«Estávamos a negociar o Cherbakov e o Sousa Cintra abriu-nos a porta todo nu»

2 dias atrás 37

«Barrilete Cósmico» é o espaço de entrevista mensal de Rui Miguel Tovar no zerozero. Epíteto de Diego Armando Maradona, o nome do espaço remete para mundos e artistas passados, gente que fez do futebol o mais maravilhoso dos jogos. «Barrilete Cósmico».

Manuel Fernandes. O nome impõe respeito. Como melhor marcador português da Taça UEFA no século XX (18). Como jogador mais utilizado de sempre na 1.ª divisão (485). Como último a marcar quatro golos no dérbi de Lisboa (1986). Como único Bola de Prata ausente do Mundial por opção do seleccionador (1986).

Manuel Fernandes. O nome gera admiração. Estreia-se oficialmente com o Benfica, é guarda-redes improvisado nas Antas, vai às competições europeias com a CUF, chega a capitão no Sporting, ganha o título de melhor marcador da 1.ª divisão aos 34 anos de idade e acaba a carreira no Vitória FC, com 16 golos em 28 jogos.

Manuel Fernandes. A pessoa irradia animação. Estamos dentro de um Fertagus, a caminho de Setúbal. O telefona toca e Manuel diz-nos para sair no Pinhal Novo. Meu dito, meu feito. Saio da estação, subo as escadas, viro à esquerda para a saída e lá está a mão de fora do carro. É um Mercedes.

(a banda sonora na rádio é o Bué da Baldas, dos Despe e Siga)

@Sporting CP

Bom dia, tudo bem?

Tudo. E tu, Rui?

Impecável, com uma boleia destas.

Ahahahaha.

Qual foi o teu primeiro carro?

Um Toyota Corolla. Comprei-o novo, ali no Barreiro, por 90 contos. Era o carro da moda.

Onde jogavas?

Na CUF.

E depois?

Depois, ainda na CUF, comprei um Mercedes 2000 e nunca mais larguei os Mercedes.

Ainda na CUF?

Ganhava bem na CUF. Era 800 escudos por mês para jogar mais mil escudos para trabalhar na fábrica.

Fábrica?

Ah pois, tirei o curso de serralheiro mecânico e ia trabalhar para lá.

Quanto tempo?

Uns três meses, depois nunca mais apareci.

E?

Nada, continuei a receber. O gajo, o meu chefe, começou a gozar comigo com a conversa do ‘este só vem cá três horas e tal’. Epá, não tive paciência para o aturar e fui à minha vida. Mas, vê bem, ganhava mais na fábrica do que a jogar futebol. A CUF era um espectáculo à parte, só te digo. Quando fomos jogar na Europa, para as competições europeias, a CUF vestiu-nos dos pés à cabeça: Era casaco azul escuro e calça bege. Quando cheguei ao Sporting, o primeiro encontro no aeroporto para um jogo europeu foi uma desgraça: iam todos à sua maneira, fooooge, e a maioria dos gajos nem tinha noção.

Ahahahahah.

O mesmo estilo nos relvados. Na CUF, jogávamos no nosso Alfredo da Silva e ainda tínhamos uns campos de treino, também relvados. Quando aterrei no José Alvalade, só havia um relvado. O resto eram pelados, à frente da 10-A, e era aí que nos preparávamos para os jogos. O [Jimmy] Hagan passava-se. E se ele se passasse, significava isso que nós sofríamos ainda mais na pele.

Ainda mais?

Porra, o Hagan era terrível. Quando apitava duas vezes no balneário, tínhamos todos de nos apresentar ao serviço.

Senão?

Tinham de correr o dobro ou o triplo para apanhar o pelotão a dar voltas ao campo, ao ritmo dele.

Dele, Hagan?

Exacto, o gajo era rijo. Dizia sempre ‘come on, come on’. E sempre lá à frente, a liderar o pelotão. Mas, atenção, o Hagan tinha uma coisa boa: não olhava a nomes, jogava quem estava melhor. Só que os treinos eram violentos, duas horas sempre a correr. Isso hoje já não existe. Vi malta a vomitar. Muita malta mesmo. Um belo dia, decidimos abrandar o ritmo de manhã para ver se nos dava folga à tarde. Ele percebeu a nossa ideia, acabou o treino mais cedo e remarcou o treino para as 15 horas. Foi remédio santo, nunca mais treinámos à tarde, ahahahahah.

Pudera.

(a banda sonora na rádio já é a do ‘Fame’)

Mas como é que tu apareces a jogar na CUF?

A história começou aqui, em Sarilhos. Pela primeira vez na história, o clube fez uma equipa de juvenis. Como tínhamos todos muita qualidade e conhecíamo-nos do futebol de rua, fizemos bons resultados e atingimos a fase final.

@Sporting CP

Uau, então?

Na primeira fase, apanhámos clubes da zona: Samouco, Pinhal Novo, Montijo e mais uns quantos. Na fase seguinte, apanhámos Seixal, Sesimbra, Barreirense Vitória FC e mais um. Fomos apurados para o Nacional, com Belenenses, Carcavelos e Cova da Piedade. E eu falhei o penálti decisivo, com o Belenenses, estávamos a ganhar 1-0 e perdemos 3-1.

Caramba.

Coisas de miúdos, paciência. Na época seguinte, eu e o Luís do Carapau, o central e capitão dessa equipa, subimos aos juniores. Problema: o Sarilhos não tinha juniores. E o meu pai sempre a dizer-me ‘tu não vais jogar com os homens’. O meu pai percebia zero de futebol, ahahahah.

E tu?

Comecei por ir aos treinos de captação do Sporting, éramos uns 200. Entrámos, jogámos e saímos. Eles eram dois treinadores e não viram nada, claro.

De ti?

Sim, sim, de mim. Ninguém reparou em mim. Quando cheguei a casa, disse ao meu pai ‘quero jogar nos seniores, quem manda na minha vida sou eu’. E fui para os seniores. Era um tempo de alguma indisciplina no Sarilhos e havia jogos em que entrávamos em campo com quatro guarda-redes, um na baliza e três à frente.

Ahahahahah.

Nos jogos no Algarve, íamos de viagem no próprio dia. Era um clube assim, pronto, mas isso também foi bom para aprender. E aprendi. A CUF, sempre atenta, fisgou-me e quis-me.

Falaram com o teu pai?

Com o meu primo. Ele era o meu empresário, ahahahah.

Qual foi a oferta?

Irrecusável. Eles disseram-me ‘damos-te 20 contos na mão e 800 escudos por mês mais mil escudos na fábrica’.

Certo, certo, aqueles valores.

Depois, 3000 escudos por vitória e 1500 por empate.

Como ias para os treinos?

De camioneta e saía ali ao pé do campo da CUF. Ainda hoje me lembro da estreia: 19 Outubro 1969, com o Benfica de Coluna, Eusébio e Simões. As pernas até me tremiam.

Nervoso miudinho, depois passou?

Claro, até porque a CUF dava-te tudo para jogares à bola. Era um clube-empresa muito bem organizado e competente. Só para veres: quando ficámos em quarto lugar, fomos de excursão para os EUA por 22 dias. Foi a minha primeira grande viagem. E, depois, havia o bónus da Intertoto: jogámos duas vezes e permitiu-nos conhecer outras realidades, como a Suécia, a Turquia, a RFA.

Em 1970-71 já és titular na CUF?

Comecei a época a voar e marquei um hat-trick ao Tibi, do Leixões, à segunda jornada. Até A Bola foi a minha casa fazer uma reportagem. Só que me lixei à 19.ª jornada, quando o Rui Paulino caiu em cima do meu joelho.

@Kapta+

Esse Rui Paulino era?

Guarda-redes, jogava no Boavista. Tinha 19 anos e andei ali de um lado para o outro a ver médicos, a fazer gelo e nada. Seis meses assim. A minha sorte foi o José Carlos, capitão do Sporting e um dos Magriços. Foi a minha sorte, Rui.

Como?

Os pais dele moravam ao meu lado, ele apanhou-me à porta e perguntou-me pelo joelho. Quando lhe disse do gelo e do joelho inchado à mínima corrida, ele ficou espantado com a demora no regresso aos relvados e disse-me ‘vamos ver o Manuel Marques na segunda-feira, aparece na porta 10-A’.

E que tal?

Gratidão infinita. Cheguei ao gabinete dele, já dentro do estádio do Sporting, e ele, com as mãos, ò Rui, só com as mãos, disse-me ‘nada de lesão no ligamento cruzado, mas tens o menisco externo fracturado e é imperativo que sejas operado, se não nunca mais jogas.’ Cheguei à CUF e desabafei. Nada contra eles, atenção, até porque a CUF tinha boa reputação de médicos, só que ali estavam a falhar-me. Estamos a falar de uma época pré-25 de Abril e eu para falar é porque mexia muito comigo. E de que maneira.

Resultou?

Claro, lá fui operado e fiz a recuperação na Figueirinha, ali para Setúbal.

E depois?

Perdi os primeiros quatro jogos da época seguinte, acho. Entro na convocatória para o dérbi com o Barreirense, saio do banco a meio da segunda parte e faço o empate. Nunca mais saí da equipa.

Até marcas na Europa pela CUF.

Ao Kaiserslautern. Perdemos cá 3-1, ganhámos lá 1-0, golo do Eduardo.

Manuel Fernandes
5 títulos oficiais

Esse marca muitos golos.

E nem era titular indiscutível, até saía muitas vezes do banco. O pai dele era o Tarzan, na Costa da Caparica. Com nome de rua e tudo. Que personagem.

Antes, eliminaram o Racing White.

A equipa do Eddy Merckx, o gajo foi ao estádio ver o jogo e entrou no nosso balneário para cumprimentar-nos. Aí, ganhámos 2-0 cá e 1-0 lá.

(saímos do carro e entramos no restaurante do filho Tiago, em Sarilhos, com um mural de Maradona a receber-nos condignamente)

E chegas ao Sporting em 1975.

Era o meu sonho de criança.

Já tinhas visto o Sporting em acção, ias a Lisboa?

Ir ver o Sporting a Lisboa era um castigo, mesmo daqui de Sarilhos. E eu era um totó. Tinha medo de ir a Lisboa. Ainda bem que os putos de hoje mexem-se de outra maneira, são mais afoitos. Quanto muito, ia ver o Barreirense ou o Montijo.

E ver o Sporting aqui no Barreiro ou no Montijo?

E o dinheirinho para isso?

Então mas não te colavas aos adeptos seniores e fingias ser o filho deles? Eu fazia isso no José Alvalade.

Não, já te disse que era um totó, ahahahaha. Mas lembro-me perfeitamente do meu primeiro jogo ao vivo, um Seixal vs. Sporting em 1964. Tinha uns 13 anos e um vizinho, que morava entre mim e os pais do José Carlos, chamou-me para uma surpresa. E eu recusei. Mas ele insistiu tanto que lá fui, até porque o tal senhor tinha conseguido a autorização do meu pai. Fomos de autocarro até ao Barreiro e de comboio para o Seixal. Ainda hoje me lembro do golo do Figueiredo ao Vítor Manuel. Começou no meio-campo, num chapéu do Géo, estilo o do Pedro Gonçalves com o Arsenal, a bola foi à barra e o Figueiredo, que nunca desistiu da jogada, meteu-a lá dentro. Era o meu ídolo, porra. Claro, o Eusébio era melhor, mas o Figueiredo era oportuno e marcou golos muitos importantes na 1.ª divisão, na Taça de Portugal e até naquela epopeia da Taça das Taças.

A saída da CUF para o Sporting foi pacífica?

Acabava o contrato com a CUF e tive de ver a minha vida. Cheguei a ir ao Porto, fiquei no Hotel Nave, que ainda existe, e falei com o chefe de departamento para o futebol. Disse que as condições me agradavam, mas tinha de pensar. Voltei para baixo e o Belenenses meteu-me 300 contos na mão para assinar. Com 300 contos, comprava duas casas ou três aqui em Sarilhos.

Então e o Sporting?

Nada, não me diziam nada. Em 1972, queriam-me. Porque a CUF acabou em quarto lugar e o meu nome chegou lá acima. Mas, em 1975, já não. Já viste isto? Estava mesmo na iminência de assinar pelo FC Porto quando me ligou o Nuno Santos, braço-direito do João Rocha. O Sporting deu-me metade do FC Porto e assinei.

Feliz da vida?

Era o meu clube de eleição. Mas disse-lhes logo que tinha um compromisso no Brasil com uma modalidade nova chamada showball. Era uma excursão com estrelas internacionais. De cá, eu e o Arnaldo da CUF, mais Eusébio e Nené, do Benfica. Fizemos quatro jogos, dois no Rio e mais dois em São Paulo, com Garrincha, Jairzinho, Djalma Santos, Durval.

Showball?

Aquilo eram três períodos de 20 ou 25 minutos, já não me lembro. No primeiro jogo, estávamos a perder 4-0 e eu a suplente. Entrei e marquei uns cinco, ganhámos 9-8. Em quatro jogos, fiz 19. O Nené, 6. O Eusébio, dois. Saí de lá em alta, com todos os clubes brasileiros a perguntar por mim. A resposta era sempre a mesma, ‘desculpem lá, mas assinei pelo Sporting antes de embarcar’.

A primeira época na Sporting foi péssima, quinto lugar.

É a época da mudança, saem Yazalde e Dinis, por exemplo. No Verão, o João Rocha foi-me buscar à CUF, o Vítor Gomes à CUF, o José Mendes ao Vitória FC, o Amândio ao Boavista. Ainda por cima, jogámos muitas vezes em campo neutro porque houve uma confusão na Tapadinha, com o Atlético.

Esse não foi o ano em que te lesionaste num dérbi em casa?

E entrou o Quilha.

Quem?

O Jorge Jesus. Ainda hoje lhe chamo Quilha. Aquele nariz parecia a quilha de um barco. E, mais uma vez, vi coisas que julgava impossível por parte do Manuel Marques. Saí do campo, ainda na primeira parte, e já não fui a tempo de bater o penálti, falhado pelo Da Costa, e o Manuel Marques mexeu-me com as mãos. Eu a gritar e ele ‘isto é a omoplata.’ Rui, com as mãos.

Incrível. Por falar em incrível, e o [Salif] Keita?

O João Rocha viu-o em Benidorm e contratou-o. Ele era assim, o João Rocha. O Di Stéfano foi contratado como treinador do Sporting nessas condições.

E que tal o jogo do Keita?

Génio. Mas era um cagão, não se metia com os defesas mais bravos, estilo Washington na Póvoa. Ahahahaha. Eu bem lhe dizia ‘Salif, vem para junto de mim’ e ele fazia-me sinais, estilo nem pensar. Vou contar-te uma: não me lembro a época, mas fomos jogar com o Benfica a um 10 Junho no Parque dos Príncipes, em Paris, e eu estava a calçar as chuteiras quando ele se vira para mim e diz: ‘Manel, hoje é que vais ver o verdadeiro Salif’.

E?

Primeiro, meti-me com ele. ‘Hoje, Salif? Hoje é um particular.’

@Vítor Parente / Kapta+

E depois?

Até fiquei envergonhado. Ele ia buscar a bola ao Botelho [guarda-redes] e fintava toda a gente. Ganhámos, ele não marcou nenhum golo, acho, mas foi a figura. Ele tinha sido campeão francês pelo Saint-Étienne, era um jogador de mão cheia e sentia que aquele era o público dele.

(‘Rui, gostas de filetes de polvo? Vem com arroz do mar, é uma delícia’)

(vou contrariar um Bola de Prata?)

Na época seguinte, chega o Jordão. Já o conhecias?

Nada, só de ler. Apareceu no Sporting com um feitio complicado, porra. Ele vinha chateado do Saragoça, porque tinha tido lá uma zanga com um paraguaio chamado Arrua. Ora bem, o Jordão chegou cá e não falava com ninguém nem com os mais novos, tipo Barão, Freire, Fraguito. Um dia, fui ter com ele e disse-lhe ‘ò Rui’ – sempre o tratei por Rui, nunca por Jordão – ‘tens de falar com esta malta, vens de lá com o Arrua mas aqui não há Arruas, aqui só há malta boa, que te quer bem e precisamos deles para ganhar jogos.’

E?

A partir daí, o Rui entrou no espírito e foi sempre uma peça importante. Em três anos, fomos campeões duas vezes. E ele, o Rui, ganhou a Bola de Prata.

Com penáltis.

Sim, era ele quem os marcava.

E antes?

Era eu.

E cedeste-lhe esse papel?

Gostava de o ver feliz. Se ele marcasse, feliz da vida. Se não marcasse um golo, sentia-se triste. Não tenho dúvidas de que ele foi quem mais vezes me assistiu nos golos, em nove anos de Sporting. E eu a ele.

Também apanhaste o Pavic.

Era um treinador jugoslavo que falava espanhol. Chegou ali, viu e depois decidiu: o capitão é este. E eu até nem era o mais velho. Estava lá o Laranjeira, por exemplo.

É o Pavic o treinador daquele 3:2 do nevoeiro nas Antas?

Nããããã, aí é o Juca. Ainda me lembro bem de toda a confusão: o Gomes remata, a bola vai ao lado e o apanha-bolas mete-a lá dentro. Quando vimos o Alder Dante a apontar para o meio-campo, metemo-nos de joelhos a dizer que não tinha sido, que era impossível. O Alder, implacável, manteve a decisão. E depois expulsou o Vágner. Para evitar mais coboiada, pedi ao Juca para sair.

Porque?

Também seria expulso, estava revoltado.

E saíste mesmo?

Saí, sim, entrou o Baltasar. E é ele quem marca o 3-2, ahahahaha.

És campeão nacional em 1980 e 1982. Qual o mais...

O mais saboroso é o de 1980 por ter sido o primeiro. O menos difícil é o de 1982. Tínhamos uma equipa de luxo.

Meszaros.

Craque, craque. Já o conhecia da selecção da Hungria, até lhe marquei dois golos vs. Vasas. Eles, os húngaros, tratavam-no por Bubu. Nós dizíamos Bobó, ahahahahaha.

Ele fumava muito?

Ao intervalo, nossa senhora. O roupeiro, que também se chamava Manuel Fernandes, acendia o cigarro no balneário e entregava-o já aceso. Ele dava umas passas de forma frenética.

E o Allison?

Foi o Allison quem trouxe o Meszaros, já o conhecia. Mal chegou às negociações, disse ‘quero o Meszaros’ ao João Rocha.

E todos gostavam do Meszaros?

Até os guarda-redes suplentes, agora vê.

E o Allison?

Que maravilha. Dava liberdade a mais, essa é a verdade. A outra verdade é que jogávamos muito à bola e tínhamos uma confiança assustadora a entrar em campo.

Demasiada liberdade, como?

Onde ele se queimou mais foi num estágio no Algarve. Se dás muita liberdade a um jogador de bola, ele não sabe até onde podem ir. Era um jogo particular com o Farense, em Portimão. Foi um estágio de oito dias para aproveitar uma paragem do campeonato e foram oito dias de borga. Nada de especial, até porque o Allison estava lá, e acompanhado pela esposa. Disse aqui coisas muito privadas, só quero explicar uma coisa: era um tempo diferente, em que esses exageros não afectavam, e o nosso grupo era único, especial e grandioso. Por isso mesmo, ganhámos campeonato, taça e supertaça. Na época seguinte, fomos aos ¼ final da Taça dos Campeões.

A tal eliminatória com a Real Sociedad. Sem o Jordão, certo?

Íamos embarcar para San Sebastian e recebemos a notícia da morte da mãe do Jordão.

@Carlos Alberto Costa

No Verão 1983, o Sporting estreia Futre. Que tal?

Ia comigo daqui.

Como?

Dava-lhe boleia. Quando me casei, fui morar para Sarilhos Grandes e ele vinha de táxi do Montijo. Chegava aqui e deixava-se dormir comigo a conduzir. Aquele gajo não existe, ahahahah. Era um miúdo espectacular, tinha 17 anos e tudo aos seus pés.

Como lidaste com a sua transferência para o FC Porto?

Dizia-lhe sempre ‘se chegares atrasado, ficas em terra’. Claro que nunca iria sair daqui sem ele, mas o Futre chegava-me sempre atrasado. Sempre, impressionante. Dizia-me que acordava cinco minutos antes e eu a dizer-lhe para acordar meia-hora antes. Qual quê, aquilo entrava-lhe por um ouvido e saía pelo outro, ahahahah. Um dia, ele não apareceu. Esperei, esperei, esperei e nada. Lá fui, tinha de ir ao treino, senão levava falta de comparência. A caminho do José Alvalade, comecei a ouvir na rádio que ele já estava no FC Porto.

E ele a jogar no Sporting?

Partia aquilo tudo, sobretudo como suplente. Ele baixava a cabeça, ganhava à linha, picava a bola sempre ao segundo poste e eu lá estava para marcar. Era automático. Sabes porquê?

Porquê?

Porque já o conhecia e sabia onde ele ia meter a bola.

Também chegou o Wylde?

IIiiiiiiiiiii. O Roger era bom rapazinho, só.

E o Toshack?

Era um líder nato, a malta adorava-o. A seguir ao Allison, é o Toshack. Ele podia estar seis/sete anos no Sporting. E nem uma época esteve, saiu em Abril.

Porquê?

Não sei, não faço ideia. Há muita gente que gosta de dar palpites no Sporting. Com ele, demos seis ao Salgueiros em Vidal Pinheiro, quatro à Académica em Coimbra. O Toshack gostava de jogar ao ataque, ainda por cima com Jaime Pacheco e Sousa, contratados ao FC Porto.

Na época seguinte, aparece o Meade.

Belo jogador. E foi aí que aconteceu um momento surpreendente.

De bom ou mau?

Mau, péssimo.

Mas isso não foi a sua melhor época de sempre, em 1985-86?

Ganhei a Bola de Prata, sim. No primeiro jogo, 6-0 ao Penafiel com cinco golos. Vamos ao Aves e marco o golo da vitória. Na semana seguinte, dois ao Chaves. À 9.ª jornada, vamos às Antas. Levo 10 golos em oito jogo e o Manuel José diz de sua justiça: ‘hoje toda a gente vai ficar surpreendida’. Quando dá a equipa, sou suplente.

O quê?

Foi o único jogo do Sporting em que fui suplente na 1.ª divisão. O único. E levava 10 golos nas primeiras oito jornadas.

Porquê?

Não sei. Jogaram Meade e Jordão.

E depois?

Perdemos 2-1 e nunca entrei nessa tarde. Estávamos a perder e nada. O árbitro apita e fui-me embora em direcção ao balneário. O Manuel José intercepta-me e diz ‘Já fiz m****; a partir daqui, és tu e mais dez.’ E depois lixou o Jordão, nunca o meteu a titular. Julgava que o Manuel José era um justo, mas desiludiu-me totalmente.

E o Negrete?

Jogava bem, tinha toque de bola. Ainda falo com ele, está nos quadros da federação do México. Ele marcou ao Barcelona aqui no José Alvalade. Perdemos 1-0 lá, ganhámos 2-1. Fomos eliminados por golos fora, que noite inglória.

Porquê Vitória FC para acabar a carreira?

O Burkinshaw foi dizer para os jornais que não contava comigo. E a direcção, nada. À segunda entrevista do Burkinshaw, ainda foi pior. E a direcção continuava sem reacção. O meu tempo já era e decidi-me pela saída. Apareceu o Vitória e, já se sabe, o verde e branco assenta-me bem.

Ahahahah. Foste para Setúbal e ainda marcas golos atrás golos. Vi dois naquele 4-4 ao FC Porto.

Viste?

Fui lá, levado pelo meu pai. Que tarde, que jogo.

Marquei de cabeça quase fora da área, ao Mlynarczyk. O outro foi com raiva, a passe do José Rafael. Gente boa, ele. Essa equipa do Vitória é do Allison. Sabes quem é o guarda-redes?

?

Meszaros. E o preparador físico?

?

Roger Spry. Queria que eu pintasse os olhos. Nããããão, o rapaz de Sarilhos não pinta os olhos. Era uma equipa do caraças.

Anos depois, és o treinador desse Vitória e também dás espectáculo.

Outros tempos, mais modernos, ahahahahah. Havia gente boa que me ajudava bastante, como o Cláudio Pitbull. A gente sabia que ele andava na noite e chamei-o à parte ‘Ò Cláudio, sabemos que andas aí.’

E ele?

O mais frontal possível. ‘É verdade, mister, saio domingo, à segunda, à terça e à quarta. À quarta, entro em casa e nunca mais saio.’ E assim era. E a verdade é que ele me resolvia os jogos.

É só rir, que pagode. Nasce aí a dupla com José Mourinho?

Essa do Cláudio é a minha segunda fase no Vitória. Na primeira, ainda nos anos 90, é que nasce a amizade, a consideração, o respeito e a admiração. Fui buscá-lo aos juniores do Vitória. Como precisava de jogadores para as reservas e o gajo tinha ideias porreiras, ia ver os treinos e ele era líder, os jogadores não estavam ali a fazer de conta. À falta de cinco jornadas para o fim da época, o Estrela fala comigo.

Por quem?

Salvado, o presidente.

E?

Ligou-me e tive uma ideia. Chamei o Mourinho à parte e perguntei-lhe se queria ir comigo, como adjunto. Sabes o que ele me disse. ‘Mister, é para já.’

Ele não dava aulas?

Meteu os papéis. O outro adjunto era o Matine, treinava os guarda-redes. Fomos os três. Começámos bem, eliminámos o Neuchâtel Xamax nos penáltis, perdemos nos penáltis com o RFC Liège. Era um plantel muito bom: Ricky, Paulo Bento, Duílio, Abel Xavier, Baroti, Abel Campos, Dimas, Bobó, Agatão, Rui Neves, Marito, Rebelo, Melo, Miranda.

O Manuel saiu do Estrela e?

Ovarense.

Com Mourinho?

Chamei-o outra vez, só que ele não se podia libertar das aulas. Então decidi entregar-lhe o dossier dos adversários e começava a espiar Benfica de Castelo Branco, Académico de Viseu e por aí fora. E disse-lhe ‘à segunda-feira, de 15 em 15 dias, vais lá almoçar a casa e falamos melhor sobre o relatório’. Não falhou um. E foi por isso que o levei para o Sporting, exigi o nome de José Mourinho ao Sousa Cintra.

Grande moral.

O Sousa Cintra tem muito respeito pela minha opinião.

Porquê?

Admiração, sei lá. Sempre foi assim. O Sousa Cintra foi ver o meu último jogo na Ovarense, ali no Seixal. Como não mede bem as coisas, disse-me logo ‘vais ser o próximo adjunto do Sporting’.

Já havia Bobby Robson?

Nada, nada.

Whaaaat?

É o que eu digo, o Sousa Cintra não mede bem as coisas. E disse-me aquilo antes do jogo. Um jogo até decisivo para o Portimonense. Se perdesse, descia para a 2.ª B.

E?

Perdeu 4-1. Ouvi tanta coisa, logo eu que tinha casa em Portimão há uns 30 anos. Antes do jogo, dizia eu, o Cintra manda-me essa bojarda e eu ‘ò presidente, tudo bem, a gente fala depois’. E falámos. E depois atacámos o treinador. Dei-lhe a ideia de um treinador inglês pela minha experiência no passado, à excepção do Burkinshaw, e fomos ver quem estava disponível. Apareceu o nome do Bobby Robson, ia acabar o contrato no PSV. O Juca, director-desportivo, ligou-lhe e acertámos uma reunião em Eindhoven. Nisso, o Cintra era implacábel: ‘vamos já hoje’. Mesmo que fosse à meia-noite.

E o Robson?

Aceitou logo, uma simpatia cinco estrelas, um dos melhores homens que conheci. Feito o negócio com Robson, disse ao Cintra para ir buscar bons jogadores e um adjunto que fale bem inglês.

E ele?

Está a falar de quem?

E o Manel?

Do José Mourinho’.

E ele?

‘O José Mourinho é do Benfica’.

E o Manel?

O José Mourinho é do Vitória. Foi meu adjunto e você pode ter a certeza que vai ensinar muita gente no Sporting como se organiza uma equipa de futebol’.

E ele?

Está bem, mas não lhe posso dar muito dinheiro’.

E o Manel?

Isso é consigo e ele’. Tínhamos um grupo espectacular.

Quais foram os reforços?

Fomos atrás do João Pinto, ao serviço da selecção nos EUA para jogar a US Cup-92. Disse ao presidente ‘temos de ir buscar este gajo’. E o Sousa Cintra marcou logo viagem, mais uma vez, e fomos ter a um centro de emigrantes portugueses. Dois deles aceitaram levar-nos de carro até ao estágio da selecção.

Que paródia, dois emigrantes ajudaram-vos do nada?

A viagem demorou umas cinco horas e o Cintra estava já virado do avesso, ahahahah.

E falaram com o João Pinto?

Falámos com o João Pinto.

Como?

Falei com o Peixe e o Figo, que também estavam com ele na selecção. E eles levaram-no até nós.

E?

Ele já tinha assinado pelo Benfica, porque o Toni era adjunto do Queiroz e já se tinha antecipado.

Repito-me, quem foram os reforços?

Capucho ao Gil Vicente, por exemplo.

E o Robson dava-se bem com os jogadores?

Dava-se bem com todos. Um belo dia, telefonei-lhe e convidei-o a ver um jogo inglês aqui em casa, Liverpool-qualquer coisa. Ele, como estava sozinho em Lisboa, aceitou. Ouve lá, nunca vi uma coisa assim: marisquinho, branquinho, marisquinho. E ele, quase à hora do jogo, ‘onde é o quarto?’ Ahahahahah. Ele não estava habituado a beber, foi dormir.

E estava acordado na viagem de avião Salzburgo-Lisboa?

Ai jasus. O Sousa Cintra pediu o altifalante às hospedeiras e começou a falar. Ai jesus. Qualquer coisa como ‘meus queridos amigos, meus queridos sportinguistas, hoje foi um dia triste para nós, perdemos esta eliminatória por culpa de Bobby Robson. Hoje jogou com três centrais’. Ele nem sabe o que é uma defesa a três, alguém lhe meteu isso na cabeça e pronto. Disse mais umas coisas e o Robson, claro, ouviu o nome dele e a perguntar-me o que tinha acontecido.

E o Manel?

Tomorrow, you, José and i out’.

E o Robson?

Nooooooooo’. Ele não acreditava. E nem sei se acreditou no dia seguinte. Quer dizer, chegaram a acordo para a saída, mas não era um momento para acreditar.

O Manuel foi ao jantar de despedida do Robson?

Claro, tenho ideia de ter sido ali no Guincho. No final, disse ao Balakov para deixar o Cherbakov em casa. Aliás, disse-lhe para o deixar em casa. E o Balakov fez isso. Depois alguém o desencaminhou. Já viste? Um puto com uma qualidade acima da média. Vou-te dizer uma coisa: o Cherbakov jogou à experiência pelo Sporting e vi pormenores que, dassssss, o miúdo vai ser um craque. Fui para o hotel, juntamente com o Bobby Robson e dissemos isso mesmo ao Sousa CIntra. Como os empresários do Cherbakov estavam lá, o negócio era para se fazer ali na hora, sem perder tempo. Eu, o José e o Robson ficámos cá em baixo, no hall, juntamente com os empresários do Cherbakov.

E o Sousa Cintra?

Lá em cima, dizia que ia tomar banho e descia num instante. Passaram-se horas, umas cinco horas, e nada.

Nada?

Nada. E nós, no hall, preocupados com a indecisão, porque queríamos levar o Cherbakov. Então decidimo-nos a subir até ao quarto do Sousa Cintra. Bati à porta e o Cintra perguntou ‘quem é?’.

E o Manel?

‘Sou eu, presidente. Estou aqui com o José e o mister’.

E o Sousa Cintra?

Abriu a porta todo nu.

Eisccccchhhh.

O Robson só dizia ‘i’ve never seen anything like this’. Só rir. Então ele contou-nos a táctica: estava a desgastá-los. Disse-nos ele que os gajos dos negócios são assim. E perguntou-me mais duas vezes sobre a mais valia do Cherbakov. Quando lhe respondi que sim, era um jogador de futuro, ele lá se foi vestir, desceu até ao hall e o negócio fez-se no instante.

Como era o Robson?

Uma jóia. O único pedido dele foi o Valckx, do PSV. E também fez muito pelo Cherbakov, já o conhecia dos sub19.

E durante os jogos?

Calmo, de pé, junto do banco. Sabia muito de bola, sabia mexer na equipa. E tinha um sentido de humor muito apurado.

Mil obrigados, Manel.

Grande abraço.

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