José Morais no Irão de olhos em Portugal: «Tenho um tesouro que gostava de partilhar»

4 meses atrás 87

Aos 58 anos, José Morais é um dos treinadores portugueses com maior currículo a nível internacional. Depois de, entre outras experiências, ter sido adjunto de José Mourinho no Inter de Milão, no Real Madrid e no Chelsea, o técnico está atualmente no Sepahan, do Irão.

Nesta primeira parte da entrevista, conversamos com José Morais sobre a realidade que encontrou no país do Médio Oriente, o conflito armado entre o Irão e o Iraque e um eventual regresso a Portugal.

A segunda e a terceira partes da entrevista serão publicadas ainda esta quarta-feira. 

Zerozero: Estamos a falar na reta final do campeonato iraniano. Que balanço faz da temporada 2023/24 do Sepahan?

José Morais: Se terminarmos em terceiro lugar [posição que o clube ocupa neste momento], é quase como ganhar o campeonato. Houve muitas questões, talvez devido ao facto de ter sido um ano de eleições e de, politicamente, haver outro tipo de interesses que não o Sepahan ser campeão porque não tem as massas Esteghlal Tehran e do Persepolis, por exemplo. Muitas das decisões que foram tomadas criaram bastante instabilidade dentro do clube. Houve o afastamento do presidente, a divulgação de contratos para a opinião pública, arbitragens que em determinados momentos da época eram incompreensíveis... Depois há a forma como reagimos a essas situações, que a partir de determinado momento nos impediu de conseguirmos os resultados que nos podiam ter catapultado para o caminho que estávamos a seguir no início- começámos o caminho com cinco vitórias nas cinco primeiras jornadas. 

José Morais
Sepahan
2023/2024

34 Jogos
17 Vitórias
7 Empates
10 Derrotas

64 Golos
36 Golos sofridos

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No entanto, a partir de determinado momento começaram a surgir entraves à continuidade da nossa performance. A partir daí fomo-nos afastando do objetivo que parecia possível- no ano passado ficámos a um ponto do título. Estivemos na Champions League e isso criou dificuldades em termos de calendarização. Quando o calendário está atrasado, é criado um fosso que acaba por nos tirar um pouco de ânimo. Estas situações foram favoráveis a todos menos a nós.

ZZ: Uma eventual conquista da Taça do Irão (o Sepahan qualificou-se para as meias-finais) serviria para abrilhantar um pouco esta temporada?

JM: Sim, acredito que a vontade do clube e dos jogadores seja essa. Apesar de todas os desafios que foram criados à volta do clube, o facto de podermos lutar pela conquista da Taça acaba por ser um objetivo motivante para todos. Estamos todos unidos na luta por este objetivo e espero que, com algum sacrifício, consigamos isso.

ZZ: Grande parte da sua carreira foi feita em países nos quais o futebol ainda se está a desenvolver. Quão desafiante tem sido trabalhar com esta dose de falta de organização sempre presente?

JM: É o desafio do futebol, isto tem várias fases. Há um período em que chegas e percebes que, a nível de organização, metodologia, conceção e visão, as coisas estão um bocadinho para trás. No entanto, essas coisas têm mudado um pouco nos últimos anos. Os campeonatos estão cada vez mais organizados de uma forma uniforme nos vários continentes, isto fruto dos programas de desenvolvimento que a FIFA tem. A Federação Asiática, onde tenho trabalhado, não tem sido alheia a isso. A Coreia [orientou o Jeonbuk Motors] tem um campeonato muito organizado, a liga árabe [treinou Al-Faisaly, Al-Shabab, Al-Hazm e Al Hilal] é muito baseada no campeonato inglês... O Irão é um grande país, tem grandes jogadores e uma grande paixão pelo futebol. A nível de infraestruturas ainda não se equipara à Arábia Saudita, à Coreia ou aos clubes europeus, mas não é por incapacidade financeira.

O nível de afluência aos estádios é incrível, há jogos na Champions League e dérbis com 60 mil pessoas; nos restantes jogos vê-se 30/40 mil espetadores no estádio. Ainda não há grande afluência do público feminino aos estádios, só neste momento é que está a haver a mentalidade de se criar condições para o público feminino. Se incluíssemos de forma mais natural o público feminino, não tenho dúvidas que estaria ao nível dos melhores campeonatos no que diz respeito à afluência de público.

ZZ: O estádio da sua equipa tem capacidade para quantas pessoas?

JM: Entre 70 e 75 mil pessoas.

ZZ: Deve ser interessante para um treinador jogar num estádio com essa dimensão...

JM: É motivante. Aliás, é um dos aspetos que me entusiasma aqui. O futebol com um número elevado de espetadores é diferente, tal como pude comprovar também quando estive em países como Itália, Espanha e Inglaterra. Quando não era possível haver adeptos nos estádios devido à Covid-19, por exemplo, era diferente. 

@Getty /

ZZ: As últimas semanas ficaram marcadas pela intensificação do conflito armado entre o Irão e o Iraque- houve conflitos em Isfahan, cidade em que está. Como tem sido/foi viver esta situação?

JM: Os locais já vivem estes eventos com alguma naturalidade. O que eu vivi não me permitiu estar preocupado com alguma coisa. Já vivi outros momentos- estive na Ucrânia numa altura em que havia confrontos-, mas aqui não se sentiu nada passível de nos deixar preocupados. Às vezes são mais as palavras do que propriamente os atos, são mais as possibilidades do que as ocorrências. Algumas companhias aéreas não viajaram por esta rota durante um dia por precaução, isto face à tensão que se foi criando. No entanto, foi tranquilo. Ninguém parou de treinar ou de jogar, as competições nunca pararam e hoje o clima é completamente pacífico.

ZZ: Nenhum jogador seu teve problemas relacionados com esta situação?

JM: Não. Dentro do staff houve alguma preocupação no sentido de pensarmos 'Se acontecer alguma coisa como é que saímos daqui?'. No entanto, estivemos sempre em contacto com a embaixada portuguesa, que nos foi sempre tranquilizando. Por precaução deu-se a retirada de quem estava cá em turismo, mas de resto não aconteceu nada. E ainda bem, logicamente.

ZZ: É certo que, neste caso em específico, não viveu nenhuma situação efetivamente preocupante, mas já esteve noutros países que passaram por conflitos. Às vezes não reflete consigo mesmo numa de 'O que é que eu estou a fazer aqui? Não será altura de assentar um pouco?'?

JM: Não nesse sentido. Quando estas situações acontecem, também temos a simpatia pelo envolvimento que nos é criado. Estamos num clube, a maior parte dos jogadores são cidadãos nacionais, estás envolvido num projeto com objetivos... Por uma questão de simpatia, acabas por estar solidário com os acontecimentos e vives as coisas como equipa, lado a lado de quem é de cá. Se alguma coisa tiver de acontecer, acontecerá aqui ou noutro lugar qualquer. Tenho a tendência para não fugir das situações, a menos que sejam mesmo extremas. Em relação à questão de regressar e ter um projeto mais perto de casa...Obviamente que estar no nosso meio nos fortalece. Se me perguntares se um dia quero voltar a Portugal porque já estou farto de andar pelo mundo, eu digo que sim. Um dia, quando as coisas acontecerem.

Tenho a convicção que tudo o que adquiri e as experiências que vivi por esse mundo fora- fui tendo sempre jogadores de 1ª liga e de qualidade e trabalhei, por exemplo com o José Mourinho... Tenho um tesouro comigo que um dia gostava de partilhar e ver o resultado na liga portuguesa. Creio que seria interessante trabalhar com uma equipa na liga portuguesa, independentemente do nível, e perceber a que ponto eu poderia fazer chegar essa equipa olhando para os objetivos que tenho: lutar por títulos e ganhar competições internacionais. 

qRegresso a Portugal depois de vários anos fora? Se o Jorge Jesus sair do Al Hilal e voltar para Portugal, não perdeu qualidade por ter trabalhado na Arábia Saudita...

ZZ: O facto de, enquanto treinador principal, ter passado por países mais periféricos não pode ser o 'reverso da medalha' em relação ao que está a dizer e tirar-lhe um pouco de crédito em Portugal?

JM: Talvez seja isso, talvez as pessoas possam pensar assim. No entanto, se formos a olhar bem para as coisas, não é só o país em que te encontras que interessa, é a qualidade do treinador. Se o Jorge Jesus sair do Al Hilal e voltar para Portugal, não perdeu qualidade por ter trabalhado na Arábia Saudita. O Rui Vitória fez os trabalhos que fez, treinou o Al Nassr e a seleção do Egito e, se voltar a trabalhar em Portugal, não deixa de ser o treinador que é. O José Gomes teve o percurso que teve e depois voltou e fez bons trabalhos...Há outros casos, são treinadores que tiveram oportunidades e fizeram bons trabalhos. A questão aqui é a qualidade do treinador, o treinador que eu sou hoje não é o mesmo que eu era quando treinava o Académico de Viseu ou o Benfica B.

Fico contente que haja muitos treinadores com qualidade em Portugal, mas somos todos únicos. A vida de treinador é um bocado esta, aproveitar as oportunidades que vamos tendo. Eu fui aproveitando as que tive fora do país para mostrar a progressão que tive enquanto treinador, até nas épocas que partilhei com o José Mourinho. É importante que o jogador olhe para a referência e diga 'Este treinador esteve aqui e ali, trabalhou com este, este e este jogador, conhece esta competição...'. É importante em termos de liderança e acredito que pode beneficiar qualquer tipo de clube e organização em Portugal nesse sentido.

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