Quando a Geórgia jogou em Viseu: «O Ronaldo era incrivelmente rápido!»

2 meses atrás 88

Levan Kenia nasceu em Tbilisi, meio ano antes da declaração de independência da Geórgia face à União Soviética. Viviam-se os tumultuosos e libertadores princípios dos anos 90 do século XX, inundados de incerteza e de esperança; na vida dos georgianos e no futebol do país, que como tantos outros herdeiros da URSS, tardou - e tarda - em replicar as façanhas gloriosas de um tempo que já não existe.

Para Kenia, a infância fez-se agarrada a uma bola e ao sonho de viver com ela - e dela. Deu os primeiros passos no Lokomotiv Tbilisi de onde saiu em 2008 para a grande aventura germânica com destino a Gelsenkirchen. Essa mesmo. A cidade que esta quarta-feira (20h) recebe o Geórgia - Portugal, da 3.ª jornada do Grupo F, e que é a casa de Levan Kenia desde então. 

Ainda assim, as memórias dos tempos que passou ao serviço do Schalke 04 não são as mais felizes. Amaldiçoado pelas lesões, Kenia viveu um filme diferente do amigo Levan Kobiashvili, hoje presidente da Federação Georgiana de Futebol. Fez apenas 14 jogos pelos "Königsblauen" e procurou ser feliz, com a bola, noutras latitudes. Ucrânia, Chéquia, Luxemburgo, mas a vida queria-o na Alemanha.

Hoje, Kenia, com 33 anos, é treinador do KFC Uerdingen, um clube "esquecido" no futebol amador mas cuja história conta 14 participações na 1. Bundesliga. E vive, lá está, novamente em Gelsenkirchen, de onde atendeu o zerozero

Apesar de ter tido uma carreira "curta" e sem o sucesso que o próprio sonhava, Kenia tem histórias para contar.

Desde logo, pelo facto de ser, ainda hoje, o mais jovem a estrear-se pela seleção da Geórgia e por, nesse currículo de 29 jogos com as cores do país, ter defrontado Portugal, em 2008, no estádio do Fontelo, em Viseu.

Kenia, primeiro da esquerda, na seleção com Levan Kobiashvili e Kakha Kaladze, o capitão @Getty /


zerozero - Obrigado por falar connosco.

Levan Kenia: Se é para falar sobre futebol, contem sempre comigo.

zz - É sim. E de emoções. Que tal começar pelo dia do apuramento histórico da Geórgia para este Campeonato da Europa?

LK - Foi uma grande festança! Lutei a minha vida toda como futebolista para poder participar num torneio destes, mas no meu tempo, infelizmente, não havia a Liga das Nações e era mesmo muito difícil qualificarmo-nos de forma direta para um grande torneio. Mas agora, países mais pequenos como nós têm mais possibilidades e foi, definitivamente, muito bonito!

zz - Onde é que estava nesse dia?

qPoder jogar contra Portugal (...), com todas aquelas estrelas mundiais, foi um momento alto para mim

Levan Kenia, ex-internacional georgiano

LK - Na Alemanha! O mais difícil foi o facto de ter treino nesse dia e tive de ouvir a segunda parte na rádio; fiquei ainda mais nervoso! Mas depois vi as imagens do meu país e não é possível explicar em palavras aquilo que senti. As imagens que me chegavam de Tbilisi emocionaram-me imenso. Mas consigo imaginar quão espetacular foi para os jogadores.

zz - Se os registos não me enganaram, o Levan é o mais jovem de sempre a estrear-se pela seleção, com 16 anos e 10 meses, certo?

LK - Exatamente. E se a memória não me atraiçoa, o meu terceiro ou quarto jogo [n.d.r. foi o 10.º] na seleção foi contra Portugal. Perdemos 2-0, mas Portugal tinha uma super equipa. O Cristiano Ronaldo era jovem e ainda jogava na ala; era incrivelmente rápido! Foi uma experiência muito bonita essa. O treinador, se não me engano, era aquele brasileiro que foi campeão do mundo... 

zz - O Luiz Felipe Scolari.

LK - Exatamente!

zz - E, já agora, lembra-se onde foi o jogo?

LK - Sei que foi em Portugal... [risos].

zz - Em Viseu.

LK - Isso mesmo! Eu era tão jovem na altura, meu Deus! Já foi há tanto tempo. Foram os meus primeiros passos no futebol profissional. Tinha 17 anos. Poder jogar, já na altura, contra Portugal, ainda que fosse um amigável, com todas aquelas estrelas mundiais, foi um momento alto para mim, uma experiência soberba mesmo.

zz - E agora há novo jogo com Portugal, este mais a sério, e logo em Gelsenkirchen, uma cidade que lhe diz muito, não é verdade?

qTivemos sempre bons jogadores individuais que atuavam em equipas de topo (...), mas o leque de opções era curto

Levan Kenia, ex-internacional georgiano

LK - Pois [risos]! Outra coincidência engraçada, porque eu moro em Gelsenkirchen, a cinco minutos do estádio. É daquelas coisas... É um sonho e, egoisticamente falando, um pouco de pesadelo também porque no Schalke 04 tive várias lesões e pela seleção nunca consegui alcançar aquilo que queria, por isso vivo num misto de emoções, sem dúvida [risos].

zz - Há muitos georgianos na região?

LK - Não, não há muitos georgianos aqui na região, mas muitos vão viajar da Geórgia porque este é um momento único. Por isso, aqueles que têm o mínimo de possibilidades vão estar cá a apoiar a seleção.

zz - Ao contrário da Turquia, como já vimos.

LK - Pois, esse é o problema. A Turquia está a jogar um Europeu em «casa», talvez mais do que a própria Alemanha [risos]. 

zz - Voltemos à seleção da Geórgia. Já disse que, antigamente, o formato da qualificação não ajudava países como o seu. Há outros motivos para só agora estarem a jogar o primeiro grande torneio?

LK - Tivemos sempre bons jogadores individuais que atuavam em equipas de topo. Eu e o Levan Kobiashvili estávamos no Schalke, ainda que eu, infelizmente, tenha tido várias lesões. Mas havia o Kaladze, o Zurab Khizanishvili... tínhamos jogadores de topo, mas o leque de opções era curto. Ou seja, havia bons jogadores mas não em quantidade suficiente. E quando havia uma ou duas lesões, as coisas complicavam-se, sobretudo contra nações fortes. Jogámos várias vezes contra a Itália e eu quando olhava para a qualidade dos convocados... era brutal. Tinham três ou quatro jogadores para cada posição.

zz - É diferente agora?

LK: Agora temos com o Kvaratshkelia, que é uma estrela mundial, algo que nunca tivemos, pelo menos com esta dimensão. Ele é o líder e está rodeado de vários jovens jogadores com qualidade e outros com mais experiência. E com o Willy Sagnol temos um bom treinador, também experiente ao mais alto nível. 

zz - E o papel do seu ex-colega Levan Kobiasvhili, agora presidente da Federação da Geórgia?

LK - A federação trabalhou de forma paciente e sob a presidência do Kobiasvhili a seleção tornou-se muito melhor. Esta federação está a fazer de tudo para levar o futebol para outro patamar, mas infelizmente o país tem, de forma recorrente, outros problemas que travam um pouco essa evolução.

«Somos estreantes, temos é de desfrutar»

zz - Já falamos de muita coisa e ainda não falamos dos primeiros dois jogos da Geórgia neste Europeu. O que é que achou?

LK - O primeiro, contra a Turquia, foi um espetáculo, na minha opinião. Jogámos um grande futebol; não nos escondemos nem nos remetemos à defesa e procuramos atacar e criámos oportunidades. Para mim, foi um jogo de 50-50. Mas a Turquia é uma equipa com alguma experiência e acabou por decidir o jogo a seu favor. Foi uma pena, mas não nos podemos esquecer do caminho que fizemos até aqui.

zz - E contra Chéquia?

LK - Foi um pouco mais difícil, curiosamente. No geral, considero a seleção checa mais forte do que a turca. Se virmos as estatísticas, tiveram muito mais oportunidades de golo e deviam, honestamente, ter ganho o jogo. Mas nós conseguimos manter-nos "vivos", o nosso guarda-redes fez uma exibição fabulosa e no final até podíamos ter ganho no último lance da partida. Isso teria sido brutal! 

zz - Falta então o jogo com Portugal...

LK - Vai ser muito difícil. Mas como já disse, não nos podemos esquecer que somos a única seleção estreante neste Europeu e só temos é que desfrutar, acumular experiência e depois logo se vê como será. 

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