OPINIÃO | Pano para Mangas

"A Preto e Branco” é uma coluna de opinião que procurará reflectir sobre o futebol português em todas as suas vertentes, de uma forma frontal e sem tibiezas nem equívocos, traduzindo o pensamento em liberdade do seu autor sobre todas as questões que se proponha abordar.

É uma frase feita, mas que faz todo o sentido. O futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes e, por isso, deve ser encarado na sua justa dimensão, não lhe dando o carácter de assunto de vida ou de morte com que alguns (demasiados em boa verdade) gostam de o discutir no dia a dia, ultrapassando inúmeras vezes as fronteiras da racionalidade e da educação.

Naturalmente que num clube como o Vitória SC, em que tudo é vivido intensamente pelos adeptos, as entradas e, especialmente, as saídas de jogadores de futebol da equipa principal (porque felizmente o clube também tem outras modalidades) geram sempre uma acesa discussão entre os que acham que o clube está a vender mal ou… muito mal, bem como aqueles que entendem que as diferentes direções, sejam elas quais forem, fazem sempre tudo bem. Portanto, as críticas de quem discorda são de imediato elevadas à condição de terrível heresia, onde quase se lamenta já não existirem fogueiras da Inquisição para queimar os hereges que se atrevem a discordar dos dogmas directivos.

É o  que acontece, uma vez mais, com a transferência de Ricardo Mangas para o Spartak de Moscovo, que gera enorme discussão entre adeptos, quer pelo montante em causa, quer pelo excelente momento desportivo da equipa, ou até mesmo pela impossibilidade de se contratar um substituto com o mercado fechado, pelo menos, sem vasculhar na lista de atletas desempregados

"Escaldados" pela terceira saída por valores incompreensivelmente baixíssimos neste ano civil, num núcleo formado pelas despedidas de Jota Silva, André Silva e Ricardo Mangas - as duas últimas com o mercado já fechado -, há muitos adeptos do Vitória SC que procuram perceber na sua plenitude que negócio é este, ao mesmo tempo que tentam entender o que é que o clube vai ganhar com ele em termos desportivos, financeiros e de imagem.

De imagem nada.

Fazer negócios com um clube de um país banido das competições desportivas internacionais, como sanção à invasão da Ucrânia, e alvo de inúmeras restrições comerciais por parte da União Europeia fica muito mal a um emblema que se declara de “Causas" e que até participou em vários momentos de solidariedade.

Ganhos desportivos é evidente que nenhuns.

Ricardo Mangas está a fazer um excelente início de época. Era um dos jogadores mais decisivos da equipa, tendo anotado quatro golos nas competições europeias. Para além disso, está no radar de Roberto Martinez (embora isso valha o que vale...). Por fim, a este ritmo é óbvio que acabaria por se valorizar na Liga Conferência e no próprio campeonato nacional. 

A tudo isto acresce o facto de que não pode ser substituído no imediato, a não ser por alguém do mercado de desempregados, onde a escolha é muito escassa e qualitativamente duvidosa.

Posto isto, é inevitável que a equipa se ressinta desportivamente da sua ausência.

Resta a componente financeira, que é aquela que em teoria explica a sua saída.

Como um dia disse o Eng. António Guterres, face a uns números difíceis de perceber (é uma questão de fazer as contas...), é fácil de entender toda a contestação associada aos valores desta transferência.

Há um ano atrás, o Vitória SC pagou ao Boavista um milhão de euros por Ricardo Mangas. Um ano de salários, mais as comissões deste negócio, apontam para mais meio milhão de euros, mais coisa menos coisa, em gastos. Assim, Mangas custou um milhão e meio de euros aos cofres vitorianos.

Com uma tábua rasa de valorização do jogador, o Vitória SC vende agora o seu ativo por dois milhões de euros ao Spartak de Moscovo, mais 500 mil euros  por objectivos, algo que falarei a seguir.

Desses dois milhões, o Boavista tem direito a 400.000€, dado ter ficado com 20% do passe. Para o Fundo BDT & MSD vão 600.000 €, já que a empresa de serviços financeiros tem direito a 30% do valor líquido das transferências realizadas no mercado de verão, consoante as cláusulas de empréstimo que fez ao Vitória SC, tal como aconteceu na transferência de Jota Silva.

Tal como escrevi nessa altura, é verdade que esta verba abate ao passivo, mas resulta de um negócio mal feito com a V Sports, que obrigou ao recurso a este Fundo. Com outras cautelas, este apoio não teria sido necessário.

A todas estas deduções ao valor recebido, ainda é necessário juntar os valores de intermediação do negócio, que seguramente não andarão abaixo dos 10%, numa perspetiva otimista.

Em suma, dos dois milhões de euros do negócio, apenas irá entrar nos cofres do clube um valor na ordem dos 700 mil euros líquidos, ou pouco mais do que isso.

Atendendo ao investimento do Vitória SC em Mangas (valor da aquisição mais salários), constata-se que um jogador de 25 anos, em plena valorização desportiva, acabou por dar prejuízo em termos financeiros.

Se não é caso único… parece.

Quanto aos objetivos, fazendo fé no que se lê nos diários desportivos, o eventual montante acrescido irá rondar os 500 mil euros, caso se cumpram duas premissas…

A primeira passa pelo triunfo do Spartak no campeonato russo, já a outra passa pelo tempo de utilização do atleta, que tem que cumprir, pelo menos, 45 minutos em 50% dos jogos oficiais.

A segunda não parece difícil de cumprir, mas no que toca ao primeiro parâmetro, convém recordar que o Spartak só foi campeão duas vezes neste século, em 2001 e 2017. O Zenit vai no sexto título consecutivo, o que pressupõe uma clara hegemonia no futebol russo.

Há ainda uma percentagem de 15% sobre as mais-valias de uma futura venda, que me parece verdadeiramente utópica, dado estarmos a falar de um jogador que acaba de abandonar um clube que está nas competições europeias, o principal palco para valorizar jogadores, para se ir meter num campeonato periférico, num país banido das provas internacionais.

Uma nota final para dizer o seguinte.

Tem sido aventado, seguramente por inspiração de quem quer justificar este negócio de qualquer forma, que o dinheiro encaixado com a saída de Mangas permite segurar outros jogadores. Face aos números expostos, é difícil perceber como, mas o futuro relatório de contas da SAD certamente explicará. Ou não.

A outra "explicação" induzida na opinião pública é que foi o jogador a forçar a saída.

Essa é inaceitável. 

Um jogador que tem um contrato em vigor, livremente assinado pelas partes, no qual a entidade patronal esteja a cumprir normalmente as suas obrigações, só tem uma forma de forçar a saída: aparecer um clube que pague a cláusula de rescisão. Caso contrário, tem de cumprir o contrato que assinou, se o clube que representa não o quiser vender a preço de saldo.

Em suma, tal como aconteceu com as saídas de André Silva e, posteriormente, de Jota Silva, também esta transferência de Ricardo Mangas é um assunto que provocou (e vai continuar a provocar) um largo debate na massa associativa vitoriana. É uma matéria que, de facto, tem pano para… Mangas!