REPORTAGEM| Eis a primeira equipa feminina açoriana em provas nacionais: «Vamos ser a capital do futebol feminino»

3 dias atrás 44

A evolução, importância e magnitude do futebol feminino em Portugal é de reconhecimento geral. As provas da qualidade do mesmo também se sucedem - por exemplo, recentes campanhas lusas na UWCL. O caminho foi longo, mas, apesar de ainda haver estrada para andar, está no seu apogeu. Nos Açores, está a dar os primeiros passos.

Passos, até agora, suportados pela força de vontade de centenas de pessoas. Outro passo - de gigante - para o crescimento da modalidade foi dado recentemente. No começo da temporada 24/25, o Vitória Clube do Pico da Pedra anunciou a participação na Terceira Divisão. História feita: pela primeira vez, uma equipa açoriana vai marcar presença num campeonato nacional feminino.

Para compreender todos os contornos da história feita, o zerozero «viajou» até aos Açores e falou com o presidente do clube - Ricardo Estrela - e o treinador da equipa - Diogo Borges -, os dois obreiros deste fenómeno.

O começo: embalados pelo exemplo do FC Porto

«Com o passar do tempo, houve um elevado número de atletas femininas a entrar no clube, mas depois iam desistindo. Na altura, era futebol misto e, com os meninos, elas iam jogando pouco e, por isso, desistiam. Criámos equipas só femininas para que elas não desistissem», começou por explicar o presidente Ricardo Estrela.

«O nosso projeto no feminino começou há quatro anos, só com uma equipa feminina. No ano passado, já tivemos quarto equipas - duas de juvenis e duas de infantis, só que só jogavam umas contra as outras, por isso a competitividade era muito pouca. Este ano, já com algumas em idade de júnior, decidimos pegar nas mais aptas e criar uma equipa que fosse competir no campeonato [de ilha] de seniores; as outras equipas na competição eram o Bota Fogo e o Benfica Águia. Ou seja, as nossas juniores competiriam contra essas séniores: era o objetivo para este ano», continuou.

«Por acaso, estava a ver as notícias e reparei na criação da equipa feminina do FC Porto. Aí, pensei: "Tudo bem que eles são um clube grande, mas têm de começar por baixo". Vi que iam começar na Terceira Divisão e pesquisei os requisitos para entrar na prova. Era aberto a todas as equipas e, por isso, mandei a notícia ao presidente, para saber se o clube estava preparado a dar esse passo e se não ia hipotecar o futuro. O presidente, como é uma pessoa que gosta de bons projetos e de tudo o que faça evoluir o clube, aceitou. Candidatamo-nos e cá estamos nós», rematou o jovem treinador Diogo Borges.

A preparação: fácil recrutamento e o foco na responsabilidade

«Todos os dias aparecem atletas novas. Ainda ontem apareceu uma menina com 10/11 anos, que jogava num clube aqui dos arredores, no futebol misto; a mãe foi ter connosco e disse-nos: "Ela está a crescer, começa a jogar pouco com os meninos e o único clube que tem um projeto de futuro para ela é este, o Vitória Clube do Pico da Pedra". Trouxe a menina cá e agora ela está connosco. É um exemplo, o recrutamento tem sido fantástico», desvendou-nos, notoriamente satisfeito com a situação, o presidente.

Dentro de campo, a pré-época já começou e Diogo Borges revelou-nos os detalhes deste plantel extremamente jovem: «A minha ideia sempre foi aproveitar a prata da casa. São jovens com talento e precisam destas novas experiências e desafios. Contudo, sabemos que um plantel composto só com atletas jovens... Não é fácil, por isso a minha ideia foi aliar a juventude com alguma experiência. Ainda assim, aliando as duas coisas, a nossa média de idades é muito baixa.»

«Estamos em pré-época há cerca de um mês. Elas sabem que vão para uma realidade completamente diferente, mas só lhes peço compromisso, vontade de aprender e empenho. Se competíssemos no Campeonato de São Miguel, já íamos ter responsabilidades; no Campeonato Nacional, o nível acresce - vão representar um clube, uma ilha e uma região inteira», relembrou o técnico.

O orgulho mesmo antes da competição

O início oficial da competição ainda está algo distante. Para o Vitória CPP, começa a 29 de setembro, em casa, diante do Ponte Frielas. Contudo, o orgulho já invadiu o peito dos locais, sobretudo dos dois entrevistados, que se sentem motivados por fazer parte do processo evolutivo do futebol feminino na região.

Fotografia da apresentação da equipa sénior feminina do Vitória CPP 24/25 @Arquivo pessoal

«O Município e a Câmara da Ribeira Grande vão-nos apoiar muito na Terceira Divisão. O Município é conhecido por ser a capital do surf nos Açores. Eu já disse ao Presidente da Câmara: "Além da Ribeira Grande ser conhecida como a capital do surf, vai ser conhecida também como a capital do futebol feminino"», revelou-nos o presidente, entusiasticamente.

«Estamos limitados em termos de campos - só temos um - e, no futuro, mais facilmente fecharei equipas masculinas do que fecharei equipas femininas. É esse o nosso caminho. Queremos apostar muito no futebol feminino e, quiçá daqui a três/quatro anos, termos 50 por cento de homens e 50 por cento de mulheres. Esse é o objetivo.», continuou, garantindo que, no Pico da Pedra, o feminino veio para ficar.

«É um orgulho enorme para o clube, para as atletas e para mim. Vamos ser a primeira equipa açoriana a representar o futebol feminino em competições nacionais. É uma responsabilidade acrescida, mas penso que é um passo importante, nem que seja para combater as desigualdades que existem em termos de futebol masculino e futebol feminino. Só desta forma, a competir, é que conseguimos combater isso», relembrou o treinador.

Como em tudo, as dores de crescimento

Pelo decorrer da peça, pelo entusiasmo dos intervenientes e pela história - a ser escrita em tempo real -, pode parecer, mas nem tudo neste projeto é um mar de rosas. Ricardo Estrela e Diogo Borges exprimiram algumas das dificuldades sentidas, quer na gestão, quer com as jogadoras.

«A [dificuldade] do campo é a principal. Temos 17 equipas da formação; o campo está mesmo a rebentar pelas costuras. Já fazemos alguns treinos num pequeno campo de "futebol cinco" que temos nas imediações, o que não é o ideal, de todo. Já pedimos para treinar no Campo Municipal da Ribeira Grande e foi-nos negado. Por isso tudo, os terrenos de jogo são, neste momento, um entrave grande.

Outro, são os balneários. Só temos dois balneários e é muito difícil coordenar para as meninas e os meninos usufruírem em condições. Tivemos de nos socorrer de uns balneários paralelos, que temos aqui na Casa do Povo.

A terceira está relacionada com as deslocações na Terceira Divisão. Nem o Governo nem a Federação nos apoiaram nas viagens. Tivemos de nos desenrascar. A Associação de Futebol de Ponta Delgada vai oferecer uma viagem, mas de resto estão todas a cargo do clube. No final da época, a Câmara da Ribeira Grande vai-nos pagar o valor correspondente às passagens, mas até lá... Muitos dos treinadores já se ofereceram para receber só no final da época para que, ao longo do ano, use o dinheiro que era para pagar aos treinadores nas viagens, no alojamento e na alimentação. É um projeto de todos e toda a gente está muito contente com isso», expôs o presidente.

«Por cá, temos muito o estigma de nos compararmos com a jogadora de Portugal Continental. Elas, por vezes ficam com esse receio: "Será que estou capacitada para competir lá fora? Não sei se sou tão boa como as outras". Elas próprias criam esses medos em si, criam barreiras. Por isso, a grande dificuldade até é mais mental, neste momento», garantiu o treinador, sobre o plantel que tem em mãos.

Mariana Cabral, a «madrinha» que serve de exemplo

Falar de futebol feminino e do Pico da Pedra é, inegavelmente, falar de Mariana Cabral. A atual treinador principal do Sporting, uma das maiores referências do futebol feminino português, nasceu e cresceu no Pico da Pedra. Por isso e por manter uma forte ligação com o clube da terra, Mariana Cabral é adorada e idolatrada por todos no clube. 

«Ela é a madrinha do futebol feminino do Vitória Clube do Pico da Pedra. Há quatro anos atrás, quando pensámos em começar com as equipas femininas, contactei a Mariana pessoalmente e ela disponibilizou-se logo. Fez dois ou três treinos no Pico da Pedra enquanto estava de férias e foi acompanhando sempre.

Mariana Cabral, treinador do Sporting, é natural do Pico da Pedra @FPF

Foi, inclusive, a primeira a saber que íamos para a Terceira Divisão; ficou extremamente contente. Faz questão de, se tiver oportunidade, ir ter com a equipa quando formos ao continente jogar. Tem apoiado e é uma referência para todas as pessoas que estão connosco», apontou o presidente do clube açoriano.

«A Mariana começou como elas [jogadoras do Vitória CPP] todas. Veio da ilha e mostrou ao país que nós cá também temos qualidade. Por isso, claro que é uma referência para nós. É uma pessoa que saiu cá do Pico da Pedra e chegou ao patamar mais alto do futebol feminino português. Elas [jogadoras] todas conhecem-na, sabem que é uma referência e um exemplo a seguir. Demonstrou que, com trabalho e independentemente das origens, é possível chegar lá acima», relembrou o treinador de 24 anos.

Vitória, vitória, como vai correr esta história?

Sem euforias, com os pés bem assentes na terra. Cientes das capacidades, o objetivo de presidente e treinador - consequentemente, do clube - é aprender e, depois, crescer firmemente.

«O primeiro ano vai servir, acima de tudo, como aprendizagem. Vai ser importante para elas terem conhecimento da realidade do futebol feminino lá fora [em Portugal Continental]; está mais desenvolvido que o nosso, mas isso faz parte.

Podem esperar da nossa parte - e dentro das nossas limitações - uma equipa muito aguerrida e a entrar em qualquer campo para tentar conquistar os três pontos. Só assim faz sentido», reconheceu Diogo Borges.

«Esta temporada será muito difícil. Vamos ter oito seniores no plantel, seis a sete juniores, mais cinco juvenis e quatro iniciadas. Estamos a falar de uma equipa muito jovem, que vai lutar contra equipas com outra maturidade. Portanto, só esperamos que elas consigam aprender e usufruir ao máximo dessa experiência na Terceira Divisão.

Internamente, vamos ter uma equipa B que vai competir no Campeonato de Ilha. As mesmas atletas podem jogar na Terceira Divisão e no Campeonato de Ilha. Isto para, na próxima época, caso vençamos o Campeonato de São Miguel, subirmos à Quarta Divisão. 

Temos de ser realistas. Com este panorama, estão 77 equipas e só 12 ficam na Terceira Divisão. Está muito distante das nossas possibilidades. Por isso, para que depois consigamos estar na Quarta Divisão por mérito, é necessário sermos Campeões de São Miguel. Aí sim, teríamos as passagens pagas pelo Governo. Tudo isto para dizer que, além de querermos que a Ribeira Grande seja a capital do futebol feminino, queremos ser um pouco como o Marítimo é na Madeira. O Marítimo domina completamente o futebol feminino na Madeira e vamos tentar trilhar o nosso caminho», desejou Ricardo Estrela.

O Vitória Clube do Pico da Pedra está no Grupo L da Terceira Divisão e, além do Ponte Frielas, partilha o grupo com o Sintrense, o CAC, o Arsenal 72 e o Bobadelense.

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