OPINIÃO |Jornalismo, uma arma encravada

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«Campo Pelado» é o espaço de opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Uma homenagem ao futebol mais puro, mais natural, onde o prazer da camaradagem é a única voz de comando. «Campo Pelado».

* Chefe de Redação 

Contabilizo 23 anos de Jornalismo, sem incluir part-times anteriores e nervosos no saudoso Matosinhos Hoje e na Rádio Jornal FM. Nesses dias, de imaturidade e sonhos sem fim, vestir o bloco notas, a caneta e o gravador eram sinónimos de responsabilidade (demasiada, talvez) e orgulho.

O privilégio de poder informar, e de saber informar, perdeu-se a meio do caminho. A digitalização de meios apressou a revolução desenfreada e o paradigma das redes sociais, com buracos negros sem vigilância, trouxe a confusão total entre a informação credível e as fake news.

Se a isto associarmos os novos movimentos políticos - descarados na propagação da mentira -, e o crescimento do voto sustentado em ignorância e desespero, chegamos aos sintomas e ao diagnóstico que enfermam o Jornalismo, o Bom Jornalismo.

A Grege Geral deste 14 de março é, por isso, mais do que justa: é fundamental.

As ameaças ao ofício são evidentes, não se escondem nas sombras. Entre salários desqualificados, precariedade contratual, investidores com interesses mais do que duvidosos e a tal concorrência desleal das plataformas de entretenimento social, vamos fazendo as orações de misericórdia e penitência.

Escrevo do conforto de uma secretária bem arejada, dentro de um projeto magnífico, respeitado por uma administração presente e amiga. Para que não haja réstia de dúvida, o zerozero é o exemplo perfeito de uma empresa que tem sabido contornar as dificuldades através do respeito pelos funcionários (cerca de 70) e pelos leitores - leia o Editorial do nosso diretor de informação, o Luís Rocha Rodrigues.

Não só pelo pagamento a tempo e horas do soldo, mas pela criação de condições de excelência no dia a dia, pois o investimento é visto não como um peso, mas como parte fundamental do crescimento.

Dito isto, o zerozero é uma rara exceção e não uma regra no Jornalismo em Portugal.

Não é possível uma sociedade justa, equilibrada e democrática sem o escrutínio desta função – tão nobre, tão bela.

1. Imaginemos uma Assembleia República opaca, sem imagens e o questionamento dos seus ocupantes.

2. Imaginemos uma unidade hospitalar incumpridora e abusadora, sem uma equipa de reportagem a mostrar ao país o seu interior.

3. Imaginemos um político eleito e de cadastro impronunciável, sem a devida informação a chegar às casas de quem tem o dever de votar.

4. Imaginemos um incêndio devorador a ameaçar uma zona urbana, sem os Media a fazerem o alerta atempado para a evacuação da população.

5. Imaginemos uma escola frequentada por um predador, sem os responsáveis terem a possibilidade de expor o caso e terminar com o deletério.  

Como é que uma profissão tão urgente, verdadeiro pilar de um estado saudável, chegou a este ponto de anemia e vulnerabilidade?

Passei por redações cansadas, gritos permanentes, olheiras de exaustão, teclados furiosos, desde o meu querido O Comércio do Porto até ao entusiasmante Maisfutebol, com breves passagens pelo Diário de Notícias e a Infordesporto, um projeto demasiado à frente para aqueles dias de 2002.

Em todas elas identifiquei desgaste e paixão, fatiga e sentido de responsabilidade.

Uma arma na defesa social, na responsabilização dos atores políticos e desportivos, mas uma arma encravada.

A dada altura, a desvalorização da profissão passou a ser explícita, a erosão de direitos correu à velocidade das alterações climáticas, o Jornalista passou de figura nobre a inconsolável pária – um moço de recados de um qualquer lorde, dono de contas bancárias no Caribe ou outro offshore pouco recomendável.

Neste dia de portentosa importância, a minha pergunta é esta: como podemos reabilitar o Jornalismo e atrair gente competente e honesta para o exercício de funções?

«Aprende a nadar, companheiro
Aprende a nadar, companheiro
Que a maré se vai levantar
Que a maré se vai levantar

Que a liberdade está a passar por aqui
Que a liberdade está a passar por aqui
Que a liberdade está a passar por aqui

Maré alta
Maré alta
Maré alta»

Sérgio Godinho sempre soube deixar as pistas certas. Não desperdicemos a Liberdade, as dores dos nossos avós e pais, o ato tão simples de poder ler e aprender sem a ameaça do lápis azul da censura.

Jornalismo e Regime são siameses, gémeos incapazes de sobreviver um sem o outro. E essa é a primeira resposta possível. Os responsáveis governamentais têm a obrigação de vigiar a entrada de capitais de risco, descontrolados, de selvagens apenas interessados em lavar notas e pesos na consciência.

Só essa triagem, devidamente legislada, será capaz de purificar o suporte financeiro dos Media.

Redações esgotadas, e sem meios de subsistência sólidos, são carne para canhão, alimento para os populistas e demagogos destes dias perigosos.

A segunda resposta abriga o Financiamento Público, uma rede de segurança para a melhoria salarial e contratos estáveis.

Para o Jornalismo voltar a ser a arma de sempre, esta santa trindade é uma urgência.

PS 1: no país dos unicórnios e das start-ups, de certeza que não é exequível a criação de mecanismos eficazes e independentes de fiscalização e transparência no acesso a apoios públicos. Se um Estado controlador é uma ameaça (concordo), um Estado sem a regulação de um Jornalismo forte é um passo certo para a anarquia e o caos. Chegou a hora de tomarmos as opções certas e inadiáveis.

PS 2: em 2001, entrei na profissão a auferir 600 euros líquidos. Um luxo para um menino de 22 anos, a viver em casa dos pais, numa altura em que o salário mínimo estava nos 334 euros. 23 anos depois, os recém-licenciados entram a receber, na esmagadora maioria dos casos, o ordenado mínimo nacional, agora nos 820 euros. Isto é inaceitável.      

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