Manuel Fernandes. O Manel já mora no canto verde do céu

2 meses atrás 44

O Manel morreu e nós já sabíamos que ele ia morrer muito antes do que devia ser a sua hora. Neste país aflito gostamos de transformar todos os mortos em homens bons, por maior canalhas que tenham sido em vida. Não, a morte não melhora ninguém. Não melhora o Manel porque, ele sim, ele foi bom, foi sobretudo genuíno, sabia o que era a amizade, a humildade, a gratidão e a fraternidade. Para mim era um amigo antigo, já não me recordo quando o conheci, certamente por meados dos anos 80, jogava no Sporting, era o capitão indiscutido, já experimentara sair de Lisboa e de Sarilhos Pequenos, essa povoação do município da Moita, debruçada sobre o Tejo do lado de lá da capital que ele abraçou pela primeira vez que chegou a Alvalade em 1975, já o país se livrara de cinquenta anos de uma ditadura podre, caduca, velha como os velhos que a dirigiam. Tinha mais treze anos do que eu. Ou seja, ainda fui, em miúdo, colecionador dos cromos que vinham embrulhados em rebuçados de alcaçuz, nessa altura estava ele na CUF que o descobriu no Sarilhense onde deu os seus primeiros pontapés a sério numa bola. De 1969 a 1975 vestiu aquela camisola linda, à Arsenal mas em verde escuro, marcou 40 golos em 138 jogos, dava nas vistas pelo seu estilo diferenciado, um desses golos ficou para a história, derrotou o FC Porto no Estádio Alfredo da Silva, garantiu um quarto lugar para a equipa das indústrias, da Companhia União Fabril, classificou-se para a Taça UEFA, eram tempos felizes de um moço feliz que via o futuro estender-se à sua frente com a frescura álacre de um domingo de manhã. Falo do estilo. O estilo do Manel era único. Avançado de golos, marcou muitos. Mas não era um ponta-de-lança clássico como vários que jogaram a seu lado, era um avançado, percorria espaços mais largos, gostava de tomar balanço, vir de trás, tirava prazer do drible, era adepto da tabelinha, precisava de uma liberdade que fixado na grande-área não podia ter. Talvez essa hibridez lhe tenha custado caro. Principalmente na Seleção nacional onde foi, de certa forma injustiçado. O Manel valeu mais do que as suas 31 internacionalizações e 7 golos. Valeu muito mais. E foi injusto que não tivesse tido a possibilidade de estar presente, por exemplo, no Campeonato da Europa de 1984 ou, ainda mais injusto, que não fosse ao México para o Campeonato do Mundo de 1986, ano em que venceu a sua única Bola de Prata com um total de 30 golos. Em 84, enfim, havia Jordão e depois Gomes e Nené. Em 86 só havia Gomes. «Em 1984 tinha feito uma época fraca, e percebo que não tenha sido convocado. Em 1986, não», diria mais tarde numa entrevista. E concluiu. «A meio da temporada, com os golos que estava a marcar, esperava ser chamado. Foi quando se deu um jantar com o José Torres em casa do Marinho. Apresentei os meus argumentos e o José Torres disse que ia ver… Mas a verdade é que nunca me chamou». Foi pena, Manel, foi pena…

As lágrimas do Manel

Estamos ao telefone e o Manel chora. Bruno de Carvalho, o mais fraco presidente que jamais passou em Alvalade, acabara de o acusar de ser o pior profissional do clube. Ah! Como isso mexeu com ele por dentro. Sporting, clube da sua vida, paixão de menino. E eu sem palavras a pensar, calma Manel, todos nós te conhecemos, somos teus camaradas, sabemos o que és e o que vales, sabemos que isso é uma infâmia inqualificável. Entrou pela primeira vez pela porta 10A no início da época de 1975, Portugal estava elétrico, confuso, em busca de um futuro. Acabou entretanto a lei fascista que amarrava um jogador ao seu clube para sempre desde que fosse vontade do clube. Dois anos depois, como tantos do seu tempo, experimentou o futebol dos Estados Unidos, à procura do dinheiro que por cá não se pagava. Esteve seis meses no Rochester Lancers, de Rochester, Estado de Nova Iorque, da American Soccer League. Voltou à sua camisola verde e branca. Em 1979 repetiu a experiência, agora no New England Tea Men, de Foxborough, Massachusetts, onde também esteve o seu companheiro de Sporting, Artur Correia, o Ruço. Mas o apelo de Lisboa e de Sarilhos Pequenos era forte demais, o Manel não tinha alma de emigrante, cumpriu seis anos seguidos de Sporting, jogou 298 jogos e marcou 168 golos, acumulou um total de 363 jogos e 208 golos com o emblema do leão. As suas parcerias com Manoel, Jordão, Keita e António Oliveira transformaram-se em algo do mais belo que o futebol português já viu. Havia arte nos pés do Manel que se colava à arte ou à força dos seus parceiros de ataque. Capitão do clube que amou sempre acima de tudo ficar-se-ia apenas por dois títulos de campeão nacional (1979-80 e 1981-82) e pela conquista da Taça de Portugal por duas vezes (1977-78 e 1981-82). É difícil dizer agora quais foram os momentos mais brilhantes do Manel em Alvalade. Ele dizia que o dia mais belo da sua carreira de dezoito anos como jogador foi o dia em que entrou em Alvalade pela primeira vez. Não, não foram os 7-1 ao Benfica, no Estádio José Alvalade, à vista de 60 mil pessoas, no dia 14 de Dezembro de 1986, quando marcou quatro golos. O Benfica não deixaria de ser campeão com uma única derrota no campeonato, mas a bola do jogo ficaria nas suas mãos, ou pelo menos na família: «Foi um jogo inesquecível e, quando vencemos o Benfica, ficámos perto do primeiro lugar. Onde começámos a cair foi em Guimarães. O árbitro apitou para o fim da partida e o Gabriel, nosso defesa direito, agarrou na bola. Eu disse-lhe logo: Gaby, dá cá a bola que é minha, tendo ele perguntado se era por causa dos quatro golos. Respondi-lhe que não, que era o dia dos anos da minha filha e queria dar-lha de presente. Quem tem essa bola é a minha filha». Saudades Manel, saudades…

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