"Portugal deve ter enorme receio da política industrial dos 'campeões europeus'"

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Entrevista a Ricardo Reis

07 jun, 2024 - 01:47 • José Pedro Frazão

Em entrevista à Renascença, Ricardo Reis, professor da London School of Economics, afirma que a Europa está numa encruzilhada que passa pelo clima, pela Defesa e pelos desafios das cadeias de produção. O economista aplaude a estratégia que tem sido seguida pelo Banco Central Europeu para controlar a inflação.

O economista Ricardo Reis diz que Portugal tem razões para recear uma aposta europeia na criação de grandes empresas globais para disputar mercados com os EUA ou a China. Em entrevista à Renascença, o professor da London School of Economics dúvida que a chave da prosperidade industrial europeia passe apenas pela subsidiação.

O financiamento da Defesa está a fazer regressar o debate sobre mecanismos de dívida conjunta na União Europeia, a exemplo dos recursos adotados para os planos de recuperação e resiliência. A proposta consta do relatório do antigo primeiro-ministro italiano Enrico Letta. É um caminho a aprofundar?

Em resposta à pandemia, nós emitimos em 2020 e 2021, pela primeira vez em grande escala, dívida conjunta europeia. Era muito circunscrita a uma determinada aplicação, mas de qualquer forma, criaram-se instituições para emitir essa dívida conjunta. Relembro que era um debate que durava na Europa há pelo menos uma década - senão mesmo há duas ou três - com sérios prós e contras. O "pró" era um grande passo na criação de uma Europa federal. O "contra" remetia para a falta de confiança na integração em diferentes países e o receio de que uns iam acabar por pagar as dívidas dos outros, e ao mesmo tempo que outros iriam gastar demais, porque sentiam menos responsabilidade nos seus planos de despesa.

Tendo atravessado esse Rubicão, não é de admirar que agora, sempre que há uma ideia do que fazer na Europa, se fale desse financiamento com dívida conjunta. Seja quando falamos de política industrial para concorrer com a China ou com os Estados Unidos, seja quando se fala de despesa militar para lidar com a crise na Ucrânia com a invasão russa, seja para reformar a economia europeia, como no caso do Relatório Letta, seja mesmo para lidar com a crise climática.

Para mim, isto mostra, no entanto, que falar desse financiamento é um pouco pôr "a carroça à frente dos bois", ou antes, não focar no essencial. Há sempre múltiplas razões em qualquer Estado, governo ou economia, para gastar dinheiro de uma forma que parece ser útil e, como tal, criar a forma de pedir emprestado para gastar dinheiro atrai muitas atenções. Isso aplica-se a todos.

No entanto, no debate hoje na Europa, seria mais relevante saber se gastar dinheiro nisto ou naquilo será útil e produtivo e se terá retorno. Em vez de falar em formas de financiamento, agora que atravessámos esse tal Rubicão e sabemos que podemos de facto financiar coisas na Europa, é preciso perceber até que ponto é que quando se faz uma proposta, ela seria uma boa ideia ou não. No caso do Relatório Letta, este ênfase em como financiar parece-me mal colocado. Antes seria se devemos gastar nisto ou naquilo.

Essa estratégia pode significar que a aposta em recursos próprios e em novas fontes de financiamento pode ser abandonada?

Em Portugal, nos últimos 30 anos, temos a experiência de falarmos continuamente sobre até que ponto é que a dívida pública nos leva a constrangimentos nas despesas que podemos fazer. Espero que essa experiência nos tenha mostrado aqui em Portugal, senão no resto da Europa, que sempre que achamos que temos algum espaço para gastar, começamos a fazê-lo sem limites, acabando por usar todo o espaço fiscal que teríamos e não necessariamente investindo nas coisas certas.

"Há um lado positivo para Portugal no alargamento da UE, as empresas portuguesas vão beneficiar de mais mercados"

Portanto, mais importante do que discutir se há espaço fiscal na Europa, se se podem levantar recursos próprios e onde os ir buscar, seria pensar até que ponto é que as despesas de que falamos vão ser úteis de facto, vão ter retorno e não vão ser um desperdício de dinheiro.

Em Portugal sabemos muito bem que a ideia de que "temos aqui um dinheiro, vamos gastá-lo depressa" leva a maus resultados. Devemos antes pensar em que em que é que seria de facto útil a gastar dinheiro. Quando ouvimos sobre, por exemplo, muitos investimentos relacionados com a transição climática, estamos a falar de milhares de milhões, muitos deles com apostas em determinada fonte de energia, quando não é claro de todo que outra fonte de energia não será melhor. São milhares de milhões de infraestruturas, em que muitas delas não sabemos se são "elefantes brancos" ou não. Ou milhares de milhões em subsídios para este ou para aquele, muitas vezes só com uma ligação muito dúbia em relação ao clima e na proteção antes de interesses específicos.

Igualmente, quando falamos de relançar a economia europeia, há sempre ideias "maravilhosas" sobre gastar milhares de milhões a proteger determinada indústria, a "criar as condições" para isto ou aquilo crescerem. Mas, olhando com um olhar mais crítico para cada uma delas, não me parece que exista de facto, neste momento, uma que claramente seria um ótimo investimento e um ótimo retorno em dinheiro. Pensar mais nesses termos seria mais importante do que no financiamento em si.

A aposta deve passar por mais subsidiação europeia para que a Europa se torne competitiva no plano mundial?

A economia moderna tem mostrado nos últimos 20 anos que, aparentemente, as indústrias digitais e as tecnologias têm o que os economistas gostam de chamar de "grandes retornos de escala", ou seja, que ser grande no aproveitamento da inteligência artificial ou dos grandes mercados digitais parece trazer, em si, uma vantagem comparativa. Como na Europa temos dificuldade em criar grandes empresas, estamos, de facto, a ficar para trás na competição com os americanos e com os chineses.

Porque é que não somos capazes de criar grandes empresas? Não temos dificuldade em criar empresas. A criação de empresas, incluindo as tecnológicas e as startups na Europa, não está assim tão atrás dos Estados Unidos ou da China. É no processo de ganhar escala que nós, europeus, perdemos a corrida muitas vezes de uma forma muito clara. Temos inúmeros exemplos de empresas europeias, inovadoras, de ponta que, tendo começado na Europa a determinada altura no seu crescimento, mudaram-se para fora da Europa. Isto já agora aplica-se também aos unicórnios portugueses na área das tecnologias.

Isto acontece , não por falta de subsídios na Europa, mas porque os Estados Unidos ou a China conseguiram criar um mercado de capitais - privado, no caso dos Estados Unidos, e público, no caso chinês.

Têm mercados internos grandes com poucas barreiras. Na Europa ainda continua a ser difícil vender na Alemanha, na Bélgica ou em Portugal ao mesmo tempo sem ter de lidar com múltiplas relações inconsistentes.

Em terceiro lugar, os americanos e os chineses conseguiram desenvolver tecnologias de gestão para ganhar escala de uma forma muito rápida.

Quando penso nas razões pelas quais eles têm grandes empresas, não me parece que os subsídios que receberam sejam a razão principal pelas quais as empresas conseguiram ganhar tanta escala e os europeus não.

Portanto, sem excluir que talvez apoios estatais sejam parte desse crescimento, não me parece que seja o principal fator por trás da falta de empresas de escala na Europa.

A aposta em grandes empresas mundiais de origem europeia - os chamados "campeões europeus" - prejudica ou beneficia Portugal?

Portugal deve ter um enorme receio da viragem que na Europa estamos a fazer em direção à política industrial e aos "campeões nacionais" por uma razão simples.

Os "campeões europeus" serão sempre campeões nacionais, porque temos orçamentos nacionais de política industrial, de apoio às empresas e porque há pouquíssimas empresas na Europa que são de facto europeias, em vez de francesas, alemãs, italianas ou mesmo portuguesas.

Num cenário em que temos grandes "campeões europeus" - que na realidade são "campeões nacionais" - eles vão depender em parte dos apoios que cada nação vai dar e das razões que levam ao constrangimento ou promoção de uma grande empresa nacional para se tornar grande a nível europeu.

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Quando falamos de apoios, estamos a falar de orçamentos nacionais e Portugal, com a sua enorme dívida pública, nunca vai poder competir com os apoios que Alemanha ou França darão às suas indústrias. As nossas empresas, mesmo com potencial, não poderão nunca beneficiar de um apoio estatal como uma alemã, francesa ou italiana.

Em segundo lugar, quando falamos de constrangimentos a crescer, por exemplo, tendo a ver com a regulação de mercados nacionais ou mesmo recolha de capitais no mercado, Portugal, sendo uma economia mais pequena, terá sempre mais dificuldades que uma empresa alemã.

Nos últimos 40 anos, como muitas outras empresas pela Europa fora, Portugal tem beneficiado do mercado único. Um dos grandes pilares do mercado único é não permitir políticas industriais nacionais e que as vantagens nacionais em termos de regulação e proteção de mercados nacionais permitam que surjam grandes ‘campeões nacionais’ que depois se aproveitam do mercado europeu, para escoar os seus produtos.

Quando começamos hoje a falar de criação, fomento e promoção de ‘campeões’, repito nacionais e não europeus, que depois se aproveitam do mercado único para ganharem escala. Países como Portugal são os que têm muito a perder.

Isto é um anátema, é o contrário do que foi a construção europeia e do que foi o mercado único do qual temos beneficiado tanto.

Que impacto poderá ter o próximo alargamento?

Por um lado - aquele que é mais enfatizado em Portugal de uma forma até negativa - com mais países a juntarem-se, vai haver menos fundos estruturais para Portugal.

Isto é demasiado enfatizado, porque a ligação dos fundos estruturais e o nosso crescimento é apenas ténue e porque, ao fim de tantas décadas de fundos estruturais, se há algo que deve preocupar-nos é a dependência da nossa estrutura produtiva desses fundos, pelo que talvez alguma escassez de fundos ou pelo menos uma concorrência por esses fundos com outras regiões possa ser útil.

Há um lado positivo no alargamento para Portugal, pois as empresas portuguesas vão beneficiar de mais mercados para vender os seus produtos. Assim como, tendo em conta os fluxos migratórios da Europa, os nossos trabalhadores poderão ir para outros mercados e assim alcançarem a sua prosperidade, tal como trabalhadores qualificados desses outros mercados podem mudar-se para Portugal para reforçar as empresas.

"O BCE tem feito um excelente trabalho. Conseguiu trazer a inflação para baixo"

Portugal já está a chegar a um nível de desenvolvimento económico em que já não somos apenas um país pobre, de mão estendida, cuja preocupação em juntar-se à Europa seria receber fundos. Somos uma economia competitiva, dinâmica com empresas que querem ir para a Ucrânia ou para a Croácia ou para onde for ganhar contratos. Queremos mandar as nossas pessoas - e hoje em dia já emigram tantos licenciados- que podem ir para outros sitos onde podem fazer as suas fortunas.

Somos um país dinâmico que atualmente absorve imigrantes desses países com um desejo de prosperar no nosso país e de fornecer mão de obra que falta às nossas empresas.

O alargamento parece-me mais positivo ao alargar os destinos para os emigrantes portugueses, para os trabalhadores que podem imigrar para Portugal, reforçar as empresas e alargar os mercados de que as nossas empresas podem beneficiar.

Que mudanças admite necessárias na arquitetura institucional europeia? Será necessário mexer nos tratados?

Não sou especialista na arquitetura institucional política da União Europeia e há muitos bons especialistas em Portugal que podem responder a essa pergunta melhor.

No entanto, por ler o trabalho dessas pessoas, parece-me que uma revisão dos Tratados será muito difícil no curto prazo, porque é um processo muito complicado, comprido e difícil.

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Ao mesmo tempo, conforme a Europa se expande, a ter mais dívida pública comum, a abraçar outros desafios e conforme também tem mais membros, há um aperfeiçoamento contínuo da arquitetura institucional europeia.

Como em tudo, envolve avanços e recuos, ganhos e perdas. E daí ser tão importante nestas eleições ao Parlamento Europeu, assim como em geral na relação de Portugal com a Europa, que todos nós, portugueses nos tornemos mais informados destas questões europeias, para podermos perceber melhor até que ponto é que nas reconfigurações - que são continuas mais do que discretas com grandes tratados assinados - de todos os meses e semanas, com a aprovação de diferentes regras, com a preparação do próximo debate europeu e da forma como o podemos influenciar, de forma a que Portugal possa ganhar com essa nova arquitetura que está sempre a mudança, defendendo os seus interesses.

O Banco Central Europeu está a começar a descer as taxas de juro. Que balanço faz do trabalho recente da instituição liderada por Christine Lagarde?

No último ano e meio, o BCE tem feito um excelente trabalho. Conseguiu trazer a inflação para baixo, fazendo muitas políticas, sobretudo nas suas taxas de juro, em relação às quais havia muitos críticos que diziam eram um erro.

O Banco Central Europeu seguiu o cânone da economia e as receitas ortodoxas neoliberais e está a funcionar.

Num ano e meio, conseguimos reduzir a inflação. O BCE manteve o sangue-frio, manteve-se concentrado naquilo que é o seu mandato e a inflação na Europa está neste momento muito perto dos 2%, sem neste processo ter causado a recessão ou o caos que muitos antecipavam.

Portanto, em relação ao último ano e meio a dois anos, Mário Centeno e companhia merecem uma nota, se não 20, pelo menos um 18 ou 19 pelo excelente trabalho em trazer inflação para baixo e resistir aos cantos da sereia dos radicais que apontavam para caminhos pouco ortodoxos, que felizmente não foram seguidos e permitiram o controle da inflação.

No entanto, depois de um período de um ano e meio a dois anos em que o BCE fez alguns erros e perdeu controlo da inflação, seguido de um período de dois anos ou mais em que teve uma excelente tarefa a corrigir esses erros e a trazer a inflação para baixo, o BCE vai ter de refletir nos próximos anos sobre porque é que fez o erro original e porque é que a solução funcionou tão bem.

"Clima, reorganização das cadeias de produção e competitividade e defesa são três desafios existenciais"

Nessa reflexão, há uma parte importante sobre se o BCE, que tinha alargado muito o seu mandato para discutir questões climáticas e para se empenhar muito na proteção do mercado da dívida pública europeia , até que ponto se distraiu daquele que deve ser o seu grande objetivo que é o controle da inflação, aquele que lhe dá a independência que deve ter dentro das instituições europeias. Ou seja, até que ponto é que vamos ter um BCE mais modesto, mais pequeno, mais concentrado na inflação, mantendo assim a sua independência?

E sendo um ator não tão importante como a Comissão Europeia, mas que consegue cumprir aquele mandato, falta saber se, em contrapartida, continuamos com um processo que começou com a crise das soberanas, de um BCE mais alargado, a abraçar mais missões para alem da inflação e com elas a ter de mais frequentemente envolver-se em debates que põe em causa a legitimidade da sua independência e a sua integração com as outras instituições democráticas europeias.

Que grandes desafios identifica globalmente na Europa de hoje?

A Europa está numa encruzilhada e num momento-chave. Há uns anos decidimos ser os líderes mundiais da aposta na transição climática e empenhámo-nos de forma muito clara.

Ao mesmo tempo, com a fragmentação geopolítica entre os blocos da China, Rússia, Europa e os Estados Unidos e a crescente concorrência entre eles, assim como a dependência que nós tínhamos da energia russa, há toda uma reconfiguração das cadeias de produção, das relações económicas e das opções políticas que exigem um enorme desafio sobretudo para a Europa, mais até do que qualquer outra região.

Em terceiro lugar, a ameaça militar russa presentíssima nas nossas fronteiras exige que a Europa, pela primeira vez em muitas décadas, comece a pensar seriamente na sua defesa, no armamento e no seu lado militar.

Temos assim, o clima, a reorganização das cadeias de produção e competitividade e defesa, como três desafios existenciais.

Na defesa, porque podemos ser invadidos pelo senhor Putin. Na recuperação das cadeias, porque estamos, de facto, a ficar muito para trás nos últimos anos em relação aos Estados Unidos e à China. E em relação ao clima, porque tendo chegado à frente, estamos agora a ser ultrapassados pela China, por exemplo, no setor da produção dos carros elétricos.

Temos de facto de pensar muito bem que direção queremos ter nestes três desafios. E nesse sentido, a Europa tem de tomar decisões dentro de cada um destes contextos e, entre estes, qual será o seu maior foco. Estamos numa altura crucial para a Europa.

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