Luís Fernandes: “Portugal tem, de facto, de criar uma indústria de resíduos como deve ser”

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Na última entrevista como presidente da associação que representa os industriais do cimento (ATIC), Luís Fernandes, da Cimpor, diz que as meta do sector na descarbonização exigem que se comece a queimar uma maior percentagem de resíduos nos fornos, mas para isso têm de estar tratados. Algo que está a ser mal feito em Portugal.

Provavelmente esta será a sua última entrevista de fôlego enquanto presidente da ATIC. O que sai deste seu ciclo?
Sai uma transformação enorme. A grande transformação e o grande desafio que a indústria cimenteira tem está relacionado com a descarbonização, como todos nós sabemos, dado o impacto que a indústria tem a nível de emissões de CO2. E tudo isto começou há muitos anos. Mas nos últimos anos – eu diria, talvez, nos últimos sete, oito ou nove anos – acelerou. Eu quando assumi esta responsabilidade da Cimpor em Portugal e em Cabo Verde, nós estávamos numa fase ainda um bocado… Sabíamos que tínhamos este desafio, mas não havia uma análise profunda dentro da empresa e também dentro do sector sobre os caminhos que nós deveríamos tomar.

O que fez mudar esse cenário?
Eu penso que em 2014, ou por volta disso, foi o primeiro roadmap da CemBureau (Associação Europeia do Cimento) em que houve, de facto, aí um alerta para os desafios que nós tínhamos e aquilo que todos nós tínhamos que fazer a nível europeu – e Portugal também, obviamente – para irmos no caminho da descarbonização da indústria. Na altura, mesmo a nível da União Europeia, a situação não era tão agressiva e não havia decisões tão focadas como há hoje, e como começaram a aparecer desde que foi publicado o Green Deal. O Green Deal foi a grande mudança.

Na sequência desse acordo o que aconteceu?
Na sequência do Green Deal, nós, a indústria cimenteira europeia e a CemBureau refez o seu roadmap, que foi publicado em 2020, e no qual foram traçadas metas para 2030 e 2050. O nosso roadmap foi publicado em 2021, também com as mesmas metas de 2032 e 2050. Portanto, aqui estamos a falar de em 2050 atingir a neutralidade carbónica. E, de facto, aquilo que nós vemos na indústria cimenteira actualmente é que este é um problema que está na ordem do dia. Todos os investimentos das empresas são vocacionados, são focados neste tema, na descarbonização, porque isto é uma questão de sobrevivência da indústria e sobrevivência das empresas, com o impacto que isto vai ter a nível de custos e outros.

Outros? Que outros?
Nomeadamente, o facto de que, com o aumento de custos derivados do CO2, da energia inerente a muitos projetos que que estão em curso, isso vai levar-nos a perder competitividade face a outros fora da Europa. Com a questão do Fit for 55 (Objetivo 55) tornou mais premente acelerar o passo no sentido de atingirmos as metas – ou até objetivos mais reduzidos em 2030 e 2050, embora 2050 seja o da neutralidade carbónica, mas 2030 que já está aí, implica que haja um investimento grande para a reduzir. E, portanto, isto envolve muito investimento, mas eu estava a falar também na questão da competitividade.

Vamos a isso, em que medida é que impacta a competitividade da indústria europeia?
A questão da competitividade é muito importante. A Europa tem que tomar medidas para garantir a competitividade da indústria europeia. Porque quando nós estamos aqui a falar da da indústria, é da indústria global, não só a do cimento. Porque a indústria do aço, a química, etc também têm implicações ou impacto a nível do CO2 e também têm que ser olhadas? E se a Comissão Europeia não criasse um mecanismo que é o CBAM (o Cross Border Adjustment Mechanism) que já entrou numa fase experimental – até entrar numa fase produtiva, em 2026 – a indústria europeia estava comprometida, porque nós estávamos a concorrer com países terceiros que não têm os impactos que nós temos a nível energético, a nível das emissões de CO2, etc. Esse mecanismo é bem vindo.

Está a falar da China e da Índia, sobretudo.
Sim, China e Índia. Se bem que falando da indústria cimenteira, as grandes ameaças vêm do norte da Europa e da Turquia também. Também nalguns casos da Rússia, etc. Mas essa ameaça é menor. Agora há aqui um ponto que não está resolvido, que é a questão das exportações. Nós somos exportadores e há aqui quatro países – que são os do sul da Europa – que são os grandes exportadores de materiais cimentícios: Portugal, Espanha, Itália e Grécia. E esse tema ainda não está resolvido e é um tema que, e nós já temos vindo a dizer junto das entidades com quem contactamos – que isso é uma ameaça para a indústria. Porque se nós deixarmos de ter hipótese de exportar por falta de competitividade, isto vai ter impacto a nível das unidades fabris aqui em Portugal, em que a exportação ainda tem algum peso. Já teve muito mais, já teve um peso de quase 70% nos idos de 2015 e 2016, à volta disso. Agora há um impacto menor.

Está em quanto, agora?
Eu diria que entre os 30 e os 40%. Mas é significativo, não é?

Portanto, reduziu para cerca de metade em seis anos.
Sim, em termos de exportação é exactamente isso. Mas também porque o mercado interno também aumentou, felizmente.

Estave paralisado por causa dos anos da troika, suponho.
Exactamente. Isso. O mercado interno atingiu o bottom line entre 2014 e 2015. Portanto, a partir daí, paulatinamente, tem vindo a crescer. Mas, de qualquer maneira, para nós a exportação continua a ser bastante importante. E se não houver um mecanismo que permita criar um level playing field em termos de competitividade com os restantes, perdemos e deixamos de exportar. Esse é um ponto que está em aberto.

Que mecanismo é que a indústria do sector do cimento entende que é o mais ajustado ou que é o necessário, pelo menos?
Nós, aquilo que defendemos é um mecanismo um pouco idêntico ao C-BAM, mas referente às exportações. Porque se nós vamos exportar com um custo adicional que os outros não têm, perdemos competitividade.

Isso traduz-se numa compensação, numa ajuda, uma subsidiação às exportações?
Não, eu não gosto do termo subsidiação. Não. Mas, por exemplo, se nós não formos penalizados em termos do CO2 que emitimos. Nós progressivamente vamos reduzindo essas emissões de CO2, como decorre do nosso roadmap. Portanto, essa componente será progressivamente mais baixa. Mas se nós não formos penalizados pelo CO2 que emitimos na exportação, haverá por essa via uma compensação. Mas há quem diga: ‘Mas com isso então nós estamos a contradizer aquilo que estamos a defender para o interior da Europa’, que é penalizar as emissões de CO2 para obrigar as empresas a investir na descarbonização.

Como responde a isso?
Isso não é bem assim, porque nós não estamos no mesmo campo. A Europa não está no mesmo campo dos outros. Por isso mesmo é que a Comissão Europeia criou o C-BAM, para criar um level playing field entre todas as empresas no interior da União Europeia face às externas, para manter a competitividade. Então, nós temos que olhar também para as exportações para não perdermos essa mesma competitividade. Não nos podemos é fechar dentro da Europa.

Eu entendo o mecanismo, conceder uma isenção do CO2 para o caso das exportações. Mas há muitas outras excepções, por exemplo as companhias de aviação, que querem manter as isenções de pagamento de taxas de CO2 quando estão a voar para zonas ultraperiféricas da Europa. E outros sectores têm outras isenções. Se nós juntarmos todas estas isenções, depois começa a fazer mossa. Como saímos daí? Escolhemos pelo peso do sector, pela capacidade de fazer lobby?
Obviamente, que o peso do sector é importante. O sector do cimento, e isso foi reconhecido pela Comissão Europeia, é fundamental para o desenvolvimento da Europa e para o crescimento da Europa. Embora aqui estejamos a falar de exportações. Mas as empresas não vivem só do mercado interno, não vivem só do seu nicho. Isto é claro, temos que olhar a nível global. Agora nós também temos dado informação. A palavra lobby hoje em dia é um bocado perigosa de dizer, mas eu acho que o lobby vai existir sempre, desde que seja de acordo com as regras.

E a indústria do cimento tem um efeito em cadeia na economia, certo? O custo do cimento depois começa a propagar-se ao longo da fileira e depois temos aumento do preço dos materiais, atrasos, faltas de material. Que alterações é que esta recente COP28 veio trazer à vossa estratégia ou à velocidade com que a querem aplicar?Além daquilo que eu já disse – que vai ter grande importância, que é o Fit for 55 – aqui não vai ter. Porque nós já estamos em andamento e já sabemos os objetivos que queremos alcançar. Agora há aqui uma coisa que eu acho que é importante, que é o facto de terem referenciado todos os combustíveis fósseis. Na COP 26, o petróleo e o gás natural não foram referenciados, mas aqui já foram referenciados todos os combustíveis fósseis. E a substituição progressiva por energias alternativas e combustíveis alternativos acho que é positiva, porque isso é uma das coisas que nós que ainda temos. Ainda consumimos combustíveis fósseis nos nossos fornos, tem vindo a reduzir, mas ainda consumimos. Sabemos que temos que o reduzir e esse é o caminho para reduzirmos, para termos mais combustíveis alternativos, mais biomassa, que em termos de CO2 é benéfica. Mas falta-nos aqui também toda uma nova política.

Uma nova política nacional?
Entre parênteses, eu acho que isto também vai criar pressão sobre os governos e sobre estratégias que terão que ser tomadas para atender a esta redução progressiva dos combustíveis fósseis.

Mas a ideia que existe é que estamos bem nesta matéria. Ou estamos lentos?
Olhe, nós podíamos ir mais rápido. Isto relacionado com aquilo que eu estava a dizer da substituição dos combustíveis fósseis na indústria cimenteira. Nós temos ainda muito a fazer no que diz respeito a resíduos e ao tratamento de resíduos, para poderem ser usados na indústria cimenteira. Já estamos a consumir alguns, sim senhor. Tem sido feito algum trabalho, mas acho que muito mais trabalho tem que ser feito para que a indústria dos resíduos em Portugal esteja ao nível do de outros países da União Europeia.

Explique-nos, por favor, qual é o caminho que o sector defende para esta matéria.
Só para ter uma ideia: na Alemanha já há fornos que queimam 95% de combustíveis alternativos. Não queimam combustíveis fósseis. Nós em Portugal devemos andar numa média dos 40%, portanto ainda temos aqui muito caminho a percorrer. E esse caminho a percorrer implica também – além de investimentos das empresas e de licenciamentos também para o podermos fazer – também implica uma estratégia de resíduos a nível nacional. Nós podemos consumir resíduos, mas há determinados resíduos que não podemos consumir, plástico por exemplo. Isso depois é um problema. Portanto, aquilo que interessa é que haja uma triagem dos resíduos para poder encaminhar cada um para o seu destino.

E não há muita triagem em Portugal.
Não há. E é isso que tem que ser feito. Tem que ser, de facto, criada uma indústria de resíduos como deve ser. Para podermos usufruir desses resíduos como combustíveis alternativos. Mas outra matéria também relativamente a combustíveis, que também faz parte do nosso roadmap, é utilizar matérias-primas alternativas. Que é que isto quer dizer? São matérias-primas que já não têm a componente de CO2, porque nós temos um grande problema que outras indústrias não têm. É que cerca de 60% das nossas emissões de CO2 vêm do processo em si. Ou seja, nós consumimos calcário e calcário é óxido de cálcio mais CO2. Isto no processo do CO2 vai para a atmosfera e o óxido de cálcio vai para o produto.

E portanto é contabilizado nas vossa conta de carbono.
Exatamente. Agora, aquilo que nós dizemos é que se nós consumimos nas nossas pedreiras, se tivermos matérias primas alternativas, que já não têm essa componente do CO2, nós estamos a contribuir também para o produto final de ter menos emissões de CO2.

Mas como é que se faria o calcário sem o CO2? Através de que processo?
Há matérias primas alternativas, como sejam os resíduos de construção e demolição. Também, obviamente triados e que podem ser utilizados. Eu costumo dar isto como exemplo: a Áustria é o país da União Europeia que tem mais incorporação de matérias primas alternativas, nomeadamente no cimento. Noutras indústrias também, mas no cimento tem. E porquê? Porque é proibido a deposição em aterro de resíduos de construção e demolição. É simples. Quero dizer, é simples de dizer…

Mas falando com as pessoas dos aterros em Portugal, nós sabemos que um dos principais problemas é que há duas localizações que têm concessões para tratamento de resíduos perigosos, que são muito fiscalizados. E depois há uma centena ou mais de aterros municipais, para os quais não há fiscais para verificar o que lá é posto.
É isso que nós temos de resolver rapidamente. Mas isso depende das entidades governamentais. Nós estamos cá para consumir, obviamente, e para ajudar. Mas isto é política estratégica do país, ok?

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