Reportagem por Rodrigo Coimbra, originalmente publicada no dia 23/9/2022 «Só porque existes, não significa que estás vivo» Ano após ano, milhares arriscam a própria vida na tentativa de encontrar a "terra prometida". Segundo dados da Agência da ONU para Refugiados, mais de 3 mil pessoas morreram ou desapareceram enquanto tentavam chegar à Europa por via marítima. Só em 2021. Torres Gomez, um «jovem gambiano determinado, atualmente a residir em Portugal», é o protagonista desta história. É assim que se apresenta, de forma simples, ao zerozero, o dono de uma história de vida i-m-p-r-e-s-s-i-o-n-a-n-t-e. Com todas as letras. Vamos ao encontro dela. Corre o ano de 2016, o jovem Torres tem 16 anos e recebe a oportunidade de uma vida. Graças ao «sacrifício» dos progenitores, que venderam uma pequena parcela de terreno para o ajudar, parte em busca dos seus sonhos ao lado do irmão um ano mais velho. Quatro mil quilómetros de estrada, passando por Senegal, Mali e Níger, lidando com controlos militares, falta de água e comida, até chegarem à Líbia, onde tinham à sua espera uma embarcação de borracha para o mais duro dos desafios: atravessar o Mediterrâneo. Com 138 pessoas a bordo. Desumano. qNão foi uma viagem fácil. Fomos tratados de uma forma desumana... Passámos 16 horas à deriva até sermos resgatados por outra embarcação, que nos levou para uma nova viagem de dois dias até ao desembarque em Itália. Estávamos 138 no barco, muitos perderam a vida pelo caminho... «Para ser honesto, procuro não pensar muito nisso. Faz parte da minha história e serve de lição para o presente e futuro. Se tive medo da morte? A morte não tem idade e não avisa ninguém sobre a sua chegada. Deus tem um propósito para mim e esse propósito ainda não acabou, pois Ele manteve-me vivo até hoje. E não sou melhor do que aqueles que perderam a vida, eu faço apenas parte do grupo daqueles que teve sorte», prossegue. «Graças a Deus, Itália foi uma benção para mim. Conheci novas pessoas e agradeço a oportunidade que o país me deu e todo o apoio que me foi prestado durante os anos que vivi lá», remata. @Massimo Coribello Europa. A tal terra prometida. Tinha acabado de completar 17 anos de vida. Viveu três meses numa unidade hoteleira antes de passar para o cuidado de uma organização que alberga refugiados, onde passou três anos e meio antes de sair para viver com o parceiro de uma vida, e que vida, o irmão Samuel. Durante esta difícil caminhada, o futebol, a sua grande paixão e o espaço onde encontra alegria para a vida, esteve sempre bem presente. Começou por jogar no Refugees Rinascita, equipa de refugiados sediada em Lecce, passou por outros emblemas de escalões secundários do futebol italiano, trabalhando em restaurantes e lojas de fruta para subsistir, até que um empresário amigo do seu treinador em Itália - «é como um pai para mim» - o viu jogar e o trouxe para Portugal, mais concretamente para a AD Fazendense, equipa da AF de Santarém. @Dno Longo Fotografo A felicidade é notória, muitas vezes estampada no rosto, descrita por quem com ele trabalha em Fazendas de Almeirim, contrastando com todas as dificuldades vividas durante a infância, mas quando o tema é a família, que não vê desde 2016, então o sentimento é (bem) diferente. «Claro que sinto saudades de casa. Ainda não voltei à Gâmbia... Comunico com os meus pais por telefone. Como é que eles receberam a notícia da minha vinda para Portugal? Na verdade, ainda não sabem que estou em Portugal, porque não lhes contei. Quero trabalhar em silêncio e surpreendê-los um dia destes como qualquer outra criança gosta de surpreender os pais. Mas tenho a certeza que estão orgulhosos e sempre a rezar por mim», confidencia. @Massimo Coribello Veni, vidi, vici. Chegar, ver e vencer. Que viagem. A história do ser humano Torres absorveu-nos de tal forma que chegamos até aqui sem fazer qualquer referência ao perfil do jogador Torres. O jovem gambiano é avançado, é robusto fisicamente e tem uma disponibilidade mental para o treino fora do comum. No Fazendense, todos o receberam de braços abertos, sem qualquer sentimento de «pena», até porque muitos nem sequer conhecem a sua história de vida. qO clube não o conseguiu inscrever o Torres a tempo para o jogo da Taça, o que foi um duro golpe para ele e para a equipa, mas começamos o campeonato com uma vitória graças a um golo do Torres, no primeiro minuto. O futebol tira, o futebol dá. É como na vida Zé Miguel Dias, treinador da AD Fazendense «O Torres é um miúdo incrível, com uma disponibilidade física e mental para o treino enorme. Temos um grupo de trabalho fantástico que adora o Torres e o acolheu muitíssimo bem. Muitos nem sequer conhecem a história dele, portanto não é por pena ou compaixão. Gostam mesmo muito dele, está sempre a rir», começa por contar Zé Miguel Dias, treinador da Associação Desportiva Fazendense, em conversa com o zerozero. Um atraso na papelada afastou Torres do primeiro jogo oficial da temporada, marcado pela derrota na Taça de Portugal, frente ao Sintrense (1-0), mas o avançado esteve disponível para ir a jogo na primeira jornada da 1.ª divisão da AF Santarém e... Marcou! Isso mesmo, marcou o golo da vitória [veja o vídeo]. «O futebol é mesmo bonito. O clube não o conseguiu inscrever o Torres a tempo para o jogo da Taça, o que foi um duro golpe para ele e para a equipa, mas começamos o campeonato com uma vitória graças a um golo do Torres, no primeiro minuto. O futebol tira, o futebol dá. É como na vida», atira o técnico. Quis o destino que o novo capítulo da história de vida do gambiano fosse passado em Portugal. O presente é na distrital, mas o sonho leva-o para outros voos. E na vida de Torres não há impossíveis. O treinador Zé Miguel Dias @AD Fazendense Voltas e mais voltas. Esta é a história de vida Torres Gomez. Um exemplo. De superação. «O senhor está certo, eu sou um sobrevivente, graças a Deus. Há um ditado que é: «Só porque existes, não significa que estás vivo». Eu ainda estou vivo. Apesar de todas as dificuldades, numa viagem por uma estrada áspera e cheia de pedras, ainda aqui estou... a sobreviver», remata Torres.Em dia de Greve Geral dos Jornalistas, recuperamos alguns trabalhos publicados pela redação do zerozero que tiveram impacto direto na sociedade. Acreditamos que o nosso trabalho pode fazer a diferença e que não há jornalismo sem pessoas para escrever histórias e sem pessoas para as ler. Por um jornalismo melhor e com mais condições para quem escolheu fazer desta nobre arte a sua profissão!
«A minha família ainda não sabe que estou em Portugal»
«O Torres é um miúdo incrível, o grupo adora-o»
Veja o golo de Torres Gomez: