O homem que presidiu à Comissão Europeia entre meados dos anos 80 e 90, um momento chave em que foi formado o mercado único, criado o euro e quando a Alemanha se reunificou, foi para muitos o último "grande europeu", que soube como encarnar o ideal de integração face às ambições nacionais.
Ninguém, desde a sua saída do executivo da Comissão Europeia em 1995, representou melhor o contrapoder de Bruxelas aos interesses dos chefes de Estado.
Delors e a sua fé irreprimível na Europa e no federalismo arrastaram o continente para a maior aceleração de integração alguma vez conhecida.
Este político de origem católica e convicção socialista, alérgico aos holofotes públicos e aos aplausos lisonjeiros, preferiu as ações às palavras e, assim que assumiu as rédeas de Bruxelas, afirmou: "O presidente da Comissão está ao serviço dos governos e não de um ideal europeu abstrato".
Delors, um 'workaholic' que já tinha sido eurodeputado entre 1979 e 1981, estava convencido de que um mercado único transformaria a Europa num polo económico sem paralelo, o que permitiria preservar o modelo social em que acreditava, mas a concorrência como estímulo não era acompanhada de cooperação e solidariedade, o que o levou a alertar: "Ninguém se apaixona sozinho por um mercado".
O seu caráter rude mas hábil trouxe-lhe o respeito de todos os líderes, incluindo os britânicos Margaret Thatcher e John Major, com quem as relações eram, no entanto, terríveis, encarnando aos seus olhos a burocracia de Bruxelas que invadia a soberania nacional.
Nascido em 20 de julho de 1925 em Paris, seguiu os passos do pai, cobrador do Banco da França e com deficiência a 90% trazida da guerra de 1914-18. Após a libertação de Paris, Delors era um entusiasta de jazz e de cinema que sonhava com o jornalismo e o cinema. Mas a obediência paterna empurrou-o para o banco nacional, ao qual ingressou com uma simples licenciatura em economia.
Filiado politicamente num sindicato cristão, em 1962 começou a trabalhar no planeamento económico de governos gaullistas, até 1969, quando foi recrutado pelo então primeiro-ministro, Jacques Chaban-Delmas.
Considerado a corrente social daquele executivo, promotor de contratos de progresso e de formação contínua, Delors não perdeu a sua independência, porque, como ele próprio disse, era "demasiado socialista para a direita e demasiado pragmático para a esquerda".
Mas 1974 deu o passo e aderiu ao Partido Socialista, atraído mais pela personalidade de François Mitterrand do que pelas suas ideias, como reconheceu nas suas memórias.
O homem de aparência modesta e olhos azuis casou-se em 1948 com uma colega que partilhava as suas crenças sindicais e religiosas, Marie Lephaille, falecida em 2020.
"A observação das injustiças e a minha fé cristã levaram-me a tornar-me ativo", explicou, sublinhando, no entanto, que não "carregava o catolicismo nos ombros".
Nomeado ministro da Economia (1981-1984), promoveu as nacionalizações, a desvalorização do franco e uma política de investimentos, antes de ser forçado a implementar a austeridade orçamental para preservar a paridade entre a moeda nacional e o marco.
À frente das finanças públicas, conseguiu endireitar as contas do Estado e, graças a um plano de austeridade sem precedentes, evitou que a França mergulhasse numa inflação galopante, assumindo uma "linguagem da verdade".
Apontado à liderança do executivo, foi descartado pelo jovem Laurent Fabius. O seu destino de europeu providencial já estava selado entre Mitterrand e o chanceler alemão, Helmut Kohl, e iria para Bruxelas.
Sucessor do luxemburguês Gaston Thorn à frente do executivo comunitário, em dez anos lançou o mercado único, os fundos de coesão, o Tratado de Schengen, o alargamento a Espanha e Portugal, o Ato Único que substituiu o Tratado de Roma, os programas Erasmus, a Política Agrícola Comum e o Tratado de Maastricht.
A sua popularidade era tal que as sondagens o colocavam como a única personalidade de esquerda capaz de evitar uma derrota socialista nas eleições presidenciais de 1995 em França.
Mas recusou-se a dar esse passo, alegando razões pessoais e falta de adesão às suas ideias, e a sua carreira estagnou quando deixou a presidência da Comissão Europeia em janeiro de 1995, substituído pelo luxemburguês Jacques Santer.
Tornou-se no primeiro apoiante de Lionel Jospin, que acabou derrotado pelo conservador Jacques Chirac nas presidenciais francesas.
A partir de meados dos anos 90, foi quase como um simples ativista que Jacques Delors continuou as suas lutas.
Com os seus 'think tanks', defendeu até ao fim o fortalecimento do federalismo europeu e apelou para mais "audácia" no momento do 'Brexit' e de "ataques de populistas de todos os tipos".
Muito modesto, soube preservar a vida privada enlutada em 1982 pela morte do filho, Jean-Paul.
O político francês apoiou sua filha Martine Aubry (atual presidente da Câmara de Lille e ex-ministra) durante as primárias do Partido Socialista para as eleições presidenciais de 2012. "Ela tem algo mais do que eu", justificou.
Em 2015, a União Europeia reconheceu o seu contributo nomeando-o cidadão honorário da Europa, uma distinção que apenas três líderes receberam: Jean Monnet, Helmut Kohl e ele próprio.
E foi quase irritado com os aplausos, em plena crise provocada pela falência da Grécia que pôs em xeque o trabalho de toda a sua vida, que um Delors de 90 anos mostrou perante os chefes de Estado e de Governo a sua cara mais severa: "Não há tempo para comemorações".
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