Partidos têm “vontade de reduzir o controlo sobre as contas”

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Os partidos têm “vontade política de reduzir o controlo sobre as contas” e há políticos que acham que não deve haver “interferência excessiva” na vida dos partidos.

A avaliação é de Margarida Salema, antiga presidente da entidade que fiscaliza as contas dos partidos, uma semana depois de serem conhecidos “eventuais financiamentos proibidos” ao partido Chega, que também não entregou listas de donativos nos anos mais recentes.

Em entrevista à Renascença, Margarida Salema - presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos entre 2009 e 2017 - diz que os partidos tiveram uma atitude de cooperação durante o tempo que dirigiu o órgão.

Contudo, o cenário mudou em 2018, quando os partidos introduziram alterações às leis para “colocar na lei aquilo que os partidos queriam fazer” e que os tinha levado a ser “admoestados e sancionados pelo Tribunal Constitucional”, como os donativos indiretos – a situação em que uma despesa é paga por terceiros, com o partido a reembolsar posteriormente.

A Renascença solicitou o acesso aos documentos de financiamento dos partidos a 22 de fevereiro, tendo apenas obtido resposta a 5 de março depois de o pedido ser aprovado numa reunião de direção a 29 de fevereiro.

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Questionada sobre a facilidade de acesso e escrutínio destes documentos, Margarida Salema explica que a Entidade das Contas está a cumprir os “deveres legal”, mas admite que possa haver uma “desatualização” desses deveres.

Sobre os prazos estabelecidos na lei, que dão aos partidos até maio para entregar as contas do ano anterior e à Entidade das Contas um ano para se pronunciar sobre a regularidade, a professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa considera que “a fiscalização devia ser feita muito mais rapidamente”.

Os relatórios mais recentes da Entidade das Contas e Financiamentos Partidários são de 2018.


O acesso aos documentos das contas dos partidos não devia ser mais facilitado? Não deviam ser documentos totalmente públicos?

O dever legal da Entidade das Contas é disponibilizar no sítio na Internet do Tribunal Constitucional toda a informação relativa às contas dos partidos políticos e às contas das campanhas eleitorais, aos relatórios sobre as respetivas auditorias, aos acórdãos do Tribunal em sede de recurso e ainda à lista indicativa do valor dos meios de campanha, para que se possa saber se de facto, as despesas de campanha se inserem, ou não, nos termos previstos naquela lista indicativa.

Por outro lado, também têm que ser publicados os orçamentos de campanha, as listas de ações e meios por anos e por campanha eleitoral.

Ou seja, há obrigações legais de publicitação na Internet, mas desde 2005 que se previa na lei a construção de uma base de dados sobre meios e atividades de propaganda política e de campanha eleitoral, e essa base de dados nunca foi elaborada.

Por que razão a base de dados ficou por fazer?

Porque, na realidade, as ações e meios dos partidos e as ações e meios de campanha são extensíssimos e, portanto, o que acaba por acontecer é que elas são publicadas no sítio na Internet da Entidade das Contas.

A lei manda publicar uma toda a documentação que referi, mas os jornalistas, nomeadamente, o que as pessoas em geral verificam, é que em termos de contas dos partidos, apenas são publicitados o balanço e a demonstração de resultados e, por isso, muitas vezes não se consegue entender aqueles documentos contabilísticos.

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Estão publicados, a Entidade tem cumprido esses deveres legais. Mas uma questão é o cumprimento dos deveres legais, outra coisa é uma questão de o público perceber os documentos. O que acontece muitas vezes é que o público, os jornalistas em particular, pretendem ter acesso, por exemplo, às listas de donativos. Mas as listas de donativos não estão publicadas na internet.

Um académico investigador que quer a analisar detalhadamente as contas dos partidos tem que solicitar à Entidade das Contas o acesso à conta A, B ou C e fazer essa verificação presencial. E a lei prevê que os documentos podem ser entregues tanto em papel como em formato digital. Portanto, admito que muitas vezes as contas que se espalham por muitos e muitos dossiers.

Em suma, o que nós verificamos em 2024, é que há uma desatualização destes deveres legais. Isto é, aquilo que a Entidade tem que fazer e tem cumprido sistematicamente não é útil.

Da sua experiência, os partidos entregam as contas em papel ou em formato digital?

Até 2017, os partidos sempre entregaram as contas em papel.

É evidente que, para serem efetuadas as auditorias externas - porque todas as contas são submetidas sistematicamente a auditorias externas sob a supervisão da Entidade das Contas – naturalmente que depende um pouco das empresas de auditoria que vão efetuar essa auditoria, mas é provavelmente a observação em papel a forma tradicionalmente mais fácil de nós analisarmos os números.

Trata-se de extratos bancários ou outro tipo de documentação, por exemplo, faturas, faturas de fornecedores, e a verificação, por exemplo, da circularização de fornecedores.

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Se algum partido entregar os documentos incompletos, ou com falta de informação, que poder tem a Entidade das Contas para obrigar o partido a entregar o que falta?

Há sempre a possibilidade de ir ao partido para completar os documentos. Estamos a falar de documentos de contabilidade. Podem faltar documentos, podem faltar as tais listas de donativos, é normal que a Entidade solicite ao partido que entregue este ou aquele documento que a Entidade entende que está em falta.

Não é por atraso na entrega de um documento ou outro que o partido vai ser sancionado. Apesar disso, pode haver e há casos em que os partidos não apresentam nem prestam contas de todo, e então a lei prevê sanções a aplicar.

Teve um desses casos enquanto esteve na Entidade das Contas?

Sim, claro, sobretudo muitos casos no período transitório de adaptação dos partidos à nova legislação do princípio do século XXI. Muitos partidos, sobretudo os pequenos partidos, que têm poucos recursos humanos e poucos recursos financeiros - para não dizer que eu encontrei e conheci partidos que tinham zero recursos financeiros, que diziam que não tinham capacidade de apresentar contas e não sabiam como se fazia.

Daí que nós nos tenhamos empenhado na época na elaboração de um regulamento contabilístico, que acabou por ser publicado em 2013. Mas, entretanto, caducou, porque o legislador revogou, em 2018, o poder de regulamentação da Entidade das Contas. O que a lei diz agora é que o regime contabilístico dos partidos é o regime normal que se aplica às empresas.

Porque acha que os deputados revogaram esse poder?

Ao longo dos anos, sobretudo a partir de 2018, os partidos encontraram sempre maneira de, por unanimidade, alterar as leis. A Assembleia atuou de forma a ir ao encontro dos interesses dos partidos. Dito de uma forma direta e crua, se alguma norma não agrada a algum partido, o partido tenta alterar a norma.

Os partidos têm atuado no sentido da conveniência dos seus próprios interesses. Alteraram a lei no sentido de dizer que a organização contabilística dos partidos se rege pelos princípios aplicáveis ao Sistema de Normalização Contabilística, com as adaptações e simplificações adequadas à natureza dos partidos políticos. Ninguém sabe o que é que isto quer dizer.

A lei está cheia de problemas de interpretação e foram introduzidas aqui questões complicadas, como por exemplo a utilização de espaços públicos, e os donativos indiretos, que eram proibidos pelo Tribunal Constitucional. Havia uma série de problemas que os partidos tinham e eles alteraram a lei e com efeitos retroativos. Ou seja, todos os processos até então analisados e avaliados e apreciados em termos de auditoria, prescreveram.

As contas dos partidos podem ser entregues até maio do ano seguinte, e depois há um período de 1 ano para a fiscalização. Estes prazos não são demasiado dilatados?

Os prazos hoje estão mais diminuídos, mas de facto não devia demorar um ano. Devia demorar muito menos e nós encontramos na lei alguns prazos que nem sempre se aplicam.

Mas eu não me vou pronunciar sobre a possibilidade de aplicação ou não dos prazos, uma vez que efetivamente a fiscalização devia ser feita muito mais rapidamente. As auditorias deviam ser feitas muito mais rapidamente. Os resultados deviam ser publicados mais rapidamente. E não devia distar um período de tempo tão grande entre os relatórios de auditoria.

Há uma falta de vontade política dos partidos para haver transparência?

Eles nunca aceitarão que têm falta de vontade política. Eles nunca aceitarão isso, mas eu penso que é um não é um problema de vontade. Eles têm a vontade política de fazer o contrário, isto é, de reduzir o controlo sobre as contas.

A vontade política deles é exatamente a oposta. Eles não querem um controlo rigoroso das suas contas. Alguns até acham que não deve haver interferência excessiva na vida interna dos partidos, nomeadamente na vida contabilística dos partidos.

Eles têm a vontade política de não mexer nesta matéria, quanto menos se falar, melhor. Os partidos não querem que andem lá a bisbilhotar nas suas contas.

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