RECORDAR | O drible do ‘Ozil de Pedras Rubras’ à tetraplegia: «Não me falta amor»

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Reportagem por Pedro Jorge da Cunha, originalmente publicada no dia 5/7/2023


Tarde de celebração. Pavilhão cheio, a bola a saltar, velhos amigos da escola de um lado e figuras do futebol nacional do outro.

Tudo em nome de Ricardo Ferreira.

O olhar persegue os movimentos, suporta o calor de julho. Num dia normal, Ricardo estaria lá dentro, no campo de todos os sonhos, a driblar de pé esquerdo, a fazer jus à alcunha de ‘Ozil de Pedras Rubras’.

«A 11 de setembro de 2021 a minha vida mudou», conta ao zerozero, sentado numa cadeira de rodas e rodeado dos que mais ama. E que mais o amam: «Não me falta amor, por mim e por eles vou continuar a lutar.»

qÉ curioso que sinto tudo nas pernas. Se me tocar aqui [aponta para a coxa], eu sinto. A sensibilidade chega ao cérebro. O problema, pelo que me dizem nas consultas e nos tratamentos, é que essa informação não é depois devolvida aos músculos

Ricardo Ferreira

Um golo, e mais outro, os marcadores celebram a papel químico. Correm até Ricardo, abraçam-no, beijam-no na cabeça.

«Estou de coração cheio. O que posso dizer mais?»

Ricardo, 44 anos, muito por viver, tanto por conquistar. A vida é inexplicável, o destino é capaz de crueldades inescrutáveis, o que esperar de respostas para perguntas tão duras?

O que se passou?

«Estava em casa de um familiar, no último dia de férias de verão e no último mergulho na piscina. Bati com a cabeça no fundo e percebi logo que era grave», recorda, provavelmente pela enésima vez, cada palavra já decorada, os sentimentos arrumados a um canto.

Não há lágrimas, Ricardo segura-as. É um campeão. «Fraturei a medula espinhal. Foi mau, inicialmente os médicos diagnosticaram-me uma paraplegia, mas mais tarde o veredicto foi corrigido: tetraplegia.»

Apito para intervalo. Os dez jogadores de ocasião, mais suplentes, aproximam-se do herói da tarde. Palavras de incentivo, abraços, energias boas.

Ricardo com Luísa, a mulher, e Maria João, a filha @José Lopes

Ao lado de Ricardo, a esposa, Luísa. A cumplicidade serena, o companheirismo. Na bancada, os pais. Ricardo é filho único. E pai de uma menina de 16 anos.

Maria João, a filha, expia os fantasmas através da música. Tempo de descanso é tempo de dança, de festa, por uns minutos tudo se esquece.

O stop é, porém, demasiado forte.

A canção acaba. Maria João corre para os braços do pai, mais vulnerável do que nunca. Clímax de emoção, de revolta, tudo tão belo e, ao mesmo tempo, tão duro.  

Os anos de futebol com o pé esquerdo

O futebol. A espera faz-se de palavras. Estamos em Moreira da Maia, freguesia do lugar de Pedras Rubras, famoso pelo aeroporto, pelos bons restaurantes e pelo clube local.

É no popular Campo Maria da Fonte, dos 12 aos 20 anos, que Ricardo encontra a segunda casa. Não gosta de auto-elogios, mas os antigos colegas ajudam a rebuscar o passado.

O Pavilhão de Moreira da Maia encheu para aplaudir Ricardo @José Lopes

«O Ricardinho? Fazia o que queria da bola.»

«Esse menino tinha um pé esquerdo de ouro.»

«Só corria era pouco, fazia tudo em ‘pause’.»

«Chamávamos-lhe Ozil, jogava muito.»

Ricardo sorri, por ele saltava ‘lá para dentro’, sem problemas.

«Comecei um bocado antes, no futsal do Académico, aqui na terra. Jogávamos neste pavilhão e fomos campeões nacionais do 1º Open de futsal. Depois, sim, fiz toda a formação no FC Pedras Rubras e duas épocas nos seniores, ainda na 3ª divisão e com o mister Francisco Chaló

Já aí, curiosamente, o azar impõe regras. Os exames médicos identificam uma anomalia cardíaca, nada demasiado sério. Ricardo perde algum tempo, muda-se para o Desportivo de Vilar, ao lado do amigo Gabriel Satxibala, e ainda festeja o título distrital.

«Nessa altura recebi uma oferta de emprego muito boa, da Lufthansa, e estive na companhia aérea quase 20 anos. Até ao dia do acidente na piscina.»

A bola já rola. Músculos cansados, fora de forma, e alguns craques a contrariar o esforço insuportável para alguns.

Rúben Ribeiro faz o que quer no piso de taco, Nandinho mostra que ainda sabe muito, Daniel Ramos e Gaspar também não falham.

Não falta amizade, não falta companheirismo. À frente da organização desta homenagem mais do que justa, os amigos Nuno André, Nuno Magalhães e Tomás Simões.

Todos querem ajudar, seja como for, o Ricardo Ferreira. Todos o conhecem e elogiam o menino do Bem, divertido e dedicado à família.

Ricardo é o quinto em cima, a contar da direita, no FC Pedras Rubras @Arquivo Pessoal

Nas pausas, a conversa com o zerozero. «Fiz uma operação e melhorei muito dos braços. Já sou capaz de movimentá-los e de pegar em coisas, mas se quiser apertar o seu braço não tenho força», confessa o ‘Ozil’ da freguesia maiata.

«É curioso que sinto tudo nas pernas. Se me tocar aqui [aponta para a coxa], eu sinto. A sensibilidade chega ao cérebro. O problema, pelo que me dizem nas consultas e nos tratamentos, é que essa informação não é depois devolvida aos músculos.»

Fim da futebolada. Mais fotografias, mais brincadeiras malandras com Ricardo, outras promessas de ajudas e mais ajudas. Ricardo precisa, Ricardo merece.

Despesas insustentáveis com a reabilitação

Urgências, hospital, cirurgias, internamento. «Disseram-me que nunca mais ia andar e quero acreditar que se enganaram.»

A mudança para o Centro de Recuperação Norte, em Valadares, é decisiva. São sete meses de evolução positiva, na unidade estatal. O apoio é perfeito, o estado social dá a resposta que se espera a alguém sempre cumpridor nas suas responsabilidades.

O zerozero juntou-se à festa de homenagem a Ricardo Ferreira @José Lopes

«O pior veio depois», lamenta Ricardo. «Tive de sair de lá, as regras a isso obrigam, e fiquei sem saber o que fazer. De um dia para o outro, todo o amparo e cuidado médico desapareceram. Eu e a minha família ficámos perdidos, sem nada. Isto foi em 28 de março de 2022.»

De forma resumida, nos últimos 16 meses Ricardo Ferreira passou a depender dos cuidados de clínicas privadas e dos auxílios financeiros de amigos e anónimos.

«Recebo um pequeno subsídio do estado, de pouco mais de 200 euros. Tive de deixar um bom emprego, a minha mulher também deixou de trabalhar para poder estar comigo e as despesas mensais rondam os dois mil euros. É insustentável. Estou de baixa, mas quero voltar logo que possível à Lufthansa Cargo.»

Além das visitas quase diárias a uma clínica na Maia e a outra em Braga, Ricardo teve de fazer obras de grande dimensão em casa, de forma a adaptar todos os espaços às novas necessidades. Lançou uma campanha de angariação de fundos e passou a partilhar a sua história recente.

Domingo à tarde, jogo de importância máxima no Pavilhão Municipal de Moreira da Maia, uma final mais na segunda vida de Ricardo Ferreira, um homem Bom.

Com as boas energias que o rodeiam, o score final só pode vir a ser positivo.

Uma goleada de amor.

NOTA - A batalha do Ricardo e da família não se faz só de palavras. Podem ajudá-los através das seguintes formas: 

IBAN: PT50001000001968354000169
MB WAY para o nr 931109770

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