que remédio tínhamos? Sempre ganhámos pouco e à percentagem, não temos ordenado fixo”, recorda.

Em 1992, a então Comunidade Económica Europeia (CEE) pagava subsídios aos pescadores para deitarem ao mar o peixe que não conseguiam vender.

Em grande parte, devido aos acordos com Marrocos e Espanha – que permitiam a importação de carapaus e sardinhas a preços muito mais baixos que o produto nacional.

Sabiam que não iam conseguir vender e traziam para ganhar os subsídios. Eram outras mentalidades

Luís, o pescador com que abrimos esta história, tinha chegado ao ofício há poucos meses, mas a sua memória não o “engana” – também havia quem se aproveitasse destes apoios.

“Houve alturas que era mesmo excesso de pesca. As pessoas sabiam que só vendiam x, traziam y, para mandarem o resto fora e receberem dinheiro. Sabiam que não iam conseguir vender e traziam para ganhar os subsídios. Eram outras mentalidades”, explica.

Estas mentalidades de “quem era pobre e começou a ver uma fonte de rendimento” só mudaram quando o governo de Cavaco Silva à época cedeu às pressões dos pescadores e obrigou a que o peixe português tivesse prioridade nas lotas.

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De novo com Alberto, diz-nos que a preocupação hoje já não é ter de mandar peixe fora, mas sim ter quem o apanhe. Alberto cresceu rodeado de amor do amor que a mãe e o avô tinham ao mar – mas hoje com netos, a conversa já é outra.

“Isto vai acabar triste. É só velhada que está por aqui e daqui por uns anos não temos para trabalhar. Mas eu também tenho netos e não os quero aqui. Isto não dá nada”, explica.

É uma vida que Alberto não aconselha a ninguém, mas que também não deixa por nada: “eu gosto disto, o que é que hei de fazer?”.

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