REPORTAGEM | Bodo/Glimt: um «conto de fadas» digno de Football Manager

2 horas atrás 28

Todos os adeptos de futebol já sonharam em tornar o clube da sua vila ou cidade numa potência nacional e europeia, levando-a a ser admirada pelos mais fanáticos adeptos de futebol. Alguns, inclusive, já o fizeram em jogos de computador. Se histórias dessas são abundantes nos jogos na ficção, na realidade é bem mais raro acontecer, sobretudo sem investimento privados e astronómicos.

Mas há um clube que foi mesmo capaz de o fazer, e é o Bodo/Glimt. Um clube que em 2017 estava na segunda divisão da Noruega, subiu em 2018 , foi segunda classificado em 2019 e sagrou-se campeão em 2020. Mas quando todos achavam que o conto de fadas tinha acabado, o clube repetiu o feito em 2021 e em 2023. 

Adversário do SC Braga esta quarta-feira, fomos conhecer o segredo para este sucesso do clube norueguês, que jogo a norte do circulo polar ártico e que subiu a pulso graças a uma cultura muito especial. 

Frode Thomassen, o arquiteto do sonho de Bodo 

O sucesso do clube tem um mentor muito claro, e chama-se Frode Thomassen. Contratado em 2017, este ex-jogador estava a trabalhar no ministério da cultura norueguês, quando este modesto projeto da segunda divisão o chamou para ser CEO do clube. Desde aí, traçou um plano de crescimento que teve, de imediato, uma explosão rumo ao sucesso. Quisemos conhecer o segredo por trás do trabalho de Frode. 

CEO do clube assumiu funções em 2017

zerozero - Qual o segredo por trás de todo este sucesso em apenas sete anos?

Frode Thomassen - Não acho que haja um segredo, mas sim várias coisas que se conjugaram ao mesmo tempo. Tal como todos nos outros negócios, no final de contas é sobre pessoas. Pessoas que se conectam, que caminham juntas com uma ideia e uma ambição do que sonhamos alcançar.  

Desde 2017 que trabalhamos praticamente com as mesmas pessoas no clube: o treinador, o Chairman, eu, o diretor desportivo. As pessoas do clube trazem muita energia positiva. Claro que também terá a ver com a forma como jogamos. Tem sido um conto de fadas. 

Em 2017, o nosso budget total era apenas de 4,2 Milhões de euros. Esta época, sem transferências, já é de 25 Milhões de euros. Isto sem investidores, não temos autorização para isso aqui na Noruega. 

qo nosso budget total era apenas de 4,2 Milhões de euros. Esta época, sem transferências, já é de 25 Milhões de euros

Frode Thomassen, CEO do Bodo/Glimt

 ZZ - Desde que se tornou CEO do clube fez todo este caminho da segunda divisão até aos três campeonatos conquistados, nos últimos quatro anos. Quais foram as suas principais mudanças no clube? 

FT -  Nessa altura ninguém imaginava que pudéssemos ganhar uma Liga da Noruega ou jogar uma Liga Europa. Ter-me-iam chamado um grande sonhador se o tivesse afirmado. 

Não fomos movidos por objetivos, mas sim por trazer qualidade no nosso trabalho diário. Trabalhar afincadamente todos os dias, dar novos passos, pensar mais à frente. O clube é mais sobre cultura do trabalho do que sobre performance. Sabes quando recebes um abraço e sabes que é de verdade, e não algo formal? Isso é o Bodo/Glimt, respeito pelo trabalho das pessoas daqui e uma fome enorme pelo que podemos atingir juntos. 

ZZ - Vocês têm uma visão clara sobre a busca e aquisição de talento. Pode falar-nos qual é a visão do clube? 

FT - Também nessa capítulo é muito sobre cultura. Nós recrutamos sobretudo na Escandinávia (Noruega, Suécia, Dinamarca). Claro que temos jogadores de outras partes da Europa, incluindo até de África, como foi um caso de grande sucesso como do Victor Boniface. Mas acreditamos que o núcleo do plantel tem que se escandinavo.  Neste momento, cinco, seis jogadores do nosso 11 inicial cresceram na nossa academia e são do Norte da Noruega. 

qRecrutamos sobretudo na Escandinávia, Isso permite-nos ter uma cultura

Frode Thomassen, CEO do Bodo/Glimt

Alguns até saíram para jogar em grande clubes da Europa mas quiseram voltar, como o Jens Petter Hauge, Patrick Berg, Fredrik Bjørkan, Ulrik Saltnes. Isso permite-nos ter uma cultura semelhante entre todos, a mesma língua, a forma de se expressarem, isso facilita-nos a vida para tirar o melhor de cada jogador. 

Nikita Haikin passou pelo Nacional da Madeira na época 13/14

Nikita Haikin: do Chelsea ao Nacional da Madeira até à «última chance» no Bodo/Glimt

O guarda-redes russo Nikita Haikin chegou ao clube na temporada de 2019, assumindo-se como titular da equipa desde 2020. Depois de ter feito parte da formação no Chelsea, e de ter seguido o seu percurso no Nacional da Madeira, nos Sub19, nunca se conseguiu fixar como primeira opção em nenhuma equipa por ter passaporte extracomunitário. 

No Nacional da Madeira, em 2013/14, encontrou a solução para poder jogar nos Sub19, numa época em que a primeira equipa, treinada por Manuel Machado, até acabou em quinto lugar no campeonato: «Adorei jogar lá. No final da época colocaram-me a treinar com a equipa principal, o que foi uma experiência incrível porque estavam a fazer uma grande época».   

qO nosso título de 2020 é equivalente ao Rio Ave ou o Estoril ganharem o campeonato em Portugal. Foi algo gigante

Nikita Haikin, guarda-redes do Bodo/Glimt

Da Madeira tem boas recordações, sobretudo da meteorologia e gastronomia «Tenho muitas saudades de Portugal. Lembro-me que o tempo era fantástico, o mar era bom, agora estou num sítio completamente diferente com frio e inverno (risos). Não me sai da cabeça aquele bebida gaseificada de maracujá. As pessoas são fantásticas e continuo em contacto com alguns companheiros».

 Desde a baliza tem sido pedra basilar do sucesso do clube Noruguês, mas o bilhete de ida para Bodo foi uma tirada de sorte numa carreira que parecia perdida: «A minha carreira foi de altos e baixos, mas a chegada ao clube foi quase a minha última oportunidade. Estava sem clube há muito tempo, ninguém me queria, fiz muitos trials em 2019, não recebia e estava a pensar em terminar a carreira. Vim para segundo guarda-redes e se me dissessem que iria terminar a ganhar o que ganhei, seria uma grande surpresa.» 

Com tanto conhecimento do futebol português, pedimos ao guarda-redes russo que não fizesse uma comparação: o Bodo/Glimt ser campeão, seria o equivalente a quê em Portugal? Depois de uma pequena reflexão, a resposta foi clara: «O nosso título de 2020 é equivalente ao Rio Ave ou o Estoril ganharem o campeonato em Portugal. Foi algo gigante».

Schjelderup começou a formação no Bodo/Glimt mas saíu cedo para os rivais do Nordsjælland @Catarina Morais / Kapta +

Andreas Schjelderup, um «filho» do Bodo que surgiu cedo de mais

Há um filho da terra que está a levar Bodo para o mundo, mais particularmente até Portugal: Andreas Schjelderup, jogador do SL Benfica, nomeado para Golden Boy 2024, começou o seu caminho na academia de formação do Bodo/Glimt. No entanto, parece ter surgido cedo demais, em 2019 e 2020, precisamente na altura em que o clube estava a fazer a sua transição para a nova gestão e para a fase vencedora em que se encontra.  

qSe fosse hoje, ele seria um caso que sobrevivia num clube como o nosso

Frode Thomassen, CEO do Bodo/Glimt, sobre Schjelderup

«O Schjelderup surgiu numa altura em que não tínhamos este sucesso. Ele tinha 15 para 16 anos, um enorme potencial, e percebeu que o Nordsjælland era o clube certo para crescer. Mas os primeiros dez anos da sua carreira foram aqui, por isso reconhecemo-lo como um menino do Bodo/Glimt. 

Apesar de agora a exigência ser ainda maior, devido às competições europeias, se fosse hoje, ele seria um caso que sobrevivia num clube como o nosso.»  

Treinador dos noruegueses começou o percurso desde a segunda divisão @Getty /

Kjetil Knutsen, o mesmo treinador do fundo até ao topo

É uma história rara de sucesso e longevidade, mas novamente, acontece em Bodo: Kjetil Knutsen é o treinador principal do Bodo/Glimt há sete temporadas, estando no clube há oito épocas. Entrou como treinador-adjunto, na temporada em que a equipa subiu à primeira divisão, e desde então tornou-se o treinador principal que conquistou três ligas, estando agora próximo de agarra a quarta esta temporada. 

O CEO Frode Thomassen fala num «casamento perfeito» entre clube e treinador: «Desde que continuemos a ter condições para competir, o Kjetil vai querer continuar aqui. É um bom lugar para ele estar, tem sido importante para o nossos sucesso. Estamos agradecidos que ele queira continuar aqui, porque há projetos atentos para o levar, mas ele tem querido fazer parte desta história de sucesso. 

Bodo/Glimt venceu o FC Porto por 3-2 no jogo de estreia na Liga Europa 2024/25 @Getty Images

«A vitória contra o FC Porto é a nossa maior conquista» 

As noites ambições europeias do Bodo/Glimt esbarraram sempre nas portas de entrada da Champions League, onde estiveram quase a qualificar-se por duas vezes, mas nunca conseguiram. Em 2022, o clube tocou no pico da montanha europeia, quando caiu do Play-Off da Liga Milionária frente ao Dinamo Zagreb, mas jogou a fase de grupos da Liga Europa com PSV, Zurich e Arsenal.   

qSerá uma vitória para os livros do futebol Norueguês.

Frode Thomassen, CEO do Bodo/Glimt, sobre o jogo com o FC Porto

No entanto, foi em 2021 que teve a vitória que chocou a Europa: um triunfo caseira por 6-1 frente à Roma de José Mourinho, que para o CEO do clube, só foi superado pela mais recente vitória frente ao FC Porto: «Foi a nossa maior conquista. Os clubes sabem que somos competitivos, mas ter a oportunidade de jogar contra o FC Porto e ter uma grande performance contra um clube que pertence à Champions League foi enorme para nós

São apenas 55 mil habitantes nesta cidade, para esta gente foi uma noite de grande orgulho. Será uma vitória para os livros do futebol Norueguês. Não é só sobre futebol, é sobre orgulho e identidade das pessoas do clube». 

Para o guarda-redes Nikita Haikin, a vitória foi analisada de forma mais fria e estratégica: « Houve dois momentos-chave: não nos deixarmos abalar pelo golo sofrido, e a reação que tivemos ao cartão vermelho. Foi muito maduro e profissional da nossa parte, obrigá-los a cometer erros. Foi muito bom». 

Bodo/Glimt joga em relvado artificial devido às temperaturas da região @Bodo/Glimt

Jogar no circulo polar: uma realidade paralela 

A localização da cidade de Bodo, a norte da Noruega, faz o clube jogar a norte do circulo polar ártico. Um desafio enorme não só pelas frias temperaturas que se fazem sentir, mas sobretudo pelos fenómenos naturais que ocorrem nesta região: há pelo menos um dia por ano de luz absoluta durante 24 horas, mas também um dia por ano em que não amanhece. 

As temperaturas, muitas vezes negativas, obrigam a equipa a ter um relvado artificial, pois é impossível tratar um relvado natural nestas condições. Mas tudo isto traz grandes desafios para dirigentes e jogadores, que só o sucesso desportivo ajuda a mitigar.   

qÉ uma experiência surreal, um lugar único. No inverno vemos a aurora polar, o sol não se põe no verão

Nikita Haikin, guarda-redes do Bodo/Glimt

zerozero- É fácil convencer os jogadores a virem jogar para uma zona com condições tão especificas no planeta? 

Frode Thomassen (CEO) - Se me perguntasse isso em 2017/2018 eu diria que estava a ser muito difícil. Metade do dia no inverno é totalmente escuro. Mas quando tens sucesso, grande parte dos jogadores querem jogar jogos europeus, isso faz de nós atrativos para jogadores escandinavos, porque querem estar nesses cenários e mostrar o potencial para no futuro darem passos maiores na carreira. 

Nikita Haiden (guarda-redes) -  É uma experiência surreal, um lugar único. No inverno vemos a aurora polar, o sol não se põe no verão. É mesmo um lugar especial. 

Aqui não há grandes distrações, é um sítio muito pequeno, o que te obriga a estares mais focados, desenvolver-te mais. Uma das características da região é mesmo essa, ser mais caseiro, mais tranquilo, calmo,  É um excelente lugar para estar e elevar os nosso níveis futebolísticos. 

A única coisa menos boa é que toda a gente te conhece em todo o lado, não há privacidade, não podes ser tu mesmo. 

Claro que o clima, por vezes, é muito difícil. Uma vez começou a nevar muito a meio do jogo, tivemos que sair do campo e ficamos mais de meia hora à espera de poder jogar. 

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