Heróis de ficção, colecciono muitos: Maddie Hayes do Modelo e Detective, Alex P. Keaton do Quem Sai aos Seus, Carlton Banks do Príncipe de Bel-Air, Denny Crane do Boston Legal, Miles Silverberg da Murphy Brown. Heróis em carne e osso, só um acima de todos os outros: Paulo Jorge dos Santos Futre. Desde os tempos de júnior no Sporting, a partir adversários a torto e a direito, ali no campo número 2, ao lado do Estádio José Alvalade. Que magia, é a oitava maravilha, Futre joga à velocidade da luz. Passam-se anos, vira-se o século e eis-nos à mesa no Solar dos Presuntos para falar do FC Porto vs. Atlético Madrid. Coincidência das coincidências, o nosso get together é marcado para 21 Outubro, o dia do 19.º aniversário do zerozero. A chegada de Futre ao restaurante é um regabofe. Evaristo, o dono, está na mesa do canto. Como sempre. Paulo dirige-se a ele e trocam memórias, elogios, gargalhadas. Para subir ao primeiro andar, Futre dribla muuuuitos laterais-direitos. Uma vez lá em cima, vira à direita e, após contornar o balcão, entra na sala Armando Cortez. Caaaalma, ainda não. Pedro, o filho do Evaristo, mete-se com ele e resolvem fazer um vídeo para Jorge Jesus. ‘Jorginho, Jorginho, temos saudades tuas, força, és um herói, i love youuuuu.’ É só rir. Paulo Futre: Isto é para onde, Ruizinho? Rui Miguel Tovar: Zerozero, faz hoje 19 anos e estão em festa no Porto, de onde são os dois donos. PF: Eeeee o zerozero, 19 anos, g’anda espectáculo. É um projecto brutal. Às vezes, vou lá para ver fichas de jogo do meu tempo e lixo-me com o ‘registo’. RMT: Regista-te, vale a pena. É a custo zero. Entras e sabes tudo. PF: Qual é um lance de futebol muito difícil de provocar? RMT: O penálti? PF: Nem mais, o penálti. No zerozero, vem jogos, golos e assistências, não é? Deviam criar mais uma coluna para penáltis provocados. RMT: Jajajajajaja. PF: Fizeram uma análise lá em Espanha e tenho 21 penáltis assinalados, entre Liga e Taça. Cristiano tem 20. O Neymar também está perto, 19, acho. Ou será 20, já nem sei. RMT: Jajajajajaja. PF: E o recorde de uma época era meu, 7. Chegou o Neymar e sofreu oito. RMT: E em Portugal? PF: Perguntas bem, temos de fazer isso. * RMT: Lembro-me daquele bem especial, em Combra. PF: O do mergulho é uma vergonha [Futre faz o gesto perfeito da queda, com os braços arqueados]. A caminho de casa, só desejava que as imagens da RTP não fossem claras. Nessa noite, o Domingo Desportivo mostra e é flagrante. Fiquei sem saber onde me meter, Ruizinho. Atenção, não é penálti e não é golo: o Gomes falha. O outro no último segundo é penálti. Foi o Kikas, com quem dividi balneário no Sporting. O gajo derruba-me com os braços. Penálti. Vai lá o André e golo, 2:1. Mas a polémica do primeiro penálti foi terrível, hã? RMT: Então? PF: Eram as últimas jornadas da 1.ª divisão, Benfica e FC Porto a discutir o título, estás a ver, não é? RMT: Nem imagino. PF: Esse jogo em Coimbra é engraçado pela pega com o Artur Jorge. RMT: Então? PF: Na semana anterior, jogámos em casa com o Braga a uma 6.ª feira [segunda volta das eleições presidenciais entre Mário Soares e Freitas do Amaral]. Como havia mais tempo de descanso, fui passar as folgas ao Montijo e só voltei ao Porto na 3.ª feira. Arranquei daqui da madrugada, às quatro/cinco da manhã, e cheguei atrasado ao treino da manhã. Quando entro nas Antas, o quiosque dos cestos já está fechado e o roupeiro, o Moreno, manda-me ir falar com o Artur Jorge. Vou ao balneário do Artur Jorge e digo-lhe alguma desculpa, alguma treta. Já não me lembro qual: o despertador, o trânsito. Sei lá. RMT: E o Artur Jorge? PF: ‘És sempre a mesma merda e o c***** e isto. Desaparece daqui, nem treinas.’ RMT: E tu? PF: Epá, maravilha: vinha de uma directa e fui dormir. Para o treino da tarde, cheguei a horas e fui recolher o meu cesto da roupa. E o Moreno volta a recusar-me. RMT: Ó diabo. PF: Disse-me para ir falar com o Artur. Fui e ele diz-me só isto: ‘desaparece daqui’. Na 4.ª feira, a mesma coisa. Na 5.ª, dia de treino conjunto, a mesma coisa. Já havia apostas dentro do plantel sobre se o Futre era convocado ou não. Chega 6.ª e sou convocado. Sábado, não treino. Voltaram as apostas sobre se o Futre jogava de início, começava no banco ou ia para a bancada. No domingo, dentro do balneário, o Artur diz a equipa e ‘10 Futre’. Beeeeem, rebentei com tudo. Marquei um golo e fiz dois penáltis. RMT: E depois do jogo? PF: [Futre ri-se para o ar] Depois do jogo, o Artur Jorge cumprimentou toda a gente, menos a mim. Apertou a mão ao Gomes, número 9 e ‘parabéns’. Passou por mim sem dizer nada e apertou a mão ao André, número 11, para dizer ‘parabéns’. Caraças RMT: Qual a diferença entre Artur Jorge e, por exemplo, Luis Aragonés? PF: O Luís era mais f*****. Individualmente, o Artur dizia-te as coisas na cara, sem mais ninguém à tua volta. O Luis era mais duro, humilhava-te à frente de toda a gente. Quando nos pegávamos nos treinos, ele dizia-me ‘nos vamos meter los guantes, nos vamos cerrar a una habitación e nos vamos a dar de hóstias’. E os outros diziam entre si ‘se o Luis faz isto ao português, é melhor ficarmos quietinhos’. Em motivação, o Luis era o número um. O que ele me fez no dia da final da Taça do Rei em 1992, ai ai. RMT: Conta aí. PF: Eram umas nove da manhã e ele bate à porta do nosso quarto. RMT: De quem? PF: Meu e do Manolo. Bate à porta e bate e bate. Quando o Manolo lhe abre a porta, o gajo abre os estores, pega numa cadeira e senta-se ao lado da minha. RMT: E tu? PF: Com os olhos fechados, a tentar escapar da luz do dia. E o Luis ‘usted mirame los ojos’. Tratava-me sempre por usted. E eu todo lixado com a entrada repentina no quarto e o mirame los ojos, a dizer-lhe para aparecer mais tarde. De repente, o Luis diz a frase-chave. ‘Sabes a história do Pizo Gómez?’ Bem, levantei-me da cama e sentei-me. RMT: O Pizo Gómez. Quem é? PF: Um jogador do Atlético, de raça, na altura emprestado pelo Luis ao Espanyol. A história é esta: três anos antes dessa final da Taça do Rei 1992, com o Pizo no Atlético, há um encontro num semáforo em Madrid entre o carro do Pizo e um outro só com jogadores do Real Madrid. RMT: Uauuuuu. PF: Eram quatro: Ruggeri, Michel, Gordillo e Gallego. Abriram o vidro e começaram a gozar. ‘Pizo, és o nosso ídolo’, ‘Pizo, dá-nos um autógrafo’, ‘Pizo, a tua mulher isto’, ‘Pizo, aquilo’ e mais umas mil barbaridades. Quando chegou ao balneário e nos contou, beeeeeeeem, ne te digo nada. Se jogássemos o dérbi nesse dia, havia mortos e feridos. Naquele tempo, um jogo à séria era assim. Há dias, vi o clássico [Real Madrid 2:1 Barcelona], dassssss, parecia solteiros contra casados. Bom, esta é a história e já a conhecia, até porque a vivi dentro do balneário. O Luis conhecia-a, mas ao longe, porque ainda não treinava o Atlético. RMT: E agora? PF: O Luis acabou de contar-me a história e disse-me ‘pues bien, Paulo, hoy vengaremos a Pizo. Estos tres, porque o Ruggeri já tinha saído, se van a tragar los insultos que le hicieron y hasta el último dia de cada una de sus vidas van a recordar el dia de hoy’. E continuou, hã? ‘Usted se convertirá en el gran ídolo de Michel, Gordillo, Hierro, su gran amigo Paco Buyo e compañía. Hoy no puedes falar, lo tienes totalmente prohibido. Hoy será tu día. Debe humillarlos como ellos hicieron com Pizo y ahora vuelva a dormir. Pero recuerde, usted no me puede fallar.’ RMT: E voltaste a dormir? PF: Qual quê, acordadíssimo. Aquilo foi o toque a reunir. Quando fomos convidados por uma rádio espanhola para acompanhar todo o Mundial-2010 na África do Sul, eu e o Luis ficamos no mesmo hotel durante um mês. Almoçávamos todos os dias, eu, ele e a sua mulher. Às tantas, perguntei-lhe ‘porque é que me acordou às nove da manhã? Não podia ter feito isso ao meio dia?’ E ele ‘voltaste a dormir?’ Como a resposta foi negativa, estava encerrado o assunto. Luis, o número um da motivação. RMT: Essa é a final do 2:0 ao Real Madrid no Santiago Bernabéu. PF: Banho de bola, 2:0 ao intervalo. Ah, e antes do jogo, já no balneário, o Luis dá a equipa e tal. Quando acaba de falar, dá uma porrada no quadro e grita ‘estoy por los cojones com este equipo’. Bom, entrámos e resolvemos a final em dois tempos. Marcou Schuster, marquei eu e fomos levantar a taça. RMT: E depois dessa final, o que fizeram? PF: Não havia nada organizado, como agora. Tomámos banho, fomos para o nosso estádio e subimos ao camarote para mostrar a taça aos adeptos. Depois fui para casa, revi o jogo e arranquei às duas da manhã para o jantar da consagração, só com os casados. Todos levámos família, fomos para a discoteca e fechámos aquilo. RMT: O Schuster era casado? PF: Eraaaa, com aquela Bianca. Ele jogava, ela negociava os contratos dele. Que dupla. RMT: E que tal, o Schuster? PF: Bom, antes de mais: único estrangeiro a ganhar a Taça do Rei pelos três grandes: Barcelona, Real Madrid e Atlético. Depois, a malta respeitava-o imenso, o balneário calava-se sempre que ele tomava o uso da palavra, fosse para elogiar, fosse para criticar. Por fim, é o melhor oito da história que vi jogar. Tinha-me cruzado com ele num FC Porto vs Barcelona em 1986, o do hat-trick de Juary, e já o via como um Deus. Quando nos juntámos no Atlético, comecei a jogar com os dedos. RMT: Como assim? PF: Jogava virado de frente para ele, certo? O Schuster mandava naquilo, metia bolas a 50 metros, e sem balanço. Okay, sem ba-lan-ço [Futre divide a palavra por sílabas com quem diz ‘atenção, muita atenção’]. Dedo para cima era bola pelo ar para as costas da defesa. Dedo para cima era bola rasteira para as costas. Era incrível, Ruizinho. Fazíamos isso nos treinos e resultava sempre nos jogos. E o mais maravilhoso era que eu fingia que ia para a frente, levava o defesa, pisgava-me e, quando me virava, a bola estava ali à minha disposição. RMT: Génio, o Schuster. PF: Há poucos dias, estava metido numa discussão com os meus sobrinhos sobre o De Bruyne. Eles diziam-me que era o melhor do mundo. Calma aí, caaaalma, disse eu; se é para metermos todos os jogadores da história e é para jogarmos com dois estrangeiros na equipa, como se fazia antes da lei Bosman, os meus eleitos são um 10 e um 8. O 10 é Maradona, ou Messi, para mim Maradona desequilibra porque há Nápoles. O 8 é Schuster. Porra, não brinquem comigo. Atenção, há um craque do meu tempo: Bryan Robson. Jogava muito, que craque. RMT: Jogaste com ele, não foi? Atlético vs. Man United. PF: Pois foiiii, ganhámos 3:0 no Calderón. RMT: Meteste dois ao Schmeichel. Com o pé esquerdo? PF: O primeiro, sim. Apareci isolado, fingi o cruzamento e meti entre ele e o poste. O gajo foi na conversa. O segundo foi com o pé direito. Isolo-me na cara do Schmeichel, corto para dentro e atiro para a baliza deserta. Grande noite. RMT: E já tinhas eliminado o Schmeichel pelo FC Porto. PF: Isso, Bröndby. Nunca me esquecerei de uma bolada na cara que levei e fiquei para morrer. Estava um gelo na Dinamarca, terrível. Gelo mesmo, hã? Neve e gelo. Éramos para jogar com collants, só que o Artur já se tinha passado connosco no intervalo de um jogo da 1.ª divisão na Covilhã. Alguns jogámos com collants e luvas na primeira parte. Chegámos ao balneário e havia uma mesa com chá e tal. O Artur chegou lá e, com o braço, derrubou aquela merda toda. ‘Cambada de maricas, vocês são uns maricas.’ Olhámos uns para os outros e eu nem entrei de collants para a segunda parte. Ficou-me na memória, jajajajaja. RMT: Essa é a derrota famosa no final da primeira volta. PF: Ficámos a quatro do Benfica e fomos à Luz na jornada seguinte. Se perdêssemos, nunca mais lá chegávamos. RMT: E como ficou na Luz? PF: 0:0. RMT: Ahhhhh, já me lembro, é a estreia do Mlynarczyk. PF: Possível, possível. RMT: Lembro-me tão bem, vi esse jogo no circuito interno da RTP. Houve momentos em que uma bola pontapeada pelo Mlynarczyk ia parar ao Bento. PF: O míssil, o Mly era incrível. Com os pés e com os braços. E adorava o gesto dele, quando recolhia a bola, abraçava-a com uma mão e fazia o gesto de ‘calmaaaaa’ com a outra. Era o sinal do ‘está tudo controlado’. O Josef foi o único que vi a fumar no intervalo. E mandava logo três cigarros. Fechava-se na casa de banho e tau tau tau. ... Nunca mais me esqueço dele no Bonfim, o jogo que muda o campeonato 1985-86 a uma jornada do fim. Ganhámos 1:0 e o passe dele com o braço é inacreditável. A bola quase chegou ao meio-campo e depois fiz golo. RMT: Por falar nisso, aqui está a camisola 10 desse jogo. PF: [Futre arregala os olhos] Eischhhhhh. Levava três para cada jogo. Uma para a primeira parte, outra para a segunda e uma terceira para o que desse e viesse. Uma desse dia está no museu do FC Porto, cedida por mim. A outra deve ser essa. Quem ta deu? RMT: O meu pai fez esse jogo, entrevistou o Artur Jorge no relvado do Bonfim, enquanto eu fazia o controlo anti-doping na baliza do teu golo, e alguém do FC Porto, acho que Teles Roxo, deu-a ao meu pai. Ele sabia que eras o meu ídolo. Foi ele quem me incentivou a ver-te a jogar nos juniores do Sporting, nos dias em que me levava para a RTP, ali na Alameda das Linhas de Torres, ao lado do Estádio José Alvalade. Comecei a ver-te e a encantar-me. PF: Tens quantos anos, Ruizinho? RMT: 45. PF: És um menino. Um menino, Ruizinho. Tinhas quê, uns cinco ou seis quando me viste? RMT: Ya. PF: É essa memória que bate mais forte. Sabes qual é o meu maior prazer? É encontrar uma família do Real Madrid e o meu pai dizer-me ‘o meu filho é do Atlético por tua culpa’. Porque viu-me a jogar naquele tempo em que o Atlético arrasava o Real. Digo sempre isso ao João Félix: ‘se queres ser lenda, deus, tens de rebentar o Real Madrid. E no Bernabéu. Se rebentas em casa, vá, normal. Agora se os rebentas no Bernabéu, és Deus. RMT: Quantos ganhaste lá? PF: Comigo foi 0:4, 0:3 e 0:2, o da final da Taça do Rei. RMT: O 0:4 é no fim-de-semana à eliminação do FC Porto pelo Real Madrid na Taça dos Campeões? PF: Sim, sim. Aquilo foi um banho. Banho mesmo, hã. Ao intervalo, 0:1. No fim, 0:4. E agora para sair de lá? RMT: Do Bernabéu? PF: Ah pois. Batalha campal em Madrid, nem imaginas. Saímos do estádio depois da 1 da manhã e dentro dos carros da polícia, porque o nosso autocarro já estava todo partido. RMT: E que tal a viagem? PF: Fui todo ‘cagado’, havia caixotes do lixo a arder e malta tapada com capuz. Parecia a guerra. Quando cheguei ao Vicente Calderón, agarrei no meu carro e fui a 200 à hora para casa, dasssss. [aparece outro campeão europeu pelo FC Porto] [Costinha] [abraços, elogios] PF: O senhor ministro, g’anda Costinha. Lembras-te da primeira volta do Nacional com ele a treinador? Posse de bola, 50% no Dragão, 50% no José Alvalade, 51% em Braga. Tinha de ter dado aí o salto, foi pena. G’anda Costinha. Onde íamos na nossa conversa, Ruizinho? RMT: [aldrabo à grande] Ganham no Bonfim e? PF: É uma festa imensa, porque percebíamos através do público que o Sporting ganhava ao Benfica na Luz. RMT: Onde não ganhava há 21 anos. PF: Tudo bateu certo nesse dia. Menos no seguinte. RMT: Então? PF: Fui à inspecção da tropa, às oito da manhã, sem Setúbal. Uns cinco mil miúdos ali comigo à espera e prometi camisolas a quase todos eles, jajajajajaja. Levei um massacre. Ainda não havia fotografias nem selfies, eram autógrafos e mais autógrafos e mais autógrafos. Quatro meses depois, recebo uma carta em casa a dizer para apresentar-se ao serviço no dia 1 Maio 1987 em Castelo Branco. Arrependi-me de ter enviado as cem camisolas do FC Porto para o quartel, jajajajaja. RMT: Imagino a azia. E o jogo em casa com o Covilhã? PF: Epá, o Covilhã já tinha descido à 2.ª divisão e fez o jogo da sua vida. Ao intervalo, havia 1:1. Na segunda parte, o Covilhã faz 2:1. Alguns jogadores do Covilhã, uns dois ou três, tinham jogado comigo no Sporting e perguntei-lhes o que era aquilo, estavam a fazer o jogo da vida deles. RMT: E eles? PF: Acho que foi o Germano, acho: disse-me que o prémio da vitória era superior aos ganhos de toda uma época. Foi a primeira vez que ouvi falar de malas. A propósito, já viste aquele documentário sobre os presidentes dos clubes espanhóis nos anos 90? A parte das malas é delirante. RMT: Foi só um susto, o FC Porto ganhou 4:2 e há um golo de categoria do Gomes. PF: Pontapé de moinho, não é? Grande ponta-de-lança e era um líder, sabia falar connosco e com os árbitros. Se nunca fui expulso em Portugal, foi porque havia regras no FC Porto e estava instituído que era o Gomes quem lidava com o árbitro. Só ele, o Gomes. RMT: E o Lima Pereira? Ou o André? PF: Só o Gomes. O Lima falava ao longe. O André falava em campo. Ele chegou e limpou aquilo tudo. Impôs-se com uma facilidade impressionante, muito mais rápido que eu. O André, incrível. �Rui Miguel Tovar RMT: Falávamos há pouco do 8 Schuster, e o 8 Madjer? PF: Estás a ver o nó que ele deu ao lateral-direito no 2:1 contra o Bayern em Viena? Nos treinos, fazia o elástico com a parte exterior do pé. Calma, ainda não acabei. Com a parte exterior do pé direito. E esquerdo. Dasssssss. Nem brinques. O sacana era tramado. Em Espanha, fala-se das joaquilinas, uma finta pseudo-inventada pelo Joaquín. Epá, a sério, não brinquem comigo. O Madjer, minha mãe. Se ele fazia nos jogos, imagina nos treinos. RMT: A vocês? PF: Às vezes, sozinho. Quando o gajo chega ao FC Porto, havia muita desconfiança. Um argelino da 2.ª divisão francesa? Qué isto pá? Bom, bastaram 10 ou 15 minutos do primeiro treino e estávamos todos a olhar para ele. Qu’ésta merda pá? Este gajo é um génio, contratámos um génio. Ainda me lembro da sua estreia, no Restelo. Minha mãe. RMT: Esse Belenenses era bem bom. PF: Jorge Martins, José António, Jaime, todos internacionais. [um empregado do Solar chega à mesa e pede um minuto a Futre para cumprimentar um admirador brasileiro] [elogio para aqui, elogio para ali, selfie-se quem puder] PF: Ruizinho, onde íamos? RMT: O título de campeão em 1986. Depois é a Taça dos Campeões 1987 e aí já entra o Casagrande. PF: O Casão, grande Casão. Bom de bola, jogava na frente e também podia jogar nas alas. Nunca mais me esqueço de uma vez em que fui com ele mais o Celso, o meu grande amigo Celso, um dos melhores que conheci no futebol, a um concerto da grande Simone no Porto. RMT: Agora lembrei-me, o Casagrande lesionou-se gravemente na Dinamarca. PF: Pois foi, o tal gelo. É tramado. RMT: Por falar em lesões, como foi lidar com a ausência do Gomes na final vs. Bayern? PF: Olha, nem sabia o que fazer. Fui à praia de Espinho e andei sozinho na areia. Se já diziam que íamos ser goleados pelo Bayern, sem o Gomes então pfffffff. RMT: Como é que começam em Viena? PF: Quatro defesas, Sousa, André, Quim, Jaime Magalhães e Madjer no meio e eu feito maluco lá à frente. Ao intervalo, sai o Quim e entra o Juary. Aí, o Juary fixa-se na frente e eu mais o Madjer viajamos de um extremo para o outro. Mais tarde, sai o Inácio e entra o Frasco. O Eduardo Luís vai para a esquerda, o André descai para central e vamos a eles. [outro admirador brasileiro, outro selfie-se quem puder] RMT: É o teu último jogo oficial pelo FC Porto, o do Bayern. Depois, Atlético. PF: Depois do meu último jogo pelo FC Porto e antes do meu primeiro pelo Atlético, há um momento épico. RMT: Então? PF: Wembley, selecção do resto do Mundo, ao lado de Maradona. É o famoso dia em que ele pega numa laranja e, sentado, começa a dar toques, tau tau tau tau tau. Com as chuteiras desapertadas, hã? De repente, pára a laranja no pé e levanta-a para a cabeça. Depois, ela desce pelo corpo todo e volta ao pé. E eu a ver aquilo, quietinho e cheio da medo. RMT: De quê? PF: Sei lá, que me pedisse para fazer o mesmo, ó caraças. Estavam todos vidrados, Ruizinho. E estavam lá os melhores: Lineker e Platini. Quando cheguei ao Atlético, também comecei a fazer isso no balneário. Mas com uma bola. Quando a metia na testa, dizia ‘ahora mi amor va a bajar’. A malta delirava, batia palmas, e eu pensava ‘se vissem aquilo do Maradona, começavam a assobiar-me’. Jajajajajaja. Olha, digo-te uma coisa, não consigo ver nada do Maradona. Depois da sua morte, não consigo ver nada. Entra-me uma tristeza cá dentro. RMT: Caraças. Vamos virar a conversa. O teu primeiro golo na 1.ª divisão é a quem? PF: Senhor Vítor. RMT: Hein? PF: Senhor Vítor, sempre tratei o Damas por senhor Vítor [Sporting vs Portimonense]. Sentava-me ao lado dele no Mundial-86 e era um problema quando falava com o Bento ou o Carlos Manuel ou o Diamantino. Como era cá de baixo, falava com eles. Ainda por cima, todos eles moravam perto do Montijo, havia uma ligação, vá. RMT: Era problema, porquê? PF: Jogava no FC Porto, não havia cá confusões nem conversas. Se falasse com algum deles, chamavam-me à atenção. RMT: Não, a sério? PF: Rui, há um jogo nas Antas com a Checoslováquia em que ganhámos por 1:0 ou 2:1. Só sei que o Diamantino marca [é 2:1 e o outro golo é do Carlos Manuel], há a festa da vitória no balneário mas tudo aquilo é falso. No treino seguinte do FC Porto, os gajos só falavam do golo. RMT: Como assim? PF: A conversa era na base do ‘somos oito titulares do FC Porto para três do Benfica e eles é que marcaram o golo, somos uma merda’. Vê lá bem o que era a selecção naquele tempo. Nas refeições, era tudo separado. No autocarro, os do FC Porto iam atrás e os do Benfica à frente. [entra em acção Pedro, filho do Evaristo, para ver se está tudo nos conformes] PF: Olha, o Pedro é que sabe bem: o teu pai foi um dos responsáveis pela união em Saltillo. Ele com a sua guitarra, e há uma fotografia célebre desse Mundial, mais a greve uniram FC Porto e Benfica pela primeira vez. [Pedro fala sobre a ida de Paulo para Madrid e Futre parte-se a rir] PF: Sabes esta? RMT: Nem ideia. [Pedro toma a palavra: Assim como agora temos uma fotografia do Cristiano à entrada do Solar, na altura tínhamos uma foto do Paulinho ao lado das ementas. Um belo dia, entra aqui o médico do Atlético Madrid e o meu pai, relações públicas como é, desfaz-se em elogios. ‘Não sei do que estão à espera para ir buscar o melhor jogador português de sempre’. [Futre assente com a cabeça e só se ri antes de tomar a palavra] PF: De repente, o Evaristo aparece no Porto para falar comigo, acompanhado por um empresário chamado Roberto Dale. Sabes como foram para o Porto? RMT: Nem ideia. PF: De táxi. Falam comigo e, depois, falam com o pintinho. [Pedro toma a palavra, de novo: quando o meu pai ia a entrar no gabinete, dizem-lhe ‘o senhor percebe é de sardinhas e vai lá para fora’] [Futre ri-se, ri-se, ri-se e retoma o fio à meada] PF: Quando o Roberto sai da reunião com o teu pai, o meu valor é 200. Quando o Gil y Gil aparece em Milão para fechar a contratação, depois da final vs. Bayern, já é 400. O Gil y Gil a dizer 200 e o pintinho ‘200? Nãããããã, estás enganado, é 400’. *o prometido é devido, aqui vai a lista dos 13 penáltis provocados por Futre em Portugal, entre todas as competições, de acordo com as crónicas d’A Bola 1984-85 13 Janeiro vs Rio Ave 16 Fevereiro vs Vitória FC 10 Março vs Académica 12 Maio vs Belenenses 1985-86 14 Dezembro vs Estrela Portalegre 2 Fevereiro vs Aves 23 Fevereiro vs Académica x2 20 Abril vs Covilhã 1986-87 17 Setembro vs Rabat Ajax x2 13 Dezembro vs Farense 22 Fevereiro vs Salgueiros