Vinho, um engarrafado aglutinador de amigos

4 meses atrás 46

O vinho tem vindo a adquirir uma característica interessante: funciona frequentemente como elemento aglutinador entre amigos. Combina-se um encontro e logo há quem se chegue à frente: então o que se vai beber? Quem leva o quê? Tu espumante, eu branco, outro/a tinto, e alguém se apresta a levar um generoso. Um encontro de amigos com veia enófila pode tornar-se uma festa. Essa é também uma das características mais emblemáticas do vinho, ou seja, agregar, criar um ambiente de sã camaradagem. Sã sim, mas com um lado competitivo associado. Porquê? Porque o mais habitual entre enófilos é provar os vinhos às cegas sem se saber o que se está a beber. Para o efeito tapam-se as garrafas com sacos pretos ou, na falta deles, com papel de estanho enrolado à volta delas. Há quem não ache graça à ideia, mas a verdade é que provar às cegas tem muitas vantagens: caem as manias, os preconceitos, os exibicionismos, os gostos moldados pelas tendências da moda. Eu gosto deste jogo porque ele permite fazer apelo à base de dados mental que temos e que fomos enriquecendo com os anos. De onde será este vinho? Será português? E, se não for, poderá ser de onde? Com este perfil, será vinho de uma casta só ou de lote? Com madeira? Sem madeira? Mais novo ou mais velho? Será um vinho mais artesanal e com mais arestas ou será um vinho mais clássico, mais mainstream? Estas (e outras) podem ser questões que se levantam no grupo e que tornam os encontros tão divertidos. E, por estranho que possa parecer, acertar no vinho em causa tem dois efeitos opostos: ficamos satisfeitos se acertámos porque a nossa base de dados está em dia e o nosso palpite foi no alvo; por outro lado, é ao errar que podemos aprender mais sobre o vinho em causa. Pareceu-nos do Dão e afinal era do Algarve, iríamos jurar que era um tinto da casta Bastardo e afinal era um Ramisco de Colares, e por aí fora. Esta é a fórmula mais interessante de provar vinhos entre amigos. É claro que poderemos estar sujeitos a rasteiras que nos fazem espernear. Aconteceu-me quando me fizeram provar um tinto e confesso que nem percorrendo todo o mundo vinícola cheguei lá. Quando se destapou a garrafa, que vim a saber ser caríssima, percebi que a minha ignorância era mais vasta do que eu imaginava: o tinto, feito por enólogos de Bordéus, era... do Tibete! Isto está a ficar complicado, porque não falta quase nada para começarmos a beber vinhos da Dinamarca achando que são brancos da Borgonha! Mas também aconteceu ser eu o anfitrião, saber o que estava a servir, ter à volta da mesa só gente altamente encartada no sector do vinho e assistir ao descalabro geral: uns já diziam que poderia ser um branco da Bulgária, da Geórgia, das Canárias, da Sicília. Era complicado? Fui mauzinho? Não, era um branco do Algarve feito de Crato Branco, de um produtor, à época, pouco conhecido. Ninguém ficou zangado, antes pelo contrário, todos ficaram interessados no produtor e na casta (vantagem de errar), que conheciam mal. Isto repete-se constantemente e é sempre divertido, mesmo quando se leva um vinho para o restaurante. Ganhamos em cultura vínica e alimentamos a amizade. Não é preciso mais.

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