Sete mulheres podem liderar na UE, mas "pode não se traduzir na defesa dos direitos e da igualdade"

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Eleições para o Parlamento Europeu

29 mai, 2024 - 06:23 • Salomé Esteves

As mulheres tendem a abster-se mais nas eleições europeias, a preocupar-se com direitos humanos e dizem ser menos interessadas em política. Na União Europeia, a igualdade de género “está mais avançada”, mas o crescimento da extrema-direita pode alienar liberdades e direitos já garantidos. A Renascença falou com Paula Espírito Santo, professora e investigadora, e com Catarina Peyroteo Salteiro, assessora do Parlamento Europeu.

Os grandes cargos da Europa podem ser ocupados por mulheres este ano. Entre a “recompensa” da representatividade feminina e a tradicional abstenção portuguesa nas europeias, que papel têm as mulheres nestas eleições? Depois de cinco anos em que a igualdade de género foi uma bandeira da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o “progresso” dos direitos das mulheres e das minorias pode estar sob ameaça pelo crescimento da extrema-direita.

A poucos dias das eleições europeias de 9 de junho, “é expectável que as mulheres venham envolver mais na política europeia”, diz Paula Espírito Santo, professora de Ciência Política no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Segundo a politóloga, “as mulheres são participativas”, “na sequência de uma caminhada para uma maior equalização do ponto de vista do género”.

Mas Catarina Peyroteo Salteiro, assessora do Parlamento Europeu, não vê os próximos cinco anos do Parlamento Europeu com muita esperança, por acreditar que este mandato será “mais de defesa dos direitos humanos e das mulheres já garantidos do que de progresso”.

“A União Europeia é a região do mundo em que a igualdade de género está mais avançada”. É com esta ideia que a OXFAM abre o relatório sobre o feminismo no Parlamento Europeu entre 2019 e 2024. Contudo, o mesmo documento não deixa de notar que o progresso para a igualdade de género abrandou ao longo de quatro anos de grandes crises na Europa, como a pandemia de covid-19 e a invasão da Ucrânia.

Durante os próximos meses, os grandes cargos da Europa podem ser atribuídos a mulheres. Basta que Kaja Kallas, primeira-ministra da Estónia, substitua Josep Borell como alto representante da UE para a Política Externa e de Segurança e que Mette Frederiksen, primeira-ministra dinamarquesa, assuma a liderança do Conselho Europeu, hoje encabeçado pelo belga Charles Michel.

Ursula von der Leyen foi eleita presidente da Comissão Europeia nas últimas eleições europeias e concorre de novo este ano. Foi a primeira mulher a assumir o cargo, a instaurar uma estratégia europeia para a igualdade de género e a criar uma Comissão para a Igualdade, liderada por Helena Dalli.

Já no Parlamento Europeu, Roberta Metsola é a terceira mulher a ocupar o cargo, depois de Simone Veil (1979-1982) e de Nicole Fontaine (1999-2022) terem servido o mesmo posto.

Nas instituições económicas, Christine Lagarde assumiu a presidência do Banco Central Europeu em 2019, por oito anos, e Nadia Calvino está à frente do Banco Central de Investimento desde 2023.

Apesar de estas mulheres assegurarem as posições de maior destaque, quem atualmente lidera do Comité para os Direitos das Mulheres e Igualdade de Género (FEMM) é um homem: o polaco Robert Biedrón, ativista pelos direitos da comunidade LGBTIQA+.

Paula Espírito Santo, professora e investigadora em Sociologia Política, acredita que a ascensão de mulheres a cargos de tamanha visibilidade internacional é “um elemento importante para estimular mais a participação das mulheres, quer de um ponto de vista pessoal e profissional, quer também no contexto político”. Para a professora, este destaque de figuras femininas na Europa acaba por se tornar numa “recompensa" porque, “pelo menos durante este século e no anterior, nós não temos tido uma permanência e a assunção de cargos de relevo do ponto de vista de topo”.

Vários estudos demonstram que a eleição de mulheres para grandes cargos de governo alimenta o envolvimento, interesse e conhecimento sobre política nacional e europeia, especialmente se essas mulheres no poder demonstrarem iniciativa em melhorar a qualidade de vida das cidadãs. Mas, lembra Catarina Salteiro, “temos mulheres líderes [...] à frente de movimentos que não defendem os direitos das mulheres como nós conhecemos”.

“Temos mulheres líderes [de extrema-direita] como Giorgia Meloni ou Marine Le Pen à frente de movimentos que não defendem os direitos das mulheres como nós conhecemos”, sublinha.

Em 2015, a agora presidente do Parlamento Europeu (PE), Roberta Metsola, assinou uma carta aberta com outros políticos malteses que se manifestavam “categoricamente contra o aborto”. Sob um Governo conservador, a prática é completamente ilegal em Malta, ao contrário do que acontece em todos os restantes Estados-membros. Sete anos depois, Metsola, já em funções no PE, admitiu que a sua posição sobre a interrupção voluntária da gravidez era a “posição do Parlamento Europeu”, depois de, em 2021, uma maioria de eurodeputados ter votado a qualificação do acesso seguro ao aborto como um direito humano.

Mas o conservadorismo em figuras femininas de poder não é restrito à presidente do Parlamento Europeu. Uma das maiores figuras da extrema-direita europeia é, aliás, uma mulher: Marine Le Pen, que foi eurodeputada entre 2014 e 2017.

Agora, Le Pen convidou a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, a formar um mega-grupo de direita no Parlamento Europeu. Atualmente, o partido de Le Pen integra o Identidade e Democracia (ID), o mesmo grupo do Chega, e o de Meloni, os Reformistas e Conservadores Europeus (ECR), à esquerda do primeiro. Acontece que também Ursula von der Leyen discutiu com Meloni a possibilidade de integração no Partido Popular Europeu (PPE), grupo de centro-direita que lidera. Em resposta, Meloni apenas disse que não faria parte de uma solução à esquerda.

Paula Espírito Santo lembra que o sexo de uma figura política não vem, por si só, “preconizar maior liberdade, maior capacidade de entendimento dos direitos cívicos ou melhor reforço da própria democracia” e que pode não ser reflexo de um posicionamento progressista ou à esquerda. Para a professora, “quando nós observamos as mulheres ou os homens no exercício de funções e cargos de relevo, temos também de contextualizar as suas próprias políticas ou o seu entendimento dos direitos, das liberdades, das garantias, do ponto de vista democrático”.

“Quando nós observamos as mulheres ou os homens no exercício de funções e cargos de relevo, temos também de contextualizar as suas próprias políticas ou o seu entendimento dos direitos, das liberdades, das garantias, do ponto de vista democrático”

Catarina Peyroteo Salteiro concorda que a relação entre a representatividade de mulheres em grandes cargos europeus é fundamental para motivar mulheres de “todas as idades que sempre se sentiram afastadas da política e que acharam que era um conceito de e para homens”. Contudo, concorda que o envolvimento feminino na política, por si só, “pode não se traduzir proporcionalmente na intensidade da defesa dos direitos e da igualdade”.

Um estudo da Universidade de Cambridge refere que “quanto mais uma sociedade adere a normas e estereótipos tradicionais, mais a política é tratada como domínio dos homens”. Os autores vão mais longe ao afirmar que o interesse na política, que se manifesta em maior ou menor participação em eleições, deriva, ainda, de perceções culturais sobre os papéis das mulheres e dos homens na política e na sociedade.

Mulheres votam menos nas europeias

O estudo pós-eleitoral do Eurobarómetro sobre as eleições europeias de 2019 concluiu que os homens têm menos confiança nas instituições europeias ou estão mais desagradados com a sua atuação, enquanto as mulheres se dizem menos interessadas em política, no geral.

Além disso, as motivações para votar também tendem a ser diferentes. O mesmo estudo pós-eleitoral concluiu que o que leva os homens a votar nestas eleições são as políticas de crescimento económico, enquanto as mulheres se preocupam mais com o futuro da União Europeia e com a preservação dos direitos humanos e da democracia.

A investigação da Universidade de Cambridge mostra que também há diferenças na predisposição para votar, consoante as eleições sejam de primeira ou de segunda ordem. Em eleições nacionais para a Presidência ou para a Assembleia da República – atos eleitorais de primeira ordem - as mulheres votam tanto ou mais do que os homens. Contudo, nas eleições europeias, mais distantes para os votantes, acontece o oposto. Entre 2009 e 2019, votaram sempre mais homens nas europeias do que mulheres.

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De facto, um outro estudo pós-eleitoral das eleições de 2014, feito pela Universidade de Maynooth, na Irlanda, mostrou que as mulheres só votam mais do que os homens, nas eleições europeias, em Malta, na Sérvia, nos Países Baixos na Letónia e na Eslovénia. Em Portugal, nesse ano, cerca de 40% dos homens votaram, em oposição a cerca de 28% das mulheres. Portugal e França foram os países em que esta diferença foi mais acentuada, ainda que os franceses votem mais: 37% de mulheres e 49% homens votaram nas europeias de 2014.

O European University Institute prevê que o padrão continue e que a abstenção das mulheres seja mais elevada do que a dos homens. Paula Espírito Santo desvaloriza a diferença, por estes estudos tratarem subamostras que podem não ser representativas da população votante que, em Portugal, “é muito baixa” e ronda os 30% para as eleições europeias.

A politóloga acredita que “talvez tenhamos alguma mobilização mais do que aquela que tivemos nos últimos anos”, devido a assuntos prementes como a guerra na Ucrânia e o crescimento de extremismos. Catarina Salteiro também sublinha a maior participação política das mulheres e de homens, particularmente dos jovens, em prol da igualdade de género, mesmo numa posição “apartidária”, em “marchas, manifestações ou grupos de cidadãos temáticos”.

Mulheres votaram mais à esquerda pela segunda vez consecutiva numas legislativas

Para a equipa de investigação responsável pelo relatório “Uma Europa Feminista?” da OXFAM, o crescimento da representação dos partidos de extrema-direita e da direita radical nos Estados-membros e no Parlamento Europeu é um dos fatores que mais pode influenciar a mobilização do eleitorado feminino nestas eleições europeias.

As autoras acreditam que estes partidos têm, na sua génese, ideais conservadores que ameaçam os direitos das mulheres e que podem atrasar o progresso da igualdade de género na União Europeia. Mas a equipa também prevê que, sentindo que a sua liberdade individual está sob ameaça, as mulheres venham a ter uma participação mais ativa na política, especialmente à esquerda.

Catarina Peyroteo Salteiro não está confiante que o medo da reversão de direitos se traduza em votos ou em ação política concreta. E acrescenta: “eu gostava de acreditar que, quando as mulheres veem os direitos alienados, nós optamos por ter uma voz cada vez mais ativa através da participação política, mas eu não sei se isso se materializa”.

“Eu gostava de acreditar que, quando as mulheres veem os direitos alienados, nós optamos por ter uma voz cada vez mais ativa através da participação política, mas eu não sei se isso se materializa”.

O eleitorado dos partidos de extrema-direita e de direita radical é tendencialmente mais masculino, como comprovam várias investigações e estudos pós-eleitorais recentes. Tanto em Portugal como em Espanha, o Chega e o Vox receberam significativamente mais votos de homens do que de mulheres, cujas intenções e tendências de voto se inclinam mais para a esquerda.

Mas não é apenas no eleitorado dos partidos de extrema-direita que existem diferenças de género. As famílias parlamentares da ID e da ECR são as mais desiguais em termos de género. Enquanto o Identidade e Democracia tem 37% de eurodeputadas, as mulheres representam pouco mais de um quarto do grupo dos conservadores e reformistas. Do lado oposto, surgem os Verdes (Greens/EFA), cuja bancada é preenchida por 51% de mulheres.

Ao olhar para a mesma proporção em cada um dos Estados-membros, Portugal está em sétimo lugar na representação de mulheres no Parlamento Europeu. As eurodeputadas compõem 48% da equipa portuguesa, a par dos Países Baixos. Os dados são do Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE).

As listas de candidatos dos partidos às eleições europeias também devem obedecer à Lei da Paridade. Isto quer dizer que as listas devem ter pelo menos 40% de pessoas de cada um dos sexos. Portugal não está sozinho nesta política. Também a Bélgica, Grécia, Espanha, França, Croácia, Itália, Luxemburgo, Polónia, Roménia e Eslovénia têm um sistema de quotas para assegurar uma representação de género equitativa.

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