Do trabalho com Mourinho ao AVC na Turquia: «Foi estar ali à espera que a morte te leve»

4 meses atrás 136

Aos 58 anos, José Morais é um dos treinadores portugueses com mais vasto currículo internacional. Depois de, entre outras experiências, ter sido adjunto de José Mourinho no Inter de Milão, no Real Madrid e no Chelsea, o técnico está atualmente no Sepahan, do Irão.

Na segunda parte da entrevista, o treinador analisa o crescimento do futebol saudita, país no qual já trabalhou, relembra os anos passados como adjunto de José Mourinho e recorda o AVC que sofreu na Turquia, enquanto orientava o Antalyaspor.

A primeira parte da conversa pode ser consultada aqui; a terceira será publicada ainda esta quarta-feira.

Zerozero: Se dissessem ao José Morais que começou a treinar camadas jovens no Benfica em 1991 que este teria uma carreira com passagens por 14 países, acreditava ou era um cenário impensável?

José Morais: Eu nunca me limitei muito em relação ao que poderia ser, mas sempre pensei que poderia melhorar diariamente. Gosto de aprender e tenho entusiasmo em perceber como funcionam as coisas. Aliás, hoje em dia, mesmo estando no Irão, investigo sobre plataformas de inteligência artificial, por exemplo. É o que de mais avançado temos e pode ser uma ferramenta útil em questão de tomada de decisão e em aspetos táticos. Eu procuro investigar, é uma atitude que sempre tive e que me foi ainda mais incutida pelo José Mourinho, ele tem isso na sua liderança. Já nessa altura não tinha limites, lembro-me que, nessa altura, o Paulo Futre me ajudou a fazer um estágio no Atlético de Madrid. No ano a seguir fui fazer um estágio com o Guus Hiddink [no PSV], ainda fui ao Ajax, ao Schalke 04 e ao Borussia Dortmund.... 

José Morais
7 títulos oficiais

Ainda hoje, se há cursos em períodos de férias, vou. Ainda há relativamente pouco estive diariamente, durante três meses, no Barcelona para perceber como é desenvolvido o modelo de jogo do clube. Quando comecei já era um indivíduo ávido de conseguir coisas no futebol, ainda que não soubesse onde ia chegar. Fui sempre um viajante em busca do conhecimento; mesmo quando fui para o Iémen e rebentou uma bomba na embaixada dos Estados Unidos da América. Aí pensei 'Onde é que estou? Vim treinar a seleção do Iémen, mas há condições para estar aqui?'

ZZ: Essa foi a sua única experiência numa seleção, como foi viver esses tempos?

JM: Foi muito interessante, mesmo tendo sido pouco tempo. Eu era mais jovem, não tinha tanta experiência... Foi das primeiras vezes em que uma coisa daquelas aconteceu e é um país pequeno. Quando começas a ouvir as histórias e a ver as condições do país, tu dizes 'Se calhar não é o melhor sítio para estar neste momento porque as condições para desenvolveres um trabalho de qualidade podem não existir'. Naquela altura foi um misto de medo e de desafio. Começas a conhecer os jogadores que lá estão e vais criando ligações de afetividade à forma de viver das pessoas.

Eu conecto-me sempre bastante à realidade local e o Iémen marcou-me. Olhei para mim e percebi que sou um privilegiado, percebi que viver naquelas condições não era fácil. Viver em países onde a vida é no dia a dia e nos quais não sabes se vais acordar com saúde é complicado. No Iémen tive pena por ir embora porque percebi que não conseguia ajudar- mentalmente e organizacionalmente.

ZZ: Esteve na Arábia Saudita em três períodos diferentes (2006, 2014 e 2021). Como descreve a evolução das condições de trabalho nestas diferentes fases?

JM: A Arábia Saudita sempre foi um país com visão em relação ao desporto e que percebeu desde cedo que havia necessidade de serem criadas infraestruturas capazes de proporcionar condições de trabalho. Em 2005 já havia campos com alguma qualidade, já havia centros de treino, o Governo também ajudava, os clubes tinham boas condições financeiras... As competições jovens não eram muito desenvolvidas, mas já existiam. Em 2014 já havia a preocupação em formar, as equipas técnicas já eram formadas com pessoas com capacidade para formar jovens e começou a haver mais abertura para jogadores do exterior. Em 2021 foi quase um 25 de abril...

ZZ: O início desta nova fase...

JM: Exatamente. O número de jogadores estrangeiros aumentou... Lembro-me que uma das grandes dificuldades que existia era o facto de os guarda-redes só poderem ser nacionais e a escola de guarda-redes da Arábia Saudita não tinha qualidade suficiente. Na altura já dizia que era um erro. Se havia poucos guarda-redes e as referências que existiam não eram de grande nível, era importante haver abertura para trazer guarda-redes de maior qualidade. A partir do momento em que permitiram a chegada de guarda-redes estrangeiros, o campeonato também mudou um bocadinho. Os estádios têm condições que antigamente não tinham, os centros de treino e os relvados estão a ser modernizados, há uma grande organização... 

José Morais foi campeão no Al Hilal @Al Hilal

ZZ: Trabalhou com o Cristiano Ronaldo no Real Madrid. Via-o como sendo capaz de aceitar ser cabeça de cartaz num projeto como este?

JM: Eu admiro o Cristiano nesse sentido. Entre ir para os Estados Unidos da América, país que tem as condições que ele já conhece, e ir para um país onde acaba por ser o responsável pelo redimensionar do futebol nesse mesmo país e na Ásia... Admiro a coragem dele e a aposta que fez. Estas coisas não têm a ver só com o dinheiro, chega-se a uma altura em que as necessidades estão satisfeitas e não são os milhares a mais que se podem ganhar que trazem felicidade. Ao ir para a Arábia, o Cristiano entrou num projeto de futuro do país, que está a dinamizar áreas como o turismo usando a imagem do Cristiano. A Arábia é um país que tem gente com visão e com um pensamento estratégico de alto nível- do rei aos príncipes.

ZZ: Voltando um pouco mais a si, como é que um treinador que estava na Tunísia tem a oportunidade de fazer parte da equipa técnica de um treinador como o José Mourinho?

JM: Tudo começa na altura do Benfica. Eu conheci o José Mourinho no Benfica, a boa hora e em bom termo porque reconheci sempre nele a qualidade de alguém diferente. Passei dez anos na formação do Benfica e fui sempre acompanhando de perto o trabalho de vários treinadores, sendo que o facto de ter formação académica na área da educação física e do desporto me permite analisar as coisas de uma perspetiva metodológico. Fui percebendo as características de uns e de outros: de Ivic ao Paulo Atuori, passando por Jupp Heynckes, Toni, Jesualdo Ferreira, Manuel José, Artur Jorge, Nené, Chalana, Humberto Coelho, Arnaldo Cunha, João Santos, Rui Oliveira, José Paisana, o professor Arnaldo Teixeira... Todos estes indivíduos estavam a trabalhar no clube e deram-me uma grande ajuda, mas quando chegou o José Mourinho disse que ficava muito feliz por poder observar um treinador que está numa linha um bocado diferente. Quando o Mourinho chegou eu já tinha feito estágios em vários clubes e senti que ele reunia no trabalho dele todas as boas coisas que apanhei dos vários treinadores. 

@Getty /

Isso fez-me admirá-lo como treinador numa primeira fase, não ainda como pessoa. Ele deu-me a possibilidade de aprender com ele, isto tendo em conta que eu tive sempre uma visão muito coletiva do futebol; sonhava, por exemplo, com os modelos do Barcelona e do Ajax dentro do próprio Benfica: termos uma forma de jogar que tivesse repercussões na da primeira equipa. Quando ele chegou ao clube, acabou por estar um pouco dentro desta visão, sendo que eu, sendo o responsável pela equipa B, tentei ajudar um pouco. 

Entretanto, ele estava para ir para o Sporting e fez-me o convite para ir com ele. No entanto, eu acabei por lhe dizer que, se calhar, não seria a pessoa mais indicada para ir trabalhar com ele naquela altura porque podia não ter a experiência necessária para estar ao lado dele. Ele agradeceu a minha honestidade e disse-me que ainda iríamos trabalhar juntos. Passado uns anos, ele liga-me e diz «José, tudo bem? É o José Mourinho» e eu «Quem?». Quando ele me perguntou se queria ir trabalhar com ele [2009], só lhe respondi que já tinha a mala preparada [risos]. Isso chegou em boa hora porque mudou a minha perspetiva, há um José Morais antes do José Mourinho e outro José Morais depois do José Mourinho. 

ZZ: Tem alguma história mais marcante/caricata dos anos em que conviveu com o José Mourinho?

JM: Lembro-me de uma situação que comprova a capacidade de liderança que ele tem. Houve um jogo em que o Samuel Eto'o estava tão chateado com o que o Balotelli estava a fazer em campo que chegou perto de mim- eu estava naquele banco auxiliar ao banco de suplentes- e disse-me «Oh Zé, diz ao mister que é para tirar o Balotelli daqui para fora, caso contrário eu dou-lhe um murro». Eu só lhe respondi «Eu vou dizer isso ao homem, mas ele vai tirar-te é a ti»; ele só me respondeu «Então não digas nada!» [risos]. Isto tem a ver um pouco com o respeito pela liderança do José Mourinho que os jogadores têm. Ele é um líder carismático e querido pelos jogadores.

ZZ: Quando se desvincula do José Mourinho a nível profissional, ruma à Turquia e vive uma situação que, imaginamos nós, o marcou bastante, isto na media em que teve um AVC. Como foi passar por esta situação? 

qHavia um treinador antes [do AVC] e passei a ser outro depois disso, sendo que o sucesso na minha carreira começa a existir depois desta viragem

JM: Eu ainda me engasgo a falar disto... Foi um momento que teve um impacto grande, foi um momento de viragem porque comecei a olhar para a vida de uma forma diferente. Muitos dos conceitos de treino e de liderança que aplico hoje em dia têm a ver com aspetos emocionais que foram tomando conta de mim nesse período. Foi um período difícil e no qual percebi a fragilidade de um ser humano, percebi que hoje estás vivo, mas que no dia a seguir podes deixar de existir. Há coisas muito mais importantes para viver e para deixar como legado; como pessoa só sou importante se existir para ajudar o outro.

Havia um treinador antes e passei a ser outro depois disso, sendo que o sucesso na minha carreira começa a existir depois desta viragem. A minha relação com os jogadores passou a ter outra conexão, assim como a minha relação com a vida em si. Não é um momento que procuras, mas deu-me uma oportunidade que eu provavelmente não teria se não vivenciasse o que vivenciei naquela fase porque eu não sabia se no dia seguinte estava vivo ou não.

ZZ: Lembra-se dos acontecimentos do dia em que isso aconteceu?

JM: Lembro-me que estava a preparar um jogo contra o Fenerbahçe, sendo que, antes, tínhamos sido eliminados da Taça pelo Konyaspor. Como forma de energizar um pouco o grupo de trabalho, há uma altura em que dou um murro na parede para espicaçar um pouco as coisas. Quando fiz isso senti uma dor forte na zona da nuca e a minha voz acabou por ficar monótona, comecei a falar de uma forma zen. Ainda assim, continuei a reunião e fui dar o treino. Há uma altura em apitei para dar início ao treino e tive de largar logo o apito porque o som aumentou 50 vezes na minha cabeça. Fiz um esforço enorme para dar o treino até ao fim, mas no fim fui ter com o médico do clube. 

Técnico viveu momento delicado no Antalyaspor @Getty Images

Ele ainda desvalorizou um pouco, mas acabei por ir para o hospital de ambulância. Fiz os exames, mas ninguém me disse nada em concreto. Entretanto apareceram os meus adjuntos, a minha família, o presidente do clube e eu só disse «O que é que estão aqui a fazer? O que é que se passa? Está tudo bem, amanhã temos jogo e entretanto saio daqui». Mal eu sabia... Entretanto fui para outro hospital e o médico cirurgião disse-me que eu tinha tido um AVC, que a lesão cerebral tinha dois centímetros e que tínhamos de esperar até ao dia seguinte para perceber como estava a situação, que se falássemos no dia seguinte era bom sinal para mim. Só consegui pensar 'Então um gajo pode morrer assim? Estou aqui à espera?'. Durante essa noite passou-me tudo pela cabeça, foi estar ali à espera que a morte te leve. Já foi há muitos anos e ainda me emociono, mas felizmente correu tudo bem. Agora tenho uma perspetiva de vida diferente.

Ler artigo completo