Divididos entre querer sair e querer ser filho do bairro. Nas ruas de Odair Moniz, o cozinheiro que tirou uma selfie com Marcelo

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Confrontos no bairro do Zambujal

24 out, 2024 - 06:30 • Alexandre Abrantes Neves , Lara Castro

Dentro do bairro, falam de um “coração bom que adorava crianças”. Do lado de fora, é um “assaltante que ameaçava pessoas com faca”. A morte de Odair Moniz mergulhou o bairro do Zambujal – e a cidade de Lisboa – numa onda de violência com a polícia. Esta madrugada, a Renascença percorreu a capital e testemunhou vários incidentes.

Clima de paz armada. No cruzamento do bairro do Zambujal, na Amadora, onde ardeu um autocarro na noite de terça-feira, a linha está bem traçada: de um lado, os moradores, do outro, os jornalistas e curiosos que ali vão passando para ver a mancha de cinza que permanece na estrada.

A noite terminou com petardos a quem não era do bairro, mas antes ainda houve tempo para falar com quem conhece bem aquelas ruas.

O caminho até casa de Odair Moniz é uma linha reta, ladeada por prédios azuis de um lado e por laranjas do outro – quase todos grafitados. Muitas das janelas estão fechadas e mais vão correndo os estores, à medida que o sol se vai pondo. Mas ainda há quem fale connosco, a uma janela de distância de segurança – e com a exigência de não serem identificados.

Do segundo andar de um prédio, uma idosa diz-nos que “conhecia bem o rapazinho”. Descreve-o com uma enumeração rápida: “honesto, trabalhador, bom coração”. Também ela sente uma “grande revolta” por uma morte que tem dificuldade em caracterizar, mas que lá encontra a palavra: injusta.

A lei manda prender, mas não manda matar. Só Deus nos deu a vida, só Deus a pode tirar”, vaticina.

Autocarros ardem no Seixal e em Santo António dos Cavaleiros, detenções na Pontinha e polícia atacada na Cova da Moura

Precisamente por medo de perder a vida, na noite de terça-feira acabou por abandonar o bairro por algumas horas, enquanto os ânimos não arrefeciam.

Esta também foi a estratégia adotada por um casal que fala connosco de sorriso apoquentado na cara. Os desacatos dos últimos dias deixaram-nos ainda mais certos daquilo que querem para o futuro.

“Se tivesse dinheiro, comprava logo outra casa. Até para criar os meus dois filhos – um deles com deficiência. O que se passa aqui é uma tristeza. Estamos habituados ao bairro, mas aquilo que aconteceu não é comum”, confessam-nos, já uma das crianças está a tentar também espreitar à janela.

Já estávamos quase a seguir caminho quando somos obrigados a olhar para cima: “Oh, filho do bairro não sai do bairro, estás a ouvir?”. São dois jovens, na casa dos vinte anos, que vão controlando das águas-furtadas do prédio tudo o que se passa na rua onde cresceram.

Dizem-se amigos de Odair e recordam “o gajo bom, principalmente para os miúdos. Adorava crianças”. Odair, o nome que está agora nas bocas deste pequeno mundo do Zambujal, era também o dono de um café no bairro que “abria a qualquer hora para dar comida e água à malta que precisasse”. No lugar da esplanada estão agora velas num pequeno memorial que ali se ergueu. Mas não é o único no bairro.


No cimo da rua é difícil avistar a entrada do prédio onde vivia Odair: em parte, devido à noite que, entretanto, já caiu, mas também por estar praticamente tapada por amigos e familiares que querem prestar uma última homenagem.

Dizem-nos “boa noite” com um tom de quem não acredita no adjetivo que acaba de utilizar. Terminou há poucos minutos o terço, organizado diariamente e que, desta vez, contou com a presença de uma freira missionária da Consolata, que ali mantem uma pequena capela.

Sentadas no patamar estão três primas de Odair. Vão alternando entre o português e o crioulo, enquanto saltam de uma rede social para outra, todas recheadas de homenagens e mensagens de despedida. Uma delas diz só querer mandar-se “para os braços da mulher dele, abraçá-la e chorar”.

Viu Odair pela última vez no sábado. “Foi no café que ele abriu há poucos meses. Ele começou o restaurante numa altura em que estava de baixa. Teve uma queimadura, ficou muitos meses em casa e depois arranjou ali aquele espaço e começou isto”.

A lei manda prender, mas não manda matar

Nos muitos anos que dedicou à cozinha houve um momento que mereceu ser assinalado por Odair nas redes sociais: o dia em que serviu uma refeição ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. As primas não nos precisam a circunstância, mas as máscaras denunciam que foi há poucos anos, durante a pandemia – “está aqui a fotografia, vejam”.

Estas três primas vivem hoje espalhadas pela Grande Lisboa, desde Loures até Mem-Martins, mas durante vários anos foram vizinhas de Odair no bairro 6 de maio, na Amadora, desmantelado em 2021. Quando lhes perguntamos se voltariam a esse tempo, a resposta é automática.

“Claro que sim. Éramos uma família. Estávamos muito mais seguros lá do que aqui, não acha?” – uma pergunta que parece dirigir-se aos desacatos dos últimos dias.

Para uns "um homem bom", para outros "um assaltante com faca"

No bairro do Zambujal, a narrativa é simples: Odair era um “homem de bem”, que acabou morto “injustamente pela polícia”.

Muitos dos jovens com quem vamos falando assinalam que o bairro “é dos bairros sociais mais calmos” e que “até nos podemos chatear todos uns com os outros – brancos, pretos e ciganos –, mas passado dois dias já está tudo bem”.

Quanto à polícia, dizem que “não há agente que aqui não seja respeitado” e descrevem que os conflitos se acentuaram nos últimos anos “quando os agentes mudaram e passaram a rodar muito e não nos conheciam”.

Todos rejeitam ter participado nos desacatos dos últimos dias, que “não ajudaram em nada”, e levantam até a hipótese de terem sido provocados por pessoas de outros bairros: “se eu tiver encapuçado e tu também, ninguém é identificado, não é?”.

Desde segunda-feira que estas fachadas ouvem todo o tipo de teorias sobre a morte de Odair Moniz. De forma geral, todos corroboram a notícia avançada pela CNN Portugal – o cozinheiro não estava armado e “o punhal estava dentro de uma bolsa no carro”. E a razão para abalroar três carros? “Estava bêbado, é o que a malta diz. Ele era boa gente, juro”.

Morte de Odair Moniz. Agentes da PSP negam ter sido ameaçados com faca

Uns 500 metros acima, a história que nos contam é diferente: "dizem que ele era santo, mas andava aí a roubar pessoas com uma faca há uns anos”.

No café Pérola de Alfragide, mesmo colado à esquadra da PSP de Alfragide, só se mantêm três clientes, a ver o Benfica-Feyenoord. A porta está aberta, mas as grades estão corridas. “Não é por causa do que aconteceu, mas porque já passou a hora de fecho”, conta-nos o dono.

O foco deixa de ser por alguns momentos os golos e passa a ser o dia-a-dia de quem vive à porta do bairro. Um dos clientes – nenhum se quis identificar – diz-nos que recebia “olhares desagradáveis, quando vive numa casa muito próxima deles durante três anos”, outro refere que “deviam era de vir cá nos outros dias, não só nestas alturas”.

Mas o mais assertivo é o terceiro elemento que, apesar de assinalar que “esta rua até é pacífica”, garante que não entra no bairro sozinho. E quando lhe perguntamos porque prefere ir acompanhado, começa por responder com um gesto – e mostra-nos o revólver que traz no bolso.

“Tenho licença de porte de arma. Já foi preciso utilizar. Mostras-lhes a arma e…”, vai exemplificando à Renascença, com o revólver sempre dentro da capa de cabedal e numa postura de tranquilidade.

Não entro no bairro sozinho. Só com arma

O tom volta a subir para deixar críticas à atuação das polícias.

“Chegam aqui todos ‘gigantones’ e vêm de colete. Quando íamos para o Ultramar não levávamos nada disso. Não se trata de uma questão de insuficiência deles, mas deviam fazer mais”, remata e volta a virar-se para os remates de bola que estão a passar na televisão.

Noite de desacatos pela Grande Lisboa

A Renascença percorreu ao longo da madrugada desta quinta-feira alguns pontos da Grande Lisboa, onde havia relatos de incidentes e desacatos.

A situação com mais aparato policial ocorreu à porta do bairro da Cova da Moura, na Amadora, para onde foram mobilizados cerca de duas dezenas de agentes da equipa de intervenção rápida da PSP, depois de ser ateado fogo a quatro caixotes do lixo e um motociclo.

Foram também lançados vários “very-light” e cocktails molotov – e um destes projéteis acabou por cruzar o portão de um lar da Santa Casa da Misericórdia da Amadora e causar um pequeno foco de incêndio, rapidamente controlado.


Um homem foi momentaneamente algemado por não acatar uma ordem para se deitar no chão, mas acabou por ser libertado cerca de meia hora depois e sair na viatura própria com que tinha chegado ao local.

Já na freguesia da Pontinha, a Renascença seguiu um camião dos bombeiros até uma estrada municipal, perto do bairro Mário Madeira, onde ardia um caixote do lixo. Enquanto filmava a ocorrência, a equipa da Renascença foi ameaçada a deixar o local.

No bairro do Casal da Mira, na Amadora, o cenário era semelhante. O cheiro a queimado fazia sentir-se em quase todas as ruas, havia grupos de indivíduos encapuçados junto dos prédios e, num só quarteirão, havia, pelo menos, quatro carros completamente carbonizados.

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