«No Euro84 fui ter com o selecionador: 'Senhor Fernando, não estou aqui para brincar'»

3 meses atrás 83

O futebol é muitas vezes um elemento de memória coletiva de uma família, de um país, do Mundo. É por isso que o zerozero, em associação com Rui Miguel Tovar, criou o DESTINO: SAUDADE. Este é um espaço onde vamos recordar histórias e momentos do desporto que nos apaixona. Haverá tempo também para lembrar jogadores de outros tempos, aqueles que nos encantaram e que nos fizeram sonhar.

1984, ano louco na vida de António Sousa

Dois golos na final da Taça de Portugal.
Um golo na final da Taça das Taças.
Autor do primeiro golo de Portugal num Campeonato da Europa. 
Transferência-relâmpago e polémica do FC Porto para o Sporting. 

Não é coisa pouca. Sousa, apenas Sousa, é um dos melhores médios de sempre em Portugal. Campeão da Europa pelo FC Porto em 1987, vencedor da Supertaça Europeia e da Taça Intercontinental. Um luxo, um luxo. Mas não se fica por aqui. Pousadas as chuteiras, a carreira de treinador tem um momento mágico em 1999: o Beira-Mar ganha a Taça de Portugal com um golo de... Ricardo Sousa, filho de António. 

Melhor convidado que este para o Episódio 100 do DESTINO: SAUDADE? Digam-nos um! 

António Sousa, 67 anos, um grande senhor do futebol. Introvertido, cioso da sua intimidade, abre uma exceção e aceita o convite do zerozero. A PARTE I da conversa passa pelo Europeu de 1984, até para abrir apetite para o torneio que aí vem. Mas há mais, muito mais. 

Na PARTE II, a publicar na tarde desta quinta-feira, Sousa fala da mudança das Antas para Alvalade, com bilhete de regresso ao mundo portista. Imperdível. 

zerozero - 1984 é um ano marcante para o António Sousa: marca o primeiro golo do FC Porto numa final europeia, à Juventus, e marca o primeiro golo de Portugal num Europeu. Ainda por cima a dois guarda-redes icónicos: Tacconi e Arconada. Como se já não bastasse, transfere-se das Antas para Alvalade.  

António Sousa - Foram momentos espetaculares. Por isso estamos aqui a conversar sobre eventos com 40 anos. Esse golo à Espanha foi bonito, uma grande chapelada ao Arconada. Normalmente até rematava em força, mas quando o vi ligeiramente adiantado tentei um pontapé mais em jeito. 

zz - O António foi o número '13' nesse Europeu, famoso por ter sido o número do Eusébio no Mundial de 1966. Houve essa influência na sua escolha ou foi por sorteio? 

AS - Foi por sorteio. Tirámos as bolinhas todas, para ninguém ficar zangado. Tirando um ou outro, que ficaram com os números habituais deles. A grande maioria foi ao saquinho e calhou-me esse número. O falecido Eusébio estava connosco no Europeu, fez-nos companhia até ao fim. Devo dizer que nesse jogo contra Espanha, o Eusébio teve a simpatia de me vir pedir a camisola no fim. Naturalmente, podia dizer que não, porque era a primeira camisola a fazer um golo português num Europeu. Mas era o Eusébio e ofereci-lhe a camisola. 

zz - Três anos mais tarde, na final de Viena pelo FC Porto, usou a camisola '9'. O que representava para si e para o clube o peso desse número, que costumava ser usado pelo capitão Fernando Gomes, ausente por lesão? 

AS - O Gomes estava lesionado, de facto, e esse número ficou disponível. Eu não vinha a jogar com regularidade, os restantes números já estavam tomados e por isso fiquei com esse. Foi um gosto e um prazer enorme. Eu queria era jogar, ser titular. Sabia do peso dessa camisola, mas tive de demonstrar personalidade. Nessa altura já tinha bastante experiência também. Foi mais uma página bonita para o futebol português. O trabalho foi excelente e acabámos por erguer a taça. 

zz - Voltemos ao Euro84. O torneio foi jogado em França, destino de grande parte da nossa emigração. Nessa altura já houve adesão popular, apoio massivo à seleção? 

AS - Tivemos muita, muita gente a acompanhar-nos. Todos os dias. Quando saíamos do estágio, aparecia logo imensa gente à porta do hotel. Muito amáveis, sempre. Sentimos na pele o prazer e o gosto que aquela gente tinha pelo seu país. Autógrafos, fotografias, procurámos que eles sentissem orgulhos nos seus futebolistas. 

zz - Nos convocados havia dez do FC Porto e oito do Benfica. A relação era razoável, boa ou o clima era negativo? 

AS - As coisas correram bem. Os blocos eram fortes e numerosos, havia gente de personalidade forte. Estávamos em vantagem em relação ao Benfica, talvez tenha sido das primeiras vezes. Mas lidámos todos os dias com esses colegas da mesma forma que lidávamos com os colegas no dia-a-dia- dos clubes. Todos queriam jogar. O objetivo era procurar o melhor possível para honrar Portugal. Queríamos ir longe. A camaradagem criou amizade. Dos 22 que lá estavam, qualquer podia ser titular. A qualidade era enorme e basta ver os nomes dos pontas-de-lança: Fernando Gomes, Rui Jordão e Nené. E o Manuel Fernandes não foi convocado. Quem não jogava, claro que ficava com azia. 

zz - O Sousa acabou por ser titular em todos os jogos. 

AS - Mas antes do torneio pressenti que não ia ser opção inicial. Tive o cuidado de abordar o Fernando Cabrita, que tinha sido meu treinador no Beira Mar, e era o selecionador principal. 'Senhor Fernando, não venho para aqui brincar, meu caro. Venho jogar'. Havia uma indefinição grande, mas consegui estar sempre no onze inicial e fazer quatro jogos magníficos. Ficou a faltar a final, se calhar merecíamos ter estado lá. 

zz - O que falhou para não terem chegado à final? 

AS - Um bocadinho de paz espírito em determinados momentos. A França estava a jogar em casa, era uma equipa de topo, forte individual e coletivamente. O Michel Platini acabou por desequilibrar. Foi com uma grande dor que viemos embora. 'O que nos faltou para ter o clique para a vitória?'. Eu e os meus colegas ainda hoje falamos sobre isso. 

zz - Temos aqui algumas cadernetas antigas. Esta é a primeira em que aparece como futebolista do FC Porto, na época 79/80. 

AS - São fotografias lindas. Fazem-me lembrar tempos áureos. Não conhecia esta caderneta, mas lembro-me de ver este cromo na altura. Esta é a minha primeira época no FC Porto, com 21 anos. Eu já tinha cinco anos e meio de futebol profissional: um e meio na Sanjoanense e mais quatro no Beira Mar. 

«O Eusébio não quis bater um livre ao Benfica e bati eu»

zz - No Beira Mar jogou com o Eusébio e o Manuel José, certo? 

AS - Foram meus colegas de equipa, sim. 

zz - Que tal era o Eusébio no balneário do Beira Mar? 

AS - Muito normal, pacato, amigo do amigo. Tinha um fair-play enorme. Tratava todas as pessoas por 'você', quando se dirigia a mim dessa forma eu ficava todo envergonhado. Como é que era possível? Uma figura destas a tratar um menino por você. Incrível, incrível. 

zz - No final dos treinos ficavam a bater livres os dois ou o António ainda não tinha essa fixação?

AS - Ainda não tinha muito essa tendência, mas antes da chegada do Eusébio a Aveiro era já eu que batia alguns dos livres. Depois, com ele, não. Passou a ser ele. Ainda não se treinava nos treinos com grande intensidade esses lances, como se passou a fazer mais tarde. No FC Porto já tive mais essa possibilidade, com treinos individuais para melhorar nesse aspeto. 

zz - Mas aprendeu muito com o Eusébio sobre os livres diretos. 

AS - Isso sim, bastante, bastante. Ele dizia-me assim: 'Miúdo, a bola tem de ser colocada assim e tens de bater no pipo'. O pipo era a zona onde se enchia a bola. 'Assim, a bola ganha efeito'. E eu assim passei a fazer. 

zz - É verdade que o Eusébio não quis bater um livre direto ao Benfica e convidou o António Sousa a fazê-lo? 

AS - A ligação dele ao Benfica era muito forte, compreendi isso. E quando ele não podia, lá estava eu. É verdade, aconteceu isso, ele não quis marcar e endossou a bola ao colega do lado. 

zz - O António batia bem os livres com qualquer um dos pés. 

AS - O meu pé dominante sempre foi o direto. Pé esquerdo... mais para subir o autocarro, mas fiz bons golos de pé esquerdo, é verdade. Quando era miúdo estava em casa e na rua só a bater de pé esquerdo, para melhorar. Mas não era esquerdino, ao contrário do meu filho Ricardo. 

«Não havia empresários, eu decidia a minha vida»

zz - Sigamos até Basileia, 1984. E à final contra a Juventus. Sentiram-se prejudicados pela arbitragem e que eram superiores aos italianos ou, pelo menos, que tinham o mesmo nível? 

AS - Sentimos que perdemos porque a equipa de arbitragem foi ligeiramente tendenciosa, para o lado da Juventus. Era a primeira vez que estávamos numa final europeia e, na hora da verdade, a tendência do árbitro era sempre para o mesmo lado. É capaz disso ter acontecido. Sentimos muito isso. Foi uma final muito mal perdida. Queríamos muito essa taça no Porto. Foi impossível, não conseguimos. Há um golo deles em que existe uma falta clara sobre o nosso defesa. As imagens mostram bem isso. Fomos superiores à Juventus e podíamos ter ganhado a final. Ganhei todas as finais que disputei, só perdi essa, a primeira. 

zz - Qual foi a diferença no discurso entre o António Morais, na final de 1984, e o Artur Jorge, na final de 1987? Fala-se muito deste último, mas nada da palestra de Basileia. 

AS - Não havia nada a explicar. Nós conhecíamos perfeitamente a forma de trabalhar, de ser, de pensar do António Morais. Havia respeito pela liderança do senhor Morais, apesar de ser adjunto do senhor Pedroto. O que ele nos transmitiu foi isto: 'Procurem ser iguais a vós próprios, a nossa equipa é competente e forte. A Juventus é uma grande equipa, mas somos melhores e podemos fazer história'. Passou-nos um sentimento positivo, acima de tudo. 

zz - Em 1984 era um dos melhores médios do mundo, o FC Porto estava a crescer, marca numa final europeia e no Europeu. Não recebeu nenhum convite do estrangeiro? 

AS - As transferências para o estrangeiro eram quase inexistentes. Nessas épocas saltou o João Alves, depois o António Oliveira, o Humberto Coelho, o Fernando Gomes... a partir de 1984, as coisas passaram a ter uma dimensão maior, mas nunca tive vontade de sair do meu canto, do meu país. Da minha casa em São João da Madeira. Não tive nenhum contacto. Lia nas redes sociais (risos), que eram os jornais, sobre a possibilidade do clube x estar interessado, ainda se aflorou o interesse do Marseille, mas não passou disso. 

zz - E o seu golo à Espanha foi em Marselha. 

AS - Exatamente. Não havia empresários, eu é que decidia a minha vida. Quando eles apareceram, sim, as coisas mudaram também para benefício do futebolista. 

zz - Estamos a esquecer-nos da final da Taça de Portugal de 1984. Quantos golos fez ao Rio Ave? 

AS - Dois golos. Ganhámos 4-1. 

zz - Recorda-se desses golos no Jamor? 

AS - Um foi de bola corrida e o outro de livre. Na baliza estava o Alfredo. 

zz - Nessa época de 83/84 fez 47 jogos e 14 golos, os mesmos que fizera em 82/83.

AS - Para um centrocampista são números bons, acho que sim. 

«A final com o Beira-Mar foi um momento mágico»

zz - Além do Euro84, o México86 faz parte da sua carreira. Foram experiências muito diferentes? 

AS - Estão lado a lado no meu coração. O prazer foi exatamente o mesmo. Fomos para o México interessados em fazer as coisas bem e dignificar o futebol português. 

zz - Depois da vitória sobre a Inglaterra, Portugal sofreu duas derrotas. Ao intervalo já perdia por 2-0 contra Marrocos. 

AS - Fomos infelizes contra a Polónia. Fizemos um bom jogo. Eles jogaram no nosso erro, muito recuados. Não conseguimos chegar ao empate, mas não fizemos um mau jogo. Perdemos 1-0 e tivemos de ir para o terceiro jogo obrigados a pontuar. Marrocos era mais acessível, tínhamos obrigação de superar as dificuldades e não fomos capazes. Não fomos o que já tínhamos sido antes, mesmo no Euro84. Sempre tive muito respeito pelo meu querido amigo José Torres, mas faltou qualquer coisa na liderança para sermos mais fortes. 

zz - Um ano depois desse falhanço de Saltillo, o FC Porto dá a volta ao texto e sagra-se campeão da Europa. 

AS - Equipas diferentes. É o mesmo na comparação entre as seleções de 84 e 86. Se formos comparar setor a setor, a equipa de 84 era muito mais forte. Houve má programação na convocatória para o México. Esse foi o grande erro. Em relação ao FC Porto, a equipa estava predestinada a vencer tudo. Nós obrigávamos o nosso colega a superar-se. Esse espírito foi criado no FC Porto, só se admitia ganhar. E assim construímos uma equipa fortíssima. 

zz - Qual foi o grande jogo da sua carreira?

AS - Viena, 1987. Todos queríamos lá estar e essa noite foi a que mais encheu o nosso orgulho. 

zz - Pela seleção ficou a faltar alguma coisa?

AS - Tive a felicidade de estar num Europeu e num Mundial. Foram anos super maravilhosos para a minha carreira. É disso que vivemos. 

zz - O José Maria Pedroto foi o treinador mais marcante? 

AS - Foi. Contratou-me ao Beira-Mar e fez de mim titular do FC Porto. Já o conhecia porque ele era o selecionador nacional de esperanças e foi ele a chamar-me. Ia ver-me jogar a São João da Madeira, fez-me várias visitas e eu tinha só 16 anos. O que consegui fazer tem muito a ver com o que ele me foi transmitindo. Eu estava ali para jogar e ganhar, acho que o fiz pelo muito que me ensinou. Tenho por ele uma enorme estima. 

zz - Os seus netos têm consciência da carreira que o avô teve?

AS - Acho que sim. O Afonso já tem 24 anos, sabe perfeitamente. Não gosto das comparações, tem de seguir o seu caminho. Ele e o mais pequenino, que só tem sete anos. A marca-Sousa vai estar sempre ligada a eles e têm de conviver com isso. 

zz - Queríamos acabar com a final da Taça de Portugal. Alguma vez sonhou ganhar esse troféu com um golo do seu filho Ricardo? 

AS - Não, impensável. É o guião de um filme. 

zz - Percebeu logo que tinha sido ele a marcar?

AS - Sim, foi a inspiração normal dele. Podia ter sido um grande golo como foi ou então um remate ao lado. Foi um momento mágico, sem dúvida. O Ricardo transmitiu essa magia, ao tirar os adversários da frente e depois na forma como meteu a bola na baliza. Ser um momento pai-filho... são emoções demasiado pesadas pata termos noção da realidade no momento. Depois da Taça dos Campeões Europeus, acho que é o momento que mais recordo com saudade.

zz - Fez agora 25 anos. 

AS - É verdade. E descemos de divisão nesse ano. Três semanas depois da descida, estávamos a preparar a nova época. Supertaça, competições europeias... Não é fácil gerir isso, mas dei alguma liberdade ao grupo. Empatámos 4-4 contra o Salgueiros e a vitória teria dado a manutenção. Dei cinco dias de descanso ao plantel, disse-lhes para dormirem e meterem a cabeça num saco. E depois fomos jogar a final, com uma recuperação excelente de todo o grupo. 


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