Cão na claque, queijadas, bandeiras vintage e a festa da Taça: os cinco jogos em 32 horas do zerozero

2 horas atrás 22

823 km percorridos. GPS ligado de forma praticamente contínua. Horas e horas de carro, num trajeto que começou e acabou em Vila Nova de Gaia, tendo paragens por Lisboa, Sintra, Alpendorada e Póvoa de Varzim pelo meio.

O que parecia uma loucura rapidamente se tornou uma das melhores experiências que já tivemos enquanto jornalistas- perdoe-nos a referência num tom tão pessoal. Afinal de contas, assistimos in loco a cinco jogos da terceira eliminatória da Taça de Portugal - a ideia original era cobrirmos seis jogos, mas o Penafiel-Lusitânia dos Açores foi adiado de domingo para segunda-feira.

Miúdos ou graúdos; adeptos fervorosos de um clube ou apenas apreciadores de desporto de forma geral. Todos os que têm ligação ao futebol já foram confrontados com a premissa de que a Taça de Portugal tem um encanto especial.

Numa altura em que as desigualdades entre clubes com maior e menor capacidade financeira se acentuam, a prova rainha assume-se como o espaço ideal para mitigar estas diferenças. Durante pelo menos 90 minutos, equipas de divisões inferiores tentam esgrimir argumentos contra os clubes mais titulados, isto tendo sempre em mente o sonho de chegar ao mítico Estádio do Jamor.

E se os adeptos e os clubes olham para esta competição com um brilho especial nos olhos, a verdade é que connosco, jornalistas, tal cenário também se verifica.

«Reparei hoje que o Belenenses e o Atlético jogam em casa às 11h e às 14h de sábado. Os estádios são mesmo próximos.»

«E o 1º Dezembro joga às 17h30 com o SC Braga, penso que o estádio deles também não é muito longe.»

«E se?...»

Foi mais ou menos desta forma que, numa das vezes em que partilhámos boleia, a ideia surgiu. Rapidamente percebemos que a ideia de irmos a três estádios num só dia também podia ser colocada em prática no domingo e foi assim que chegámos ao conceito de 'seis jogos em 32 horas'.

Com o projeto apresentado e aprovado, o tão esperado dia 19 de outubro chegou e foi tempo de nos lançarmos à estrada.

Uma manhã com amigos

A considerável distância entre Vila Nova de Gaia, onde está sediada a redação do zerozero, e o Estádio do Restelo, recinto que recebe o Belenenses-Gil Vicente, obriga-nos a acordar às 5h30 e a fazermo-nos à estrada às 6h45. 

Entre filmagens, publicações nas redes sociais e atualizações no live que temos no ar no nosso site, estacionamos nas imediações do estádio por volta das 10h15, bem a tempo de levantarmos as credenciais.

Ainda que o objetivo seja deixarmo-nos levar pelo que o dia nos trará, a verdade é que este primeiro jogo é um dos poucos em que temos algo planeado: quando foi feito o anúncio desta aventura nas redes sociais do zerozero, 'O Pastel', conta de Twitter afeta ao Belenenses, abordou-nos para lhe 'darmos um toque' se fossemos ao Restelo.

«O Belenenses é um dos grandes, já ganhou três vezes a Taça e já esteve em várias finais. Ainda que estejamos duas divisões abaixo do Gil Vicente, o nosso histórico e o facto de o Gil Vicente ser um clube com o qual temos algumas histórias [referência ao caso Mateus] obrigam-nos a lutar pela passagem à próxima eliminatória», começa por dizer Diogo Barrote, que explica também como surgiu a ideia de criar a tal conta digital de apoio ao clube:

«Foi um prolongamento natural da minha vida enquanto adepto, por norma sou muito presente em tudo. É uma dinâmica engraçada porque há ali uma boa comunidade que se conheceu no Twitter, mas que entretanto se tornou amiga na vida real e que se vai cruzando no estádio.» 

Rui Miguel Tovar e Rui Pedro Silva com o zerozero

O percorrer da bancada com o olhar leva-nos a mais uma cara conhecida: Rui Miguel Tovar. «Vou cumprir dois terços do vosso desafio de hoje, daqui vou para o Estádio da Tapadinha. É sempre bom vir ao Restelo, o meu avô materno e o meu tio traziam-me muitas vezes cá. Espero que o Belenenses seja um tomba gigantes, a maior beleza da Taça são as finais sem grandes», frisa, entre dentadas numa queijada de Sintra, o também nosso colega no zerozero. A ideia, de resto, é partilhada pelo amigo Rui Pedro Silva, um dos responsáveis pelo podcast 'Matraquilhos':

«Ali nos anos 50/60, as hipóteses de se jogar contra Benfica, Sporting e FC Porto e de ver estas equipas ao vivo eram muito menores. Desde aí que a ideia de uma equipa de escalões inferiores poder jogar em casa contra uma equipa da 1ª divisão torna o jogo muito mais interessante e faz com que essas mesmas equipas se agigantem.» 

Os adeptos do Belenenses

A conversa com estes dois interlocutores é seguida do primeiro golo do Gil Vicente - para desespero do adepto que estava na bancada a fazer 'piscinas' paralelamente à linha lateral -, sendo que o segundo tento dos minhotos surge quando estamos à conversa com Didi, adepto do Belenenses com forte ligação ao 'Cantinho do Sócio'. O café/bar é ponto de encontro dos fãs do conjunto do Restelo, que seguem depois para a bancada: «O nosso amor não tem divisão, o Belenenses é esta malta extraordinária e esta vista magnífica.»

É com a pintura da Ponte 25 de Abril sobre o rio Tejo que nos despedimos de Belém, não sem antes ficarmos sensibilizados com uma adepta septuagenária do Gil Vicente a vibrar com o cachecol na mão logo após o apito final.

Surpresa ali tão perto...

Sabíamos que a proximidade geográfica entre o Restelo e a Tapadinha era grande, pelo que é de forma natural que, não havendo prolongamento no primeiro jogo, chegamos a tempo ao Atlético CP-Rio Ave.

Aproveitamos os momentos que antecedem o apito inicial para almoçarmos a nossa salada e os nossos raviolis na bancada de imprensa, sendo que, de seguida, somos surpreendidos por um 'Olha a queijada de Sintra!' gritado a partir da bancada. Não é que a entoação destas palavras tenha algo de estranho, mas a verdade é que quem as profere é exatamente a mesma pessoa que estava no Estádio do Restelo e que vendeu o lanche a Rui Miguel Tovar: o senhor Luís Sousa. 

Sr. Sousa vende umas queijadas impecáveis

«Costumo fazer isto várias vezes, venho à Tapadinha, ao Restelo, ao Mafra... Vendo queijadas há 42 anos e, como estou aposentado, isto acaba por ser um entretenimento. As pessoas já me conhecem e às vezes até é mais por isso que venho vender», partilha connosco o vendedor, de 67 anos, isto antes de nos dizer que mais à noite estará no 1º Dezembro-SC Braga.

Senhoras e senhores, não somos os únicos a fazer este desafio dos três estádios!

Na bancada destinada aos adeptos visitantes encontramos o senhor José, sócio do Rio Ave há 33 anos. «Já fui ao Jamor duas vezes com o Rio Ave e sigo o clube para todo o lado. Agora que estou reformado é mais fácil, esta época ainda não perdi nenhum jogo», atira, numa declaração à qual se segue uma série ritmada de batidas num tambor.

Ainda que o Rio Ave tenha saído na frente do marcador, a emoção do encontro fica reservada para os minutos finais. Aos 75', uma falta de Vrousai resulta num penálti para o Atlético, sendo que, aqui, há algo que se destaca: os adeptos da equipa da casa, que até aqui estavam a assistir ao encontro na parte superior da bancada, apressam-se a descer até próxima da baliza de Miszta. Que romaria e que ambiente incrível! 

Caleb atirou à barra no penálti @Catarina Morais / Kapta +

Mesmo com Caleb a ceder à pressão e a atirar à barra, o Atlético chega ao empate aos 83' e leva o encontro para prolongamento. Aqui, a maior experiência dos vila-condenses faz a diferença e os golos de Aderllan Santos e Hassan fecham a eliminatória a favor dos primodivisionários.

Não há dúvidas de que a festa da Taça com prolongamentos à mistura é bonita, mas há aqui um problema: já estamos atrasados para o jogo seguinte!

Aqui de cima vê-se muito melhor

Terceira e última paragem do primeira dia: Estádio do Real SC para o 1º Dezembro-SC Braga, em Massamá. À imagem dos dois jogos anteriores, uma equipa da Liga 3 contra uma equipa da Primeira Liga. 

A vista a partir de casa de Lavínia

A nossa entrada no recinto dá-se à passagem do minuto 15, sendo que, nesta partida, temos a oportunidade de ficar instalados mesmo atrás de uma das balizas. Por entre as filmagens que vamos fazendo, acabamos por criar ligação com os dois apanha-bolas mais próximos de nós. O Rochinha e o Gonçalo são dois miúdos dos sub-13 do 1º Dezembro e vão vibrando de forma entusiasta com a sua equipa à medida que o encontro se vai desenrolando. Esperamos por vós dentro de campo daqui a uns anos, craques!

Ainda que as bancadas estejam bem compostas, o facto de não termos acesso às mesmas limita um pouco o nosso trabalho em termos de procura de conteúdo jornalístico. Assim sendo, o início da segunda parte faz-se acompanhar por uma decisão da nossa equipa de reportagem. Enquanto um de nós permanece no relvado, o outro deixa o estádio e desloca-se até aos prédios que ficam nas imediações do recinto.

Inspirados por uma reportagem publicada no zerozero há cerca de um ano, queremos perceber se é possível assistir a jogos que se disputem no Estádio do Real SC a partir da janela/varanda dos apartamentos. 

No primeiro prédio, um morador do quarto andar diz-nos, através do microfone da campainha, que as árvores lhe tapam a visão. No segundo, mais no início da rua, somos informados que também não é possível ter esse privilégio. Por fim, tocamos à campainha de um quarto andar num prédio a meio da rua e rapidamente nos abrem a porta da entrada cá em baixo. 

João Moutinho decidiu para o SC Braga @Kapta+

Subimos as escadas de forma um tanto ao quanto ofegante, premimos o interruptor e somos recebidos por uma jovem senhora. Apressamo-nos a explicar o intuito da nossa visita e a Lavínia permite-nos entrar em sua casa de forma tranquila. Conta-nos ainda que, por norma, o irmão assiste a futebol a partir da janela, mas que, naquele momento, o mesmo não está em casa.

Fazemos então umas filmagens e despedimo-nos com um sincero obrigado, isto ainda a tempo de vermos não só o senhor Luís Sousa a vender queijadas, mas também João Moutinho a colocar o SC Braga na próxima eliminatória com um livre superiormente cobrado.

É então tempo de arrumarmos as coisas, jantarmos e seguirmos viagem até casa - só chegamos por volta das 2h30 à redação.

Um dérbi bem quente

O adiamento do Penafiel-Lusitânia dos Açores permite-nos descansar um pouco mais, mas a verdade é que, logo após um almoço 'madrugador' seguimos viagem para Alpendorada. É nesta pequena localidade que se disputa o Alpendorada-Cinfães, jogo especial por ter contornos de dérbi regional.

Aquando do planeamento do nosso projeto, quisemos fazer deste encontro a nossa 'cereja no topo do bolo'. Dessa forma, contactámos os clubes e a Federação Portuguesa de Futebol para que a reportagem aqui fosse o mais aprofundada possível. 

Adeptos do Cinfães

Tendo isto em conta, as portas dos balneários dos dois clubes abriram-se para nós e tivemos oportunidade de acompanhar o frenesim pré-jogo que se fez sentir tanto de um lado como do outro.

«É um jogo com um toque especial. Há jogadores dos dois lados que já jogaram juntos, o treinador deles já esteve cá... Ainda assim, tentámos gerir as coisas de forma normal esta semana», descreve-nos André Moreira, capitão do Alpendorada. Há 17 épocas a vestir de azul, o central está mais do que capacitado para apresentar o clube: «Quem cá chega depois não quer sair. Somos conhecidos como pedreiros e é isso que tentamos representar: somos jogadores humildes, trabalhadores e que querem sempre mais. Lá dentro damos sempre a vida.»

Entre chuteiras e equipamentos espalhados no chão, bananas e cafés em cima da mesa, atravessamos o corredor em direção ao balneário do Cinfães. Enaltecendo o respeito que há entre os dois clubes, isto apesar do tal toque de rivalidade, o capitão Serginho destaca a singularidade da Taça de Portugal. «É uma prova que nos aproxima de outras realidades e outros patamares. À medida que vamos passando eliminatórias aumenta a esperança de defrontarmos uma equipa de Primeira Liga e isso é bom em termos de visibilidade para quem ainda é jovem e tem ambições de chegar mais lá acima», vinca. 

Aurora Rocha a ver o jogo em cima da cadeira

Com o Alpendorada a chegar à vantagem logo na primeira parte, aproveitamos o intervalo para nos dirigirmos ao bar do clube. É lá que conhecemos Aurora Rocha, responsável pela exploração do espaço. Para além da simpatia atrás do balcão, Aurora dá-nos também a conhecer o método que foi desenvolvendo para poder assistir aos jogos enquanto trabalha: depois de subir a uma cadeira, abre uma pequena janela que tem no bar e fica assim a espreitar o relvado numa pequena abertura de 70cmx50cm.

Antes de nos dirigirmos à bancada destinada aos adeptos visitantes, conversamos com António Couto. À primeira vista parece que estamos apenas perante um senhor de 79 anos que está a vender bandeiras e cachecóis do Cinfães. No entanto, há uma história surpreendente por trás disto: o stock do senhor António tem nada mais nada menos do que 41 anos!

O septuagenário explica-nos que as bandeiras e os cachecóis foram produzidos para um Cinfães-Riopele, em 1983, mas que, na altura, a polícia não permitiu que vendesse os artigos no recinto do jogo. Os mesmo estiveram guardados durante todos estes anos e só foram vendidos no decorrer desta tarde. 

Um adepto diferente do habitual

A segunda parte é passada junto dos adeptos do Cinfães, sendo que, para além da criatividade destes na arte de 'dialogar' com o árbitro, há outro dado que nos cativa: um cão, que acreditamos ser de rua, entra para a bancada e faz-se ouvir nos minutos finais, bem ao estilo ultra. O apoio do Bobi parece surtir efeito, isto na medida em que os cinfanenses operam a reviravolta no marcador já no prolongamento.

No final, a loucura total: presidente aos saltos, jogadores a correr com a camisola na mão, treinador a ajoelhar-se em frente aos adeptos e uma dupla do zerozero a caminho da Póvoa de Varzim já bastante atrasada...

Fechar em beleza

À semelhança do que havia acontecido no dia anterior, entramos no recinto do último jogo já com o mesmo em andamento. Pese embora este não seja um cenário que nos agrade, acaba por ser inevitável face à especificidade do nosso projeto.

De forma natural, não partimos para esta aventura com o desejo de ver a equipa X eliminar a equipa Y. No entanto, e pegando até no que referiu Rui Miguel Tovar, queríamos ver Taça a 'acontecer'. Esta premissa acaba por se verificar no nosso último jogo, com o Varzim, da Liga 3, a eliminar o Boavista, da Primeira Liga

Que ambiente na Póvoa de Varzim

Após uma primeira parte globalmente fraca, o conjunto da casa adianta-se no marcador logo a abrir a etapa complementar, num cenário que deixa o estádio em ebulição.

«E só quem salta é poveiro!»

Três das quatro bancadas do recinto começam assim a ganhar vida, sendo que, na que sobra, a desilusão toma conta dos adeptos do Boavista. No final, os jogadores acabam por sofrer as consequências e são criticados por um resultado bastante negativo.

Do lado oposto, o momento é de festa, tal como nos explica em exclusivo o presidente Ricardo Nunes. «É um sentimento de alegria, é um jogo prestigiante para nós. Jogarmos com este ambiente e contra equipas da Primeira Liga galvaniza e agora esperamos apanhar um grande aqui em casa», assume o ex-jogador. E ainda que o desejo fosse receber um grande em casa, sabe-se agora que o Varzim tem encontro marcado com O Elvas

Ricardo Nunes com o zerozero

Com o trabalho fechado, é hora de irmos jantar um cachorro antes de rumarmos à redação.

Esperamos, da forma mais sincera possível, que se tenha divertido tanto a acompanhar-nos nesta aventura/a ler esta reportagem como nós nos divertimos na execução do projeto. Deixamos também um agradecimento a todos os clubes envolvidos e à Federação Portuguesa de Futebol pela disponibilidade e auxílio.

Vemo-nos na próxima eliminatória?

Ler artigo completo