Trofada: viagem a «um dos episódios mais tristes do futebol português»

5 meses atrás 77

«Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos.»

É desta forma que Nélson Rodrigues, jornalista e cronista brasileiro, explica o quão caótica pode ser a sociedade na junção de todos os seus quadrantes. Para quem acompanha e aprecia o mundo do futebol, é facilmente compreensível que esta modalidade é muito mais do que um grupo de pessoas a correr atrás de uma bola. E até aqui tudo bem.

Os problemas surgem quando se perde o controlo das proporções que o fenómeno desportivo toma e tal facto passa a ter impacto fora das quatro linhas. Foi precisamente isso que aconteceu há 30 anos, no verão de 1993, num cenário que trouxe à tona os sentimentos menos bons dos habitantes da cidade da Trofa.

Confuso? Embarque connosco nesta viagem ao passado...

Um verão muito quente

O Varzim-Trofense deste sábado, a contar para a 14ª jornada da Série A da Liga 3, foi o «gancho» ideal para recordarmos um dos episódios em que futebol e violência estiveram unidos de forma mais efetiva em Portugal.

O caso que viria a ser denominado por «Trofada» conheceu o seu primeiro capítulo em maio de 1993, numa das últimas jornadas da já extinta 2ª Divisão B. Na altura, o Varzim tinha o seu estádio interditado e teve de disputar a partida com o Trofense no Marco de Canaveses. A equipa da Trofa acabou por vencer o encontro por 1-0, sendo que, depois, o Varzim recorreu da decisão de ter recebido o Trofense em campo neutro junto da Federação Portuguesa de Futebol e do Conselho de Justiça. 

Clubes enfrentam-se este sábado @FPF/Francisco Paraíso

O campeonato terminou com o Varzim em zona de descida, com 27 pontos conquistados, e com o Trofense tendo a permanência assegurada, isto depois de ter somado 29 pontos. No entanto, já depois do término das competições, o recurso apresentado pelos poveiros foi aceite, o encontro que havia sido disputado no Marco de Canaveses anulado e partida mandada repetir, agora na Póvoa de Varzim.

Quem vencesse ficava na 2ª Divisão B; quem perdesse descia à 3ª Divisão. A este cenário juntou-se um pequeno pormenor: tudo isto foi decido em agosto, numa altura em que a temporada 1993/94 estava prestes a começar. 

O resultado? Um motim na cidade da Trofa, que acabou por colocar frente a frente civis e autoridades policiais. Durante cerca de uma semana, no final de agosto/início de setembro de 1993, os trofenses manifestaram-se nas ruas da cidade e provocaram uma série de desacatos. Após ser conhecida a decisão da FPF e do Conselho de Justiça, adeptos do clube deslocaram-se até Lisboa para protestar, sendo que, além disso, a direção do Trofense realizou duas Assembleias Gerais Extraordinárias para ser votada a comparência ou não na repetição do jogo com o Varzim.

O 'não' venceu- no dia marcado para a repetição do jogo o Varzim foi a única equipa a subir ao relvado e o Trofense viria mesmo a descer de divisão- e a onda de protestos tomou proporções inimagináveis...

«Foi um milagre só ter acontecido isto»

Embora os protestos tenham durado cerca de uma semana, houve duas noites em que a insatisfação local foi especialmente intensa. Numa dela, houve veículos queimados, foram criados desacatos na linha ferroviária, as estradas foram cortadas pelos populares e houve mesmo o arremesso de pedras na direção das autoridades policiais. Na outra, civis e GNR envolveram-se em confrontos em frente ao salão dos bombeiros, local onde tiveram lugar as Assembleias do clube. 

Agora reformado, o Tenente Coronel de Cavalaria Rui Andrade e Sousa viveu de perto todo este caso. «Nos primeiros dias da Trofada assisti à situação no meio da multidão, à civil. Entretanto, o capitão que estava em Santo Tirso foi ferido logo numa primeira fase da revolta, eu fui nomeado comandante de destacamento e tive de lidar com esta situação. Nos primeiros dias, o comandante foi emboscado pela multidão e, como havia ordem estritas para não reagirmos violentamente, ele acabou por ser atingido por uma pedra na zona da orelha», começa por nos contar.

Dando ênfase ao facto de este caso ter sido noticiado por órgãos como o The Times e a CNN, o antigo agente da autoridade explica ainda qual foi a forma de atuação da GNR na altura: «Nós nunca considerámos a população nossa inimiga, num cenário que tornou a nossa atuação mais complicada. Tivemos de usar métodos que recorressem ao mínimo de força possível, mas, ao mesmo tempo, tínhamos de assegurar que as ordens das autoridades competentes eram cumpridas. É um equilíbrio muito difícil de se fazer. Neste caso não ajudou o facto de algumas autoridades administrativas e políticas terem tomado partido da multidão. No entanto, consegui perceber isso e disse-o em tribunal, daí não ter havido condenados.»

Ainda assim, de acordo com um noticiário da altura da SIC, numa das noite houve 57 pessoas a dar entrada nos hospitais de São João, Santo Tirso e Famalicão, num cenário que demonstra a dimensão dos confrontos. Mesmo com este números, o Tenente Coronel Rui Andrade e Sousa considera que um dos pontos positivos da «Trofada» tem a ver com o facto de os confrontos nunca terem chegado ao patamar a que poderiam efetivamente ter chegado. 

Trofense
3 títulos oficiais

«Eu acho que o mais importante é dar-se ênfase à forma como isto não tomou proporções ainda maiores. Ou seja, é lógico que foi algo mau, mas podia ter sido ainda pior. Foi um milagre só ter acontecido isto e foi importante a posição tomada por algumas pessoas influentes na Trofa na altura, que impediram que a multidão se revoltasse ainda mais. Para além disso, penso que a Trofada foi um ponto importante para que, anos mais tarde, a Trofa passasse a concelho. As forças políticas perceberam que grande parte da revolta das pessoas tinha a ver com o abandono em que estas estavam em termos administrativos, misturaram-se sentimentos de ordem político-administrativa com sentimentos desportivos», remata.

«Queríamos jogar, sabíamos que íamos ganhar»

À margem do clima de «guerra» que se instalou na cidade, o plantel do Trofense continuou a treinar, ainda que sem saber bem qual seria o seu futuro. Os destinos da equipa da Trofa podia passar pela 2ª B ou pela 3ª Divisão, numa indefinição com a qual foi difícil de lidar para os jogadores.

«Os jogadores queriam ir a jogo, mas a direção opôs-se a isso. Houve uma série de assembleias e a verdade é que ninguém ouvia os jogadores. Nós tínhamos a certeza que íamos lá ganhar. Tanto é que, no ano seguinte, o Nicolau Vaqueiro, treinador do Varzim na altura, veio para o Trofense e disse-nos mesmo isso. A isto juntou-se a indefinição que vivemos naquela altura: não nos pagavam, ninguém nos dizia nada... Foi uma fase muito complicada», revela-nos Fernando Ferreira, filho da terra e jogador do Trofense na altura. De resto, o também ex-técnico de equipamentos do clube vai ainda mais longe:  

Fernado Ferreira esteve muito tempo ligado ao Trofense @Arquivo Pessoal

«Nessa altura estávamos a treinar e falava-se que ia haver uma revolta, mas nunca imaginámos que teria aquela dimensão. Num dia, no final de agosto, as pessoas começaram a juntar-se no centro da Trofa e depois as coisas foram-se descontrolando, incendiaram uma carrinha, danificaram a linha do comboio... Antes de começar o campeonato de 1993/94 houve as assembleias gerais e gerou-se uma revolta muito grande. O grupo não lidou muito bem com essa decisão, estava em causa o nosso profissionalismo e não queríamos que o clube caísse. A decisão foi da direção, nós queríamos ir jogar. De forma natural, ficámos frustrados.»

A descida de divisão acabou mesmo por ser confirmada e Fernando Ferreira foi um dos jogadores que se manteve no plantel. Recordando a curiosidade que os atletas que chegaram ao clube em 1993/94 apresentaram em relação ao caso e a campanha que o Trofense fez na Taça de Portugal nessa temporada (eliminado nos quartos-de-final pelo Sporting), o ex-defesa conclui realçando o impacto que a «Trofada» teve.

«Foi um dos episódios mais tristes da história do Trofense e até do futebol português em si. Foi algo que tomou proporções mesmo muito grandes, as imagens correram mundo e lembro-me que elementos da nossa claque chegaram a ser abordados por claques de clubes italianos para falarem sobre a situação. Isto não é exemplo nenhum, não devia ter acontecido. Mas, logicamente, é algo que marca a história da Trofa e do Trofense», considera.

Portugal

Fernando Ferreira

NomeFernando Manuel Silva Ferreira

Nascimento/Idade1965-11-01(58 anos)

Nacionalidade

Portugal

Portugal

PosiçãoDefesa

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