Adeptos «paralisam» futebol alemão: o direito «quebrado» na luta contra investidores

7 meses atrás 65

Foi no dia 11 de dezembro de 2023 que o «barril de pólvora» explodiu no futebol alemão. Como resultado de uma votação secreta e sem a participação dos grupos organizados de adeptos (GOA), a Liga Alemã de Futebol (DFL) aprovou a entrada de um «parceiro estratégico» na organização que tutela o futebol profissional no país. Por outras palavras, os representantes dos clubes da 1. e 2. Bundesliga geraram, por um voto de diferença, uma maioria de dois terços - obrigatória - capaz de permitir investimento de private equity na Liga, ou seja, a entrada de dinheiro proveniente de um investidor externo.

qO direito dos adeptos de terem voto nas decisões foi quebrado no momento em que houve uma votação (...) feita em segredo

Jörn Kleinschmidt, porta-voz do FC PlayFair

Desde então, os encontros da 1. e 2. Bundesliga têm sido o palco preferencial para os protestos dos adeptos contra essa decisão da DFL. Inicialmente, o descontentamento manifestou-se através do arremesso simbólico de moedas de chocolate, que provocaram interrupções curtas das partidas. Mas o modus operandi dos grupos organizados alterou-se e nas últimas semanas assiste-se ao lançamento massivo de bolas de ténis para o terreno de jogo, forçando paragens cada vez mais longas e mais complexas dos encontros. 

«O direito dos adeptos de terem voto nas decisões foi quebrado no momento em que houve uma votação para a entrada de um investidor externo feita em segredo e, por isso, de forma pouco transparente», acusa Jörn Kleinschmidt, representante do grupo FC PlayFair, ao zerozero. Trata-se de uma organização de adeptos fundada em 2007 pelo agora presidente do Vfb Stuttgart, Claus Vogt, e uma das assinantes do manifesto contra a decisão da DFL. «Por ter sido feita em segredo, a votação permitiu a um responsável de um clube, Martin Kind, do Hannover 96, votar a favor quando a orientação do próprio clube era votar contra», acrescenta Kleinschmidt. Esse voto acabou por fazer cair a balança para o «sim».

A raiz do «não» 

Numa altura em que a entrada de capital privado em clubes de futebol prolifera um pouco por todo o futebol europeu, com destaque - mediático e quantitativo - para a Liga inglesa, os adeptos alemães continuam firmes na resistência a essa "evolução" do desporto continental. «A cultura aqui é diferente. Na Alemanha, muitos adeptos também são sócios dos clubes e, através disso, têm uma ligação mais intensa com o clube. Ou seja, ser adepto e pertencer ao clube é parte da identidade pessoal», diz Kleinschmidt.

qA reação dos adeptos não seria tão 'alérgica' se a empresa que investisse estivesse ligada ao desporto, como a Nike na NBA

Jörn Kleinschmidt, porta-voz do FC PlayFair

Para o porta-voz do FC PlayFair e para os restantes GOA, o problema de um possível sistema de investidor privado na DFL reside no perigo ainda maior de desvirtuar e até fazer cair a regra dos "50+1", que na Alemanha impede que um clube seja detido na sua maioria por um investidor ou grupo externo. «Isso distorce a concorrência e torna o futebol na Alemanha pouco atrativo. Exemplos disso são o Hoffenheim e o RB Leipzig, clubes que foram quase "contrabandeados" para a Bundesliga através de modelos de investidores», acusa Kleinschmidt ao zerozero.

«Essas equipas foram, na altura, compradas algures na quarta ou quinta divisão, fora da jurisdição da DFL, e com investimentos de milhões de euros no prazo de cinco a dez anos chegaram à Bundesliga, onde hoje roubam o lugar a clubes com grande tradição. Um exemplo: o RB Leipzig, nos jogos fora, tem, em média, menos adeptos do que o Alemannia Aachen, que está na 4.ª Divisão», refere Kleinschmidt.

A retirada de um potencial investidor

Protesto durante o Union Berlin - Wolfsburg @Getty /

Depois de no último fim de semana os protestos terem provocado novas interrupções prolongadas na Bundesliga, uma das empresas que estava em conversações com a DFL, a norte-americana Blackstone, decidiu retirar-se da mesa das negociações, notícia confirmada pela própria DFL. Para Jörn Kleinschmidt, essa retirada do grupo nova-iorquino é uma primeira vitória para os adeptos.

«Definitivamente. Um investidor preocupa-se em perceber como será a sua gestão, se haverá tranquilidade... Eu diria que eles fizeram uma análise correta da situação e perceberam como seria a reação se um investidor desses entrasse», diz. Para o representante do FC PlayFair, «a reação dos adeptos não seria tão 'alérgica' se a empresa que investisse estivesse ligada ao desporto, como a Nike na NBA, por exemplo; ou uma adidas. Basicamente, alguém com uma forte ligação ao desporto.»

E se?

Neste «braço de ferro» entre os grupos de adeptos e a DFL ainda está em aberto para qual dos lados vai cair o «empurrão» final. Por isso, o cenário de um futuro do futebol profissional na Alemanha com um investidor privado e, até, a queda da regra dos "50+1" terá de ser equacionado: «Claro que esse é um cenário imaginável e no 'final do dia' continuará a jogar-se futebol. Mas nesse momento acredito que, sobretudo, os GOA, os ultras, saltariam fora e diriam que as linhas vermelhas tinham sido ultrapassadas», vaticina Kleinschmidt ao zerozero.

qO ambiente nos estádios alemães é um dos USP (Unique Selling Point) do nosso futebol

Jörn Kleinschmidt, porta-voz do FC PlayFair

Porém, alterar a cultura de estádio no futebol germânico, nomeadamente através do afastamento dos grupos organizados de adeptos, teria consequências gravosas para a imagem - e para a marca - da Bundesliga, segundo Kleinschmidt. «Isso faria com que a atmosfera nos estádios mudasse totalmente. E o ambiente nos estádios alemães é um dos USP (Unique Selling Point)* do nosso futebol, se quisermos usar essa linguagem. Os adeptos não se vêm apenas como adeptos ou consumidores, mas como parte do espetáculo e do desporto e é nessa função que esperam ser valorizados», sublinhou o nosso entrevistado.

Por enquanto, o caminho proposto pela DFL é o de reunir com os adeptos para debater o problema. Essa proposta, no entanto, foi rejeitada categoricamente pelos GOA por considerarem inúteis as conversações depois de tomada a decisão inicial. Por isso, a única solução proposta é a de repetir a votação, mas de forma pública e transparente e com a participação dos adeptos. Vários clubes, entre eles o Vfb Stuttgart e o Union Berlin, já se posicionaram a favor de uma nova votação.

*USP (Unique Selling Point) - Atributo que torna uma empresa ou um produto único aos olhos do consumidor

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