Sete perguntas sobre a Farfetch: entre a espada da insolvência e a parede da liquidação pela Amazon coreana

9 meses atrás 135

Com o passar dos anos, a Farfetch foi deixando o modelo que lhe permitiu tornar-se numa empresa atrativa para investidores, dada a sua estrutura mais leve, com muito menos custos logísticos, e o seu pendor puramente tecnológico. A estratégia de José Neves começou recentemente a passar por aquisições de retalhistas de moda e de fabricantes de bens, incorporando na estrutura negócios mais pesados e até estranhos à filosofia da empresa. Por exemplo, comprou em 2021 a plataforma de revenda de artigos de luxo Luxsclusif e a retalhista de produtos de beleza Violet Gray, no início de 2022; e anunciou o investimento até 200 milhões de dólares (182 milhões de euros ao câmbio da altura) numa participação minoritária na retalhista norte-americana de luxo Neiman Marcus, cujos grande armazéns não podiam estar mais longe da agilidade que a primeira Farfetch prometia.

Apesar do otimismo, José Neves reconhecia que o negócio tinha de ser reestruturado. Na apresentação de resultados do terceiro trimestre de 2022 (que fechou com perdas de 274 milhões de dólares e com um crescimento de apenas quase 2% nas receitas), José Neves dizia que era época de proceder a uma “reestruturação da operação”, reduzindo despesa; mas vaticinava que a Farfetch iria “emergir deste período com um negócio ainda mais forte” e que a empresa estava ”bem encaminhada para duplicar em três anos", apesar de estar a lidar com o resultado de "uma série de eventos sem precedentes”. Desde então, a empresa tem reduzido o número de trabalhadores e tomado medidas como a saída do Boavista Office Center, um espaço de escritórios que ocupava desde 2019.

A Athena Topco, uma sociedade veículo registada no paraíso fiscal do Delaware, liderada pelos sul coreanos da Coupang, com uma participação de 80,1%, em parceria com a gestora de investimentos Greenoaks, que tem sede nos EUA, é apresentada como especialista em investimentos de longo prazo e criação de parcerias que duram décadas e detém os restantes 19,9%. Conhecida como uma espécie de Amazon da Coreia do Sul pela sua força no retalho online, mas sem grande experiência no comércio de luxo, a Coupang tem negócios em diferentes áreas, do streaming, à moda, produtos de beleza, alimentação, eletrónica ou entrega de refeições ao domicílio. O grupo líder no comércio eletrónico na Coreia do Sul foi fundado em 2010 (quando a Farfetch já tinha 3 anos de vida), por Bom Kim, um empresário de 45 anos, com dupla nacionalidade (coreana e americana) que se tornaria um dos mais jovens milionários do país em 2018 (o ano em que a Farfetch entrou na Bolsa de Nova Iorque) depois de captar 2 mil milhões de dólares da Softbank Vision, que avaliou a sua empresa em 9 mil milhões de dólares. Na bolsa de Nova Iorque desde 2021, a empresa está a negociar esta terça-feira a 16,58 dólares (+2,66%) e fechou 2022 com receitas de 20,6 mil milhões de dólares e 18 milhões de clientes, números que comparam com os 2,3 mil milhões de dólares e os 4 milhões de clientes apresentados pela Farfetch.

Como fica o projeto do Fuse Valley?

A 24 de setembro de 2021, o projeto foi apresentado publicamente como “o futuro vale tecnológico de Matosinhos” pelo Castro Group e pela Farfech”. Neste momento, aguarda ainda o licenciamento da Câmara de Matosinhos, previsto para breve, para arrancar, e é apontado pelo mercado como um dos ativos que a Farfetch pode vender. Em causa, na verdade, estão dois terrenos detidos por cada um dos grupos e um empreendimento com múltiplos usos, onde além de espaços verdes e dos escritórios da Farfetch, está previsto espaço para acolher outras empresas, um hotel, comércio e outros serviços, num investimento total de cerca de €200 milhões. Ao todo, estão projetados 24 edifícios, 14 dos quais deveriam estar construídos até 2025, sendo 7 para os espaços da Farfetch e os restantes 7 serão promovidos pelo Castro Group. Dos 140 mil metros quadrados de área total de construção, estava previsto a Farfetch ocupar mais de 40% ou 60 mil metros quadrados. E esse continua a ser o desejo da Câmara de Matosinhos, como garantiu recentemente a presidente da autarquia, Luísa Salgueiro, admitindo que se não puder ser assim acredita “ser possível ter outro parceiro”.
Ao Expresso, o Castro Group, diz que “apesar das incertezas do mercado, mantém a perspetiva positiva para o Fuse Valley” e acredita que “a Farfetch mantém a sua ambição de ser um dos primeiros ocupantes".

O que acontece a José Neves?

Para já, pelo menos, continua à frente da empresa e detinha, de acordo com os dados mais recentes a que o Expresso teve acesso, referentes a setembro, menos de 0,1% do capital disperso em bolsa. No comunicado em que a empresa quebra o silêncio iniciado a 28 de novembro, quando anunciou o cancelamento da apresentação de resultados, já depois da Coupang notificar à SEC - regulador do mercado norte-americano, o acordo para ficar com a Farfetch - também anuncia a renúncia dos membros independentes do Conselho de administração e de todos os seus comités. Na sequência destas demissões, a Direção é composta por José Neves, precisa o comunicado. Sobre o que acontecerá numa fase posterior, depois de concretizado o acordo, não são dadas indicações, mas fontes do mercado admitem que o fundador da empresa poderá ter um lugar na direção, dada a sua experiência no segmento de luxo.
Na citação feita no comunicado que anuncia o acordo, José Neves destaca “o currículo da Coupang e a sua profunda experiência em revolucionar o comércio”, considerando que, assim, será possível continuar “a entregar um serviço de excelência aos clientes da nossa marca e das boutiques nossas parceiras”. “Estamos entusiasmados nesta parceria com uma empresa respeitada e da Fortune 200, que está comprometida em investir na inovação que transforma todos os aspetos da experiência dos clientes com a Farfetch”.

Qual o universo e o valor da Farfetch?

“O valor atual da Farfetch depende em grande medida das patentes e exclusivos tecnológicos que tiver”, sustenta José Esteves, Dean da Porto Business School, especialista em estratégia digital e tecnologia ao Expresso. Em termos de mercado, o valor revela-se muito volátil e foi flutuando de acordo com a cotação das ações de uma empresa que entrou na Bolsa de Nova Iorque, em setembro de 2018, ao preço unitário de 20 dólares (€18,3 ao câmbio atual), com uma dispersão de 44,2 milhões de ações e um encaixe imediato de 900 milhões. Chegou a valer mais de 20 mil milhões de dólares em fevereiro de 2021 quando as ações atingiram o pico de 73,35 dólares. Apresentou lucros em 2020 e 2021, mas desde então acumula perdas, marcadas por quatro trimestres consecutivos no vermelho, uma quebra acentuada das ações para mínimos na ordem dos 0,50 dólares esta semana e acumula uma desvalorização superior a 80% desde o início do ano, com a capitalização bolsista a rondar agora os 250 milhões de dólares.

Quanto ao universo da Farfetch, os últimos dados conhecidos apontam para 6728 trabalhadores e 7 subsidiárias - Violet Grey, Stadium Goods, Farfetch Itália, Farfetch US Holding, Browns Limited, Farfetch (Shangai) E-commerce Co. Ltd e FFBR Importação e Exportação Lda. Tem 1400 boutiques como parceiras, a par de marcas como Ferragamo, Chanel, Alexander McQueen, Gucci, Prada ou Neiman Marcus, e apresenta nos destaques do seu site um GMV (volume bruto de vendas) de 4,1 mil milhões de dólares. No entanto, nos últimos tempos perdeu aliados: J. Michael Evans, presidente da Alibaba, demitiu-se do Conselho de Administração da Farfetch, a 30 de novembro e o acordo com a Richemont para a compra da plataforma online de moda e acessórios Yoox Net-A-Porter (YNAP) caiu.

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